sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Sete Homens e Um Destino -- Êxito na proposta

Um remake, pela condição que exerce na sétima arte (de reaproveitar uma ideia alheia já explorada em mídia audiovisual, ou seja, de não ser original quanto ao plot), fatalmente parte em desvantagem quando comparado com películas integralmente originais. Não se pode usar a regra de que o original é melhor porque toda regra tem exceção. É por isso que SETE HOMENS E UM DESTINO é um remake comparável com o original: o primeiro se tornou clássico por imposição social, isto é, agradou ao público em grau tamanho que garantiu a imortalidade, apesar dos erros - outros filmes se tornam clássicos por representar uma revolução paradigmática, o que não é o caso. O de 1960 tem erros e acertos, acontecendo o mesmo com o de 2016. Isso significa que, distantes da perfeição, os dois são bons exemplares do seu gênero, cada qual à sua maneira. Cabe lembrar que a versão de 2016 é, na verdade, um remake de um remake, tendo em vista que John Sturges (diretor da versão de 1960) se apropriou da obra de Akira Kurosawa, que tem argumento praticamente idêntico, adaptado à realidade nipônica ("Os Sete Samurais", de 1954), justamente em homenagens aos westerns. De todo modo, são variantes distintas de uma ideia praticamente idêntica, cada qual atrelado em premissas próprias da sua realidade - e é isso que os torna notóriosKurosawa queria homenagear os filmes do gênero faroeste, fez "Os Sete Samurais" com a lógica western dentro da roupagem japonesa, especificamente dos samurais. Sturges foi mais quadrado, dentro do padrão estadunidense da época. Agora foi a vez de Antoine Fuqua, que também soube fazer as adaptações necessárias.

Na trama, Emma Cullen (Haley Bennett) é uma habitante de um pequeno vilarejo vítima de ataques de pistoleiros liderados por Bartholomew Bogue (Peter Sarsgaard), que resolve contratar Sam Chisolm (Denzel Washington) para uma vingança. Sabendo da dificuldade do trabalho, taxado como impossível, Chisolm reúne seis outros homens para ajudar, além de treinar os cidadãos para a empreitada.

Sem a menor sombra de dúvidas, a grande virtude do longa é o amparo na pluralidade e na representatividade, bandeiras defendidas pelos Estados democráticos ocidentais contemporâneos. Se ainda existe o ideal de beleza nórdico, a demanda por representatividade dos negros fez com que Yul Brynner (do filme de 1960) fosse substituído por Denzel Washington como o líder do grupo. O elo entre o vilarejo e este também é novo, representado numa figura feminina forte e corajosa (Haley Bennett) que, mesmo depois de viúva, não se deixa abater a ponto de se acovardar face ao vilão. O grupo reunido também é heterogêneo, com um índio, um asiático e um mexicano. Trata-se de um verdadeiro ode à heterogeneidade étnica, valorizando o que torna os seres humanos especiais, suas diferenças. É verdade que o western é um gênero um pouco engessado e assentado em heróis másculos e caucasianos, mas a liberdade criativa foi salutar. São novos tempos, é uma nova sociedade, não havendo prejuízo em retratar um período histórico e um local com adaptações contemporâneas, afinal, isso não é essencial. Cabe mencionar que o tema é explorado ao nível de mencionar a discriminação com o diferente, corporificado no asiático Billy, bem como o choque cultural entre todos e o indígena - aliás, o ator Martin Sensmeier é nativo de uma tribo nativa do Alasca. Se é verdade que as personagens são arquetípicas, não é menos verdade que representam a pluralidade social e defendem a tolerância com o alheio, o que merece elogios. Em última análise, o filme acaba representando um discurso de tolerância, temática que precisa ser muito abordada no cinema.

