quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Star Trek - Sem Fronteiras -- Todos satisfeitos

Era grande a expectativa para STAR TREK: SEM FRONTEIRAS. Será que o novo diretor faria jus ao trabalho sempre competente de J. J. Abrams (diretor nos dois filmes anteriores, agora produtor)? Como seria o trabalho de Simon Pegg como roteirista? Os fãs ficariam satisfeitos com o desfecho da trilogia? O terceiro filme é diferente dos dois anteriores, o que é ponto positivo, pois cumpre a promessa do título original (Beyond), inovando naquele universo.

O prólogo aposta mais na tensão e menos na ação, ao contrário do restante do longa. Ironicamente, o que faz "Além da Escuridão" é o inverso: um prólogo com muita adrenalina e uma película que prima mais pela tensão. Não é exagero afirmar que há incremento da ação em detrimento da ficção científica. Sim, existem momentos de muita ficção científica (fascinante o equipamento usado pelo dr. McCoy para enxergar órgãos internos), mas é a ação que prepondera. No caso específico de "Sem Fronteiras", o prólogo tem até um quê cômico quando Kirk tenta celebrar um tratado de paz, entregando como símbolo um objeto chamado abonath, cuja função é inicialmente obscura e depois decepcionante. Na verdade, o abonath é um mcguffin mal utilizado.

"Sem Fronteiras" conta com um roteiro que mais parece um bom episódio da série, não um filme grandioso - embora o trailer sugira uma grandiloquência. Nova ameaça, novo desafio e novo desfecho, nada muito diferente de um episódio que, se ignorado, não faz grande diferença em análise macro do universo Star Trek (isto é, não existem mudanças radicais para a história do grupo). Em síntese, Kirk e sua tripulação são enviados para uma missão de resgate de outra tripulação em meio a pedregulhos e uma nebulosa, tendo depois de enfrentar um vilão relacionado com a missão. A partir disso, o grupo se separa, e é quando as personagens estão separadas que há maior desenvolvimento das suas personalidades, especialmente em relação aos coadjuvantes como McCoy e Scotty. Há um maior aprofundamento do grupo (tanto em relação a cada um dos integrantes quanto em relação aos componentes agrupados), inclusive a ponto de deixar um pouco de lado o bromance entre Spock e Kirk, o que também é benéfico, saindo da mesmice - os dois primeiros filmes já trataram de forma suficiente a esse respeito. Ademais, o script não tem gorduras (até mesmo um pingente dado a Uhura por Spock acaba tendo utilidade) e são poucos os furos (dois chamam a atenção: (a) como pode uma motocicleta parada há anos funcionar tão bem numa exigência tão drástica?; e (b) onde está a dra. Carol Marcus?). Verifica-se ainda no plot um forte viés saudosista, em três frentes. A primeira delas concerne ao falecido pai de Kirk, mencionado em uma conversa entre este e McCoy. Depois, são várias as homenagens carinhosas pelo também falecido Leonard Nimoy - nesse quesito, interessante a bifurcação que o roteiro faz. De um lado, o ator é homenageado por ser lembrado (como não faz parte do elenco essencial, poderia ser ignorado, o que, felizmente, não ocorre), o que inclui fotografias, até mesmo do grupo antigo da série (momento nostalgia bem comovente); de outro, a morte do Embaixador Spock (importaram a morte real do ator para o universo diegético, "matando" também, justificadamente, a personagem que o eternizou) reverbera no Spock novo, que passa a traçar novos planos pessoais.

Cabe mencionar que o texto é fiel à ideologia original da série e quebra as barreiras da discriminação e do preconceito: é fato notório que os roteiristas originais de Star Trek tinham um pensamento de vanguarda, querendo que a sua arte revolucionasse a sociedade, atualizando-a em prol de um mundo melhor (o que já a torna sedutora) - exemplo é o relacionamento inter-racial entre Uhura e Spock, o que, para a época, não era encarado como é hoje, consequência do lamentável preconceito daquele período (e que não foi completamente abandonado) -, tendo isso como premissa, "Sem Fronteiras" também tem o mesmo objetivo. Nesse sentido, (a) Kirk passa a ter uma mulher como chefe (aparentemente, no posto do Almirante Marcus) e (b) o espectador conhece o marido e a filha de Sulu (cuja homossexualidade era desconhecida). Houve uma tentativa de celeuma em torno da sexualidade de Sulu, certamente resultado das mentes pequenas a que se referiu Lex Luthor em "Batman vs. Superman" do mesmo preconceito que o casal Uhura-Spock sofreu à sua época. É compreensível a tese de que melhor seria criar uma nova personagem, abertamente homossexual, e não "mudar" a sexualidade de uma personagem já existente. O raciocínio é típico daqueles que, no geral, toleram os homossexuais, mas que são avessos às manifestações homoafetivas em público, que não consideram a homoafetividade "normal", que acham que pode influenciar outras pessoas (crianças e adolescentes em especial), e assim por diante. Ou seja, pessoas claramente ignorantes acerca do tema, e que se deixam levar por mitômanos retrógrados que criam um conflito onde não deveria haver. Para não verticalizar exageradamente, cabem dois questionamentos: em algum momento Sulu refutou qualquer atração por pessoas do mesmo sexo? Ainda que fosse esse o caso, sendo fluida a sexualidade, não poderia ele passar a sentir afeto e atração por outro homem, a ponto de constituir família com ele? A forma que o filme retrata o tema é tão delicada (sem alarde, sem propaganda, com naturalidade, quase imperceptível, como deve ser) que as justificativas de alguns para que não houvesse a breve cena refletem puro preconceito.