Nesse sentido, é interessante observar que - assim como a versão de Sturges, que escalou, além de Yul Brynner, Steve McQueen e Charles Bronson, dentre outras estrelas da época (lógica do star system, preponderante em Hollywood há muito tempo) - o filme conta com um elenco bastante qualificado. Quanto a Denzel Washington, pouco se pode falar, pois o talento imensurável do ator fala por si só. Para um ator diferenciado, uma personagem diferenciada: Chisolm não aceita o rótulo de caçador de recompensas, referindo-se à terminologia correta para seu ofício (um embrião do politicamente correto, provavelmente), "subtenente legalmente empossado" - o trabalho é o mesmo, mas a expressão usada tem uma carga tão negativa que ele não a aceita. Não é apenas uma questão de linguagem, mas de abordagem (com um discurso sagaz pela sutileza na mensagem transmitida). Um subtenente legalmente empossado que fala comanche, a linguagem indígena. Por essas e outras, não haveria nome mais qualificado para o papel. Chisolm é sisudo, enquanto o primeiro que ele recruta, Josh Faraday, é o alívio cômico em razão da sua irreverância. A escalação de Chris Pratt para o papel revela-se adequada porque ele já viveu exatamente o mesmo em outros filmes. Disso decorre o seguinte questionamento: Pratt é um ator que só consegue viver um tipo de personagem? Se a resposta for afirmativa, ele é bastante limitado no trabalho. Até porque interpretar o galã desengonçado arrogante e engraçado não é tão difícil. Ele não está mal como Faraday, apenas é usa dos mesmos artifícios ao atuar como Starlord em "Guardiões da Galáxia", por exemplo. Talvez ele devesse aprender com Vincent D'Onofrio, que abraça mais e mais maneirismos charmosos (à sua maneira) para diferenciar os papéis uns dos outros. Seu Jack Horne é peculiar ao extremo - e muito engraçado. Sobre Ethan Hawke, seu talento é notório, mas ele foi prejudicado por um roteiro que renegou à personagem (Goodnight Robicheaux) um histórico nebuloso. O máximo de profundida que se lhe atribui é um bromance com Billy (Lee Byung-Hun), com sugestivo teor homoafetivo (o que seria coerente com a proposta). Peter Sarsgaard é desperdiçado com um vilão genérico. Haley Bennett convence como uma Emma Cullen audaciosa - o sobrenome da personagem é, coincidentemente, o mesmo de um dos principais de uma certa saga risível sobre vampiros, em que Cam Gigandet atua como vilão no primeiro filme (aqui, ele é apenas um capanga do vilão). A morte do marido de Emma (vivido por Matt Bommer) se torna engrenagem narrativa fundamental logo no início, em cena previsível.

Antoine Fuqua faz um ótimo trabalho de direção. Talvez não chegue à preciosidade de "Dia de Treinamento" (que também tem Denzel Washington e Ethan Hawke no elenco), mas é, como produto final, superior a "O Protetor" (outra parceria com Washington). Aqui, Fuqua faz o básico: contraplongée em Chisolm quando conversa com Emma, travellings laterais e panorâmicas amplas, cena de tiros no saloon, tudo no script básico do western (ao menos o tradicional, e não o tarantinesco). Além do básico, o diretor insere nuances do seu estilo próprio, como nos planos em que Denzel sobe uma duna com o sol nascendo nas suas costas (simbologia da empreitada heroica) e nos momentos de violência, que não são tão brandas (mais uma vez, distante do nível tarantinesco). A fotografia é linda, porém, com a tecnologia atual da qual dispõem os estúdios, isso não é tão difícil. O importante é não haver o trunfo da tecnologia em detrimento de um bom enredo. Também merece destaque o impecável design de produção, atento aos menores detalhes para além dos coldres. Não custa reiterar a abordagem pluralista e antidiscriminatória, opção elogiável de Fuqua.

Apesar de tudo isso, em visão micro, o roteiro é bastante frágil. Todos são submissos a um vilão poderoso e vil, entretanto, Bogue é um antagonista confuso. É compreensível seu escopo capitalista, porém, seu discurso que transita entre divindade e capitalismo se torna ininteligível de tão prolixo, e de forma desnecessária. Isso tem reflexos em cenas que deveriam ser impactantes, como a que ele chama um garoto para participar de um de seus discursos. Nesse quesito, a versão de 1960 é bem melhor. O roteiro até tenta criar novas camadas, como ao injetar um subplot referente à falecida irmã de Robicheaux, mas nada que se mantenha firme (no exemplo dado, o tema é absurdamente abandonado depois que é lançado na narrativa). Também estão lá pieguices (como um plot twist no terceiro ato, desprezivelmente previsível e a luta entre índios). Ou seja, se a narrativa é eficaz (em especial por copiar a estrutura dos anteriores, o que facilitou consideravelmente o trabalho), a construção da trama e das personagens é falha. Nem mesmo Chilson se torna um conhecido do espectador, que simpatiza com ele em razão do ator que o interpreta, e não pela personalidade cativante. Ainda, seria injusto comparar as trilhas sonoras, pois a fita de Sturges conta com uma das melhores canções originais da história do cinema, homenageada com justiça nos créditos.

É assim que se conclui que SETE HOMENS E UM DESTINO é um filme que tem êxito na sua proposta. Polifuncional, pretende homenagear um clássico objeto de afeto de muitos, apresenta um enredo histórico a uma nova plateia, satisfaz a parcela do público que sente falta do western nos cinemas hoje em dia (como surpresa positiva, o atualiza) e serve também como entretenimento. Se o argumento fosse original, seria um filme nota 9. É "apenas" um nota 7,5.

Bruxa de Blair -- Cinema com Rapadura

Clique aqui para conferir no Cinema com Rapadura a crítica de BRUXA DE BLAIR, que recebeu nota 4.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Últimos Dias no Deserto -- Era possível inovar muito mais

Com o intuito de se preparar para concretizar seu destino, Jesus passa um período no deserto, onde é tentado pelo Diabo. A Bíblia traz o relato em apenas onze versículos, no quarto capítulo do livro de Mateus, no Novo Testamento - ou seja, é bastante lacônica. A brevidade bíblica é a porta de entrada para o plot de ÚLTIMOS DIAS NO DESERTO, filme gospel um pouco acima da média (em um subgênero nivelado por baixo).

Verifica-se uma elogiável criatividade do roteiro ao preencher uma lacuna do texto bíblico, saindo da esfera do lugar-comum dos filmes da mitologia cristã. O vácuo deixado pelo livro é um espaço aberto para o exercício da criatividade, pois o argumento é o período em que Jesus passa no deserto, longe da civilização, mas tentado pelo Diabo. Trata-se de uma premissa bastante ampla, permitindo ao roteirista que explore as incontáveis possibilidades e concretize alguma que se encaixe na proposta. Em princípio, seriam duas personagens, porém, Jesus decide ajudar uma família que passa por um momento conturbado - (a) um adolescente que sonha com um futuro diverso do planejado pelo pai, (b) um homem prestes a perder a segunda esposa e com um relacionamento ruim com o filho e (c) uma mulher com saúde debilitada e provavelmente às vésperas da morte, abandonando marido e filho.

Com muita inteligência, o mesmo ator divide-se entre o papel de Jesus e do Diabo. O óbvio seria escalar dois atores diferentes, contudo, colocar o mesmo ator é uma opção perspicaz da direção, permitindo múltiplas interpretações. Sendo o objetivo do Diabo irritar e tentar Jesus, qual maneira seria melhor que usar a sua imagem? Certamente, este não ficaria contente ao ver aquele, símbolo da maldade, adotando o seu visual. A construção das duas personagens é dotada de riqueza: Jesus é retratado com bastante humanidade, encontrando-se mais próximo do universo dos homens que do divino - tanto é assim que, por diversas vezes, pede para conversar com Deus, não obtendo resposta (sua curiosidade sobre o Divino  é tão torturante que alcança o próprio antagonista, que, em tese, teria mais "conhecimento de causa") -, ainda que não se afaste completamente da sabedoria que lhe é peculiar (ensinando que "a mentira machuca também a pessoa que conta"); o Demônio tem um perfil coerente, usando todos os artifícios possíveis (mudando de forma e simulando a voz) e de muito sarcasmo e mentira para provocar o protagonista. Com maquiagem e penteado bem elaborados (inclusive para atenuar a estética caucasiana do ator), Ewan McGregor faz uma ótima interpretação dos papéis antagônicos: um herói cheio de dúvidas, inseguro e vacilante, mas com valores bem estabelecidos e fiel a eles; e um vilão que se diverte com o próprio sarcasmo (zênite na seguinte fala: "Quanta raiva! Você é mesmo filho do seu pai...") e com a própria maldade ao incomodar a jornada de Jesus. O que o ator escancara se torna palpável, em especial a insegurança (ou dúvida) de um e o sarcasmo provocativo do outro.

Os coadjuvantes são mais discretos. O adolescente é vivido por Tye Sheridan (o novo Ciclope, dos X-Men), que transita bem entre a puerícia e a maturidade. Seu pai coube a Ciarán Hinds, menos convincente que em outros papéis, confundindo frieza com truculência. É apenas no ápice da interação entre o pai e o filho que a subtrama consegue comover mais. Ayelet Zurer atua em papel menor como a mãe, com relevância muito inferior.

Rodrigo García faz um trabalho de direção razoável. Sem ousadia, o cineasta colombiano não foge do clichê da câmera em contraplongée voltada para o Sol, recurso básico do subgênero gospel usado para indicar a onipresença divina. Por outro lado, Jesus aparece mais no ponto de fuga da tela, indicando sua centralidade - eventualmente, aparecem planos mais interessantes, como aquele em que Jesus está próximo da câmera, sentado, e o Diabo em pé, mais distante. É um feijão-com-arroz que dá certo - o mesmo vale para a leve e instrumental trilha sonora. Emmanuel Lubezki, atual tricampeão do Oscar, foi o responsável pela belíssima fotografia de um deserto árido e opressor ao humano, isto é, um ambiente nada acolhedor. Também chama a atenção o esmero na edição de som, que ganha contornos realistas com os sons do vento.