Tendo em vista o maniqueísmo no qual se assenta o heroísmo do universo Star Trek, um bom vilão é essencial, e Krall, nesse sentido, decepciona. Com efeito, por ser uma série clássica, impera a lógica "bem versus mal", muito embora o lado dos mocinhos não seja perfeito (Kirk é heroico, mas tem seus defeitos). No primeiro filme, o vilão era vivido por Eric Bana, competente no papel. No segundo, o excelente Benedict Cumberbatch ficou responsável por dar vida a Khan, tornando-se quase o protagonista do longa (lógica semelhante a "Batman - O Cavaleiro das Trevas"). Para o encerramento, novamente escolheram um ótimo ator, Idris Elba, para interpretar Krall, e a culpa não é de Elba se o vilão é fajuto. O maior problema é que os interesses e as motivações de Krall permanecem obscuros na maior parte do tempo, tornando dificultosa a sua compreensão enquanto antagonista. Khan conseguia manipular o espectador em razão dos plot twists, Krall é, ao menos de início, um malfeitor a ser enfrentado porque ele é mau (simplista assim mesmo). É só nos minutos finais que tudo fica claro, mas já é tarde demais para se afeiçoar a ele. A escolha do ator não é ruim, porém, não faz sentido escolher alguém do cacife de Idris Elba para que ele use próteses e maquiagem no rosto (o que, aliás, não chega a ser explicado de maneira plausível) - embora sua linguagem corporal seja eloquente. Por outro lado, os dois heróis principais, Kirk e Spock, ganham novas dimensões dramáticas, desafio bem executado por, respectivamente, Chris Pine e Zachary Quinto (este vem apresentando domínio cada vez maior de seu Spock, sem imitar o inigualável Nimoy). Uhura (Zoe Saldana), Sulu (John Cho) e Checkov (o já saudoso Anton Yelchin, também homenageado, mas apenas nos créditos) não conseguem destaque, porém, são competentes no que lhes cabe. Já dr. McCoy e Scotty recebem espaço bem maior que antes, o que agrega por, mais uma vez, inovar em relação aos anteriores: o trabalho de Karl Urban e Simon Pegg na atuação é de qualidade, todavia, fica claro que Pegg, como roteirista, dedicou atenção maior às duas personagens, rendendo bons momentos, ainda que eles ofusquem outros. Sofia Boutella entra no elenco como a encantadora personagem Jaylah, uma alienígena de vocabulário engraçado, inteligente nas lutas (seu mecanismo de distração é quase uma atração à parte, além de constituir instrumento essencial em algumas batalhas) e com um arco dramático pessoal desenvolvido na medida certa. Não apenas por constituir fato novo, nem somente pelo talento da promissora atriz, mas Jaylah dá um frescor à trama que ainda não tinha sido visto na trilogia.

Não menos importante por ser mencionada por último, a direção é surpreendentemente adequada. J. J. Abrams já alcançou o status de diretor confiável, filme seu dificilmente será ruim. O mesmo não se aplica a Justin Lin, seu sucessor em Star Trek (Abrams dirigiu os dois primeiros, Lin apenas "Sem Fronteiras"). Isso porque Lin tem o trabalho fortemente associado a "Velozes e Furiosos" por ter dirigido 4 filmes da franquia. Ou seja, não tem credenciais muito favoráveis, ao menos em termos cinematográficos. Não é à toa que "Sem Fronteiras" investe pesadamente numa ação frenética que, em alguns momentos, não combina muito com a ficção científica que deveria ser. Há muita explosão, muito CGI (além do que seria necessário) e muita artificialidade, remetendo aos pavorosos trabalhos de Michael Bay. Por outro lado, a câmera de Lin é inventiva e a narrativa que ele conduz é de fácil compreensão. Seu shaky-cam (câmera sem apoio, ficando instável na ação, normalmente nas mãos do operador) e as movimentações injustificadas incomodam em alguns momentos, entretanto, surgem belos planos, como aquele - indescritível - referente à cena em que os heróis chegam na base da Enterprise, e mesmo na sequência em que a gravidade é alterada, já ao final. Em outras palavras, o diretor exagera, mas não mostra preguiça, merecendo elogios pela criatividade. Tanto não é preguiçoso que mesmo as minúcias foram observadas, como o equipamento tradutor da alienígena que pede auxílio da Enterprise.

"Star Trek: Sem Fronteiras" certamente deixará os fãs satisfeitos com o encerramento da trilogia. Para os cinéfilos, também será satisfatório. Que o ciclo seja encerrado para os envolvidos e que venham novos projetos de qualidade.

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