A fita tem várias virtudes, porém, a vagueza do roteiro prejudica bastante o resultado final. Jesus tira galhos do seu cabelo e ri. Apesar de suja e corrupta, Jerusalém é "muito viva". Aparece uma estrela cadente no céu, que é admirada até mesmo pelo Diabo. Jesus tem seus momentos de diversão ingênua? As pessoas faziam de Jerusalém um lugar acolhedor? A beleza divina encanta até mesmo o Diabo? A arte permite inúmeras interpretações, entretanto, a película peca ao exagerar na amplitude das suas simbologias, o que se torna enfadonho. No final, quase nada acontece e pouco se extrai. Paradoxalmente, a subtrama da família se desenvolve mais que o aprimoramento pessoal do protagonista. Por fim, há um erro grosseiro no script, com um segundo final deslocado e completamente descartável.

Assim, a criatividade do argumento é a salvação de "Últimos Dias no Deserto", em termos de roteiro. Questões marginais se destacam eventualmente e há uma abordagem interessante da proposta. Porém, a experiência é positiva mais por aspectos técnicos que pela narrativa em si, que não abraça o potencial que tinha. Provavelmente, no meio cristão, será aprovado sem ressalvas. Diante da lacuna deixada pela Bíblia, era possível inovar muito mais.

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

O Homem nas Trevas -- Filme para não respirar

São poucos os filmes de suspense que conseguem agradar e surpreender positivamente com a facilidade de “O Homem nas Trevas” (“Don’t breathe” – não respire – no original). A inteligência começa no nome, que tem duplo sentido: “trevas” pode indicar tanto a cegueira do homem quanto a sua profunda tristeza; o “não respire” (no imperativo) pode ter como destinatário o espectador, extasiado na enérgica tensão do longa, ou as personagens, que não têm descanso quando a trama se inicia.


Repleto de surpresas, o roteiro, embora não fuja de algumas convenções tolas – coincidências (como munição que se encerra quando conveniente), imortalidades incômodas, desfecho clichê e assim por diante –, é dotado de um enredo singelo e um subtexto riquíssimo. Três jovens (Rocky, Money e Alex) acostumados a pequenos furtos em lares vazios decidem cometer um de maior monta na residência de um homem cego e solitário. Mesmo sabendo que ele é um ex-militar e querendo subtrair a indenização que ele recebeu em razão da morte da sua filha, o subestimam e acabam descobrindo, encarcerados no local, que ele é um habilidoso e frio psicopata.

Há um discurso ateísta e de descrença no ser humano. A direção de arte é sutil ao colocar a marca de um crucifixo na parede, indicando que o objeto esteve lá por algum tempo, mas que foi retirado (deixando a marca). Mais adiante, o homem escancara a sua desilusão mundana ao afirmar que “Deus é uma piada de mau gosto” e que Ele “não existe”. Seu fundamento é que, se existisse uma divindade, não permitiria um mundo com tantos males. Há verossimilhança entre o drama sofrido pela personagem e suas conclusões filosófico-religiosas – o que, evidentemente, não justifica a atrocidade de seus atos, resultado de uma psicopatologia severa. Também é nessa área que reside o retrato da falibilidade humana: as quatro personagens têm seus “defeitos”, não há conduta exemplar, aspecto que lhes concede realismo e humanidade. O homem cego começa como vítima, mas a situação brilhantemente se inverte, o que, por outro lado, não consegue torná-lo vilão (no máximo, antagonista). Isto é, todas estão erradas, ainda que eventualmente tenham motivações parcialmente nobres. Parecem arquétipos (o psicopata, o delinquente, o apaixonado e a mulher-objeto), entretanto, existem idiossincrasias em suas personalidades que apenas as vicissitudes da narrativa conseguem expor.

Também como subtexto há uma associação entre marginalização social e criminalidade. Novamente, não é uma justificativa para os atos criminosos, mas consequência lógica para as personagens. Rocky vê no furto uma catapulta para o almejado recomeço em sua vida ante a ausência de oportunidades. O plot não verticaliza tanto em Money e Alex, deixando de lado seus arcos dramáticos. Quanto ao primeiro, não fica claro se o crime é resultado de um desvio de caráter ou se ele é impelido a essa vida por circunstâncias sociais (mais provável, pois é quem mais domina o “mundo do crime” entre os três). É frágil a motivação de Alex (ganho fácil e do amor platônico por Rocky), e a subtrama do seu pai é nebulosa. De todo modo, é visível a ideologia da falta de oportunidades como força motriz do cometimento de crimes – em última análise, a falácia da plenitude da meritocracia. Não por outra razão, o homem cego afirma que “garotas ricas não são presas”. Trata-se, em síntese, de uma incisiva crítica social de cunho intelectual.

Jane Levy (Rocky), Dylan Minnette (Alex) e Daniel Zovatto (Money) são competentes nos papéis, mas quem brilha mesmo é o veterano Stephen Lang na pele de um homem assustador. Com poucas falas, sua linguagem corporal é gritante para delinear a personagem: um homem bruto, inescrupuloso, frio, habilidoso e extremamente perigoso. Em sua segunda aparição (a primeira é muito rápida), ele parece inofensivo, por não saber o que está ocorrendo na sua residência, porém, em um interregno curto, fica claro o que ele é capaz de fazer. Calculista, se assegura de trancar as saídas da casa (conjuntura similar à de “O Quarto do Pânico”) para ninguém fugir. Sua força e reflexos rápidos (o tiro no celular que vibra é sensacional) surpreendem, e o trabalho do ator se torna admirável nos momentos extremos – notadamente recordações do passado melancólico (que o tornou amargo) e irritação em momentos-chave. É uma das melhores interpretações de Lang.

Fede Alvarez escreveu um roteiro muito bom, contudo, é na direção do seu segundo longa que o promissor cineasta encanta. Três sequências maravilhosas merecem menção – para além da ausência de pudor ao mostrar violência, sangue e golpes. A primeira é o prólogo chocante (establishing shot em um plongée aéreo com travelling e zoom in lento até melhorar a nitidez da imagem), que apenas no terceiro ato se encerra, ao ser retomado. Ainda, poucos diretores novatos têm a ousadia de gravar um plano-sequência tão fascinante o do primeiro ato, em que o espectador é conduzido pela casa (para conhecê-la), como se fosse um quarto invasor, bem como manipulado a enxergar várias pistas do porvir (sapatos deixados na porta, machado, sino, tudo que futuramente recebe um propósito). Da mesma forma, a cena de perseguição no porão (provavelmente o ápice da tensão), recebe uma fotografia acinzentada para indicar a completa ausência de luz (razão pela qual Rocky e Alex ficam com os olhos esbugalhados), e o ambiente recebe picos de iluminação apenas quando o homem cego atira. A edição de som ficou aquém do potencial (barulhos altos incomodando o cego são momentos óbvios) – todavia, nada imperdoável.


Trata-se de um suspense refinado e exitoso na atmosfera de tensão. Pode não causar aqueles pulos da poltrona que muitos gostam, porém, o homem cego é bem mais amedrontador que a maioria dos filmes de terror imbecil que entram em cartaz semanalmente. 

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Herança de Sangue -- Mel Gibson, o salvador

Finalmente um filme de ação sobre um pai protegendo a filha. Perseguição, vingança, lutas, sangue, tiros, ritmo frenético... "Busca Implacável" deixou um legado e Liam Neeson não é o único ator com êxito no nicho. HERANÇA DE SANGUE, novo filme estrelado por Mel Gibson, é esse filme? Definitivamente não. "Blood Father" (nome original) é provavelmente um dos 10 piores filmes de ação de 2016 - e só não fica no top 5 porque Mel Gibson está lá para salvar o desastre.

Isso mesmo: Mel Gibson salva o filme de um desastre completo. É um daqueles longas em que é necessário pescar os bons elementos. O argumento não poderia ser mais genérico: John Link é um tatuador com um pretérito sofrido (dependência química em relação ao álcool e anos na cadeia), mas que agora tenta prosseguir sua vida no sossego do seu trailer. Porém, sua tranquilidade se esvai quando sua até então desaparecida filha o procura por estar com problemas. Inicialmente, ela pede apenas dinheiro ao pai, quando se encontram, todavia, ele decide protegê-la dos homens que estão atrás dela para matá-la. Mesmo sem saber a gravidade da situação da moça e colocando em risco a própria liberdade condicional, Link entra em rota de colisão com os criminosos, enfrentando incontáveis perigos.

A bem da verdade, apesar de genérico, o argumento até poderia render uma película empolgante, ainda que descerebrada. Algo do tipo filme B de ação dos anos 1980, sem muita reflexão, mas com pancadaria que empolga. Ocorre, porém, que quase tudo de "Herança de Sangue" é ruim. O prólogo é honesto ao explicar de forma franca como o filme funciona: (1) Lydia compra munição para uma arma; (2) Lydia insiste para o namorado Jonah não saber de nada; (3) Jonah exige que ela o ajude e vigie a casa, armada, para ninguém atrapalhar; (4) ele a droga e adentra na casa com outros homens, todos armados; (5) ela acaba entrando também e vê a revolta dos amigos (comparsas? capangas?) de Jonah ao não encontrarem o que procuram; (6) ele começa a torturar uma mulher para que ela revele onde está; (7) Lydia pede para Jonah não machucar a mulher; (8) Jonah responde para Lydia que, como prova de amor, ela deve matar a mulher; (9) por acidente, ela acaba matando Jonah; (10) foge rapidamente dos outros homens após assassinar o namorado. Não ficou compreensível? É isso mesmo: o filme não dá explicações, joga eventos esparsos que, com esforço interpretativo, podem fazer sentido, dentro de um enigmático contexto que nunca fica límpido. É como se o universo diegético estivesse arquitetado, e a história de Lydia (e do pai) fosse continuação deste todo maior, já previamente conhecido pelo público - isto é, parte-se da premissa que as lacunas são preenchidas pelo espectador, ou que ele já conhece aquele universo. Ainda mais grave, quando as explicações surgem, são mal elaboradas (confusas) e muito mal expostas (uma personagem narrando), o que revela a clara preguiça na elaboração do roteiro. Não que não seja possível entender nada, mas há no plot uma bagunça sem igual. O acidente do prólogo não foi por acaso: o filme todo parece um acidente na carreira de Mel Gibson.

Falando nele, Mel Gibson é o único elemento sólido da película. (Ele, pois o papel não o é. Afinal, um pai desnaturado que repentinamente se vê disposto a largar tudo pela filha não é exatamente crível. Com paciência, é possível "engolir" o arrependimento. Que diferença um bom ator faz, não?) Não apenas pela caracterização - penteado mal arrumado e para cima, barba grisalha, vestuário despojado -, que auxilia, mas seu trabalho de atuação é ótimo, como de costume (o que inclusive comprova seu potencial para projetos mais ambiciosos). Sua face cheia de rugas também privilegia o papel (bem semelhante ao ator, em sua vida pessoal) ao constar como "testemunha" da intensidade do que foi vivido. O trânsito entre emoções - drama, sarcasmo, brabeza, bravura etc. - é explorado por um tenaz Gibson, que, em síntese, encanta ao interpretar de forma vívida um papel denso - cuja densidade é picotada pelo roteiro mal desenvolvido, vale frisar. Duas cenas são exemplo do seu talento: o monólogo da sua primeira aparição na tela e o diálogo com a filha sobre suicídio. Aliás, Erin Moriarty, atriz que interpreta a sua filha, é muito fraca, ainda que se considere que o papel seja fajuto (e de personalidade inconstante, variando incoerentemente entre confiança e insegurança). Diego Luna tem o talento desperdiçado com um vilão unidimensional que aparece em poucos minutos e claramente não é páreo para o herói.

Para não deixar o mérito apenas com o astro, a direção de arte é competente, e não apenas pela caracterização do protagonista - quanto a este, o que o cerca também é coerente, como o trailer enclausurante e a televisão antiga. Os cenários são bonitos e o deserto californiano tendo Mel Gibson como personagem principal remete um pouco à clássica série "Mad Max" (excetuando o filme recente). Entretanto, isso soa como uma grave heresia, pois Jean-François Richet é um diretor pouco eficiente e nada criativo, ou seja, não chega aos pés do gênio George Miller. Richet até tenta usar artifícios como o zoom out saindo do close logo no início e evitando excesso de cortes, contudo, tendo em vista que o longa não cativa o espectador, que precisa ter muita empatia com o carismático Mel Gibson para se envolver minimamente com a trama, não se pode afirmar que a direção faz um bom trabalho - sequer na ação, que não faz sequer um plano que impressione.

Não obstante, não se pode olvidar que o que "Herança de Sangue" tem de pior é o roteiro. Não custa reiterar mais uma vez que o script tem crateras consideráveis, lacunas que incomodam, como o passado pouquíssimo explicado com um amigo - Michael Parks em um papel sofrível, pior que o deslocado William H. Macy como Kirby, que também é um amigo cujo desfecho é bastante óbvio. Obviedades não faltam: carro que funciona apenas no último segundo possível (duas vezes!), disfarces clichês (homem retira a barba, mulher pinta o cabelo). Nem coincidências: o noticiário fala da moça justamente quando ela aparece para flertar com um rapaz! Pior ainda as imbecilidades: dois dependentes químicos que se escondem justamente em um bar, a menina está fugindo do bandido e decide ir ao cinema... e o que é central no plot é uma briga familiar de traficantes que, em essência, não chega a lugar nenhum. Se tem algo positivo no roteiro é a conversa sobre o suicídio, que, de fato, possui uma substância a mais. Além disso, um texto preguiçoso, mal elaborado e previsível que sequer justifica a ação.

"Blood Father" entrou em cartaz nos cinemas brasileiros hoje, mas tranquilamente poderia ter ido direto para a locação. Não oferece nada novo, nada cativante, nada que chame a atenção. Ao menos não positivamente. Ainda bem que Mel Gibson evita que a sessão seja um desperdício.

terça-feira, 6 de setembro de 2016

Aquarius -- Belíssimo exemplar da sétima arte

"O dever das pessoas de bem (sic) é boicotar Aquarius" (Reinaldo Azevedo, revista Veja). Bobagem! O dever das pessoas de bem é fazer o que elas quiserem - evidentemente, dentro da legalidade. As orientações políticas são convicções de cunho pessoal, tanto em relação a quem faz o filme quanto em relação ao público. O momento de efervescência política no Brasil propicia debates acalorados e (lamentáveis) inimizades explosivas, porém, o presente texto é uma crítica cinematográfica, razão pela qual qualquer possível análise política do contexto do filme será descartada. A celeuma política é intensa e não são poucas as pessoas que tentam encaminhar a exibição de "Aquarius" em trilhos diversos dos culturais. Isso tudo, aqui, é irrelevante.

Em termos cinematográficos, AQUARIUS é um filme muito bom e merecedor dos elogios que recebe dos profissionais especializados - aqueles que também se despem das convicções políticas pessoais. Talvez seja até mesmo o melhor brasileiro da safra atual, eventualmente merecendo a indicação governamental para disputar uma vaga entre os indicados ao Oscar 2017 (melhor filme estrangeiro) - em termos procedimentais, o governo do país (1) cria uma comissão, aprovada pela Academia de Ciências e Artes Cinematográficas de Hollywood, que (2) indicará um filme nacional para a Academia (a partir da candidatura dos produtores), e esta (3) escolherá quais os filmes que concorrerão ao prêmio, os chamados indicados. Isto é, a indicação do governo é distinta da indicação da Academia (é uma indicação à indicação), esta (da Academia, e não da comissão nacional) é que é a importante em termos de marketing internacional. Ser o melhor brasileiro em uma temporada, contudo, não significa excelência. Indo além, "Aquarius" pode entrar no rol dos filmes brasileiros que entraram pela história, mas por razões externas à sua qualidade: a cinematografia pátria tem exemplares de melhor qualidade - podendo-se incluir, por exemplo, "Que Horas Ela Volta?". Em síntese, apesar de ser um filme muito bom, não está no top da cinematografia brasileira.

A sinopse está presente de maneira clara no trailer e é bem conhecida: Clara (Sônia Braga) é uma jornalista (especializada em crítica musical) e escritora aposentada que está satisfeita com a vida pacata em seu prédio Aquarius, em frente à praia da Boa Viagem (Recife). Sua felicidade começa a ser abalada quando a construtora Bonfim (e o nome não é esse por acaso) quer adquirir o seu apartamento para a construção de um novo empreendimento. O responsável é um rapaz jovem e determinado chamado Diego (Humberto Carrão). Clara não quer se desfazer do imóvel, porém, é a única moradora que ainda vive no edifício (todos os outros efetuaram a venda). É assim que ela compra uma briga de consequências incógnitas.

De forma genérica, vários os caracteres técnicos bem conduzidos. O primeiro deles é referente à impecável direção de arte, que é mais rica no início do longa, perdendo um pouco de força no decorrer da trama. Isso porque o começo da película se passa em 1980 (inclusive, nessa parte, Clara é interpretada por Barbara Colen, e não Sônia Braga), o que permite, por exemplo, um figurino marcante. É interessante também visualizar os carros da época, não sendo exagerado afirmar que a direção, sabedora da boa oportunidade de situar o espectador, investe na exposição em demasia de vários "carangos" situados em frente ao edifício Aquarius (isto é, aquela quantidade de veículos no início é proposital, para fins de contextualização temporal). Quando a fita muda para o tempo presente, o vestuário continua chamando a atenção: o vilão Diego com roupas de "mauricinho", dentro do perfil proposto, com a predominância de cores frias (azul claro e cinza) para remeter-se à sua frieza; a protagonista, majoritariamente com roupas de praia, inclusive um maiô liso e de cor escura, indicando a sua sobriedade; a empregada de Clara sempre usando um avental - e assim por diante. A atenção aos detalhes se faz presente quando Clara coloca uma viseira para ir à pria, da mesma forma que o apartamento conta com um belo pôster do clássico "Barry Lyndon" (premiado filme de Kubrick) - nesse último caso, há referência ao espírito saudosista da protagonista, um dos grandes pilares do filme. Até mesmo o penteado tem importância: nos anos 1980, Clara usa um corte estilo Elis Regina (nome dado pelo seu marido), o que não tarda para receber uma fundamentação lógica; depois, a Clara da Sônia Braga exibe fios longos e bem cuidados, o que também faz sentido no seu arco dramático. Uma última observação sensorial: a trilha sonora é tão maravilhosa que o filme se justifica também por ela, certamente a melhor nacional em 2016. Evidentemente, existem outras virtudes, mas as músicas escolhidas - e corretamente implantadas - são de difícil superação na sétima arte. Melhor nem mencionar nomes para não afetar a experiência.

Nesse sentido, "Aquarius" é o filme da Clara da Sônia Braga, o que significa dizer (1) que a personagem lhe é essencial (por consequência, nos raros momentos de sua ausência, há algum prejuízo) e (2) que a atriz carrega o filme praticamente sozinha, atraindo para si a atenção e dando conta da tarefa. Cabe esmiuçar a frase, pois é um dos pilares do longa. Clara é uma personagem fascinante. Embora exista um recorte temporal bem delineado, sua personalidade é facilmente conhecida e agrada rapidamente pela autenticidade, encurtando o caminho para a identificação cinematográfica secundária. Sua construção é tão bem feita que a naturalidade com que ela fica conhecida pelo público surpreende. A protagonista tem um pretérito sofrido em razão de uma séria doença, que deixou cicatrizes (não apenas físicas) e que reverbera nas mais diversas situações (afetivas e sexuais, a título exemplificativo). Seu drama biológico a moldou e deixou marcas bem profundas. Não obstante, Clara não se vitimiza, ela não é melancólica - ao revés, já nos anos 1980 ela era "prafrentex", não se incomodando com um casal empolgado em um beijo lascivo na penumbra de uma escada desocupada. E não por outro razão ela ironiza a cunhada, que questiona ao marido se ele a libera para confraternizar com outras mulheres na sua ausência. É bem visível que ela não é conservadora em relação a sexo e sexualidade, e que isso não fica apenas no discurso. Se "Aquarius" tem algo mais fascinante que a sua protagonista é a magnífica atuação de Sônia Braga ao encarnar o papel. É evidente que os momentos mais extremos se sobressaem, como na cena em que Clara discute com sua filha ou quando se irrita e discute de forma mais ríspida com Diego. Entretanto, em momentos mais sutis a atriz também é magistral: merece um olhar especial o sorriso dado ao visualizar a festa no apartamento superior, a confissão do estado de ressaca e a reação ao ouvir a música escolhida pela namorada do sobrinho, dentre diversos outros momentos que poderiam ser destacados. Seria injusto deixar de citar o principal antagonista: Humberto Carrão se esforça para tornar Diego um inimigo interessante, mas eles não chegam ao nível de Clara e Sônia Braga. Carrão injeta em Diego uma simpatia e uma paciência que se tornam irritantes, a protagonista acerta ao definir seu estilo como "passivo-agressivo" (e ele também tem razão, da sua maneira, ao definir a si mesmo como "do tipo focado"). Bem instruído com o "curso de business" e com um currículo provavelmente invejável, falta-lhe "formação humana e caráter" (novamente, palavras de Clara), vez que ele é capaz de artimanhas ocultas para atingir seus objetivos. Diego morde escondido e assopra quando visto. Surpresa positiva (para um ator pouco experiente), Carrão capta bem esse perfil. Todavia, Diego é um antagonista frágil diante de uma protagonista tão forte, e isso prejudica a narrativa.

É aqui que entra uma questão central: do ponto de vista narratológico, o longa tem deficiências consideráveis. Um roteiro se sustenta, em geral (atenção: trata-se de uma enorme simplificação com escopo didático, não a exposição de um cânone), por três pilares: argumento, construção de personagens e narrativa. O argumento é bem razoável, apesar de não possuir nada de extraordinário (o que significa, a priori, que é a narrativa que precisa surpreender). A construção das personagens também - devendo ser reiterada a ressalva quanto ao antagonista, aquém do brilho sensacional da protagonista, adicionada à concernente à quase insignificância das coadjuvantes (o que é aceitável por força do monólogo cênico de Clara). Já a narrativa vive de bons (maioria) e maus (minoria) momentos. A divisão em capítulos tem função quase pedagógica, o problema é que há uma sensação forte de inércia e preguiça para fazer o plot progredir (sair do lugar), tornando-se uma história rocambolesca e quase enfadonha, ao menos nos últimos 40 minutos. A conclusão é que falta contundência ao filme, que vive de espasmos da metade para a frente - ignorado o desfecho fenomenal. Quando tudo caminha para o tédio, há uma cena de maior dramaticidade. A abordagem das temáticas é acertada - especulação imobiliária (novo empreendimento), memória afetiva (o móvel da Tia Lúcia), sarcasmo (o nome da construtora, a entrevista de Clara sobre as novas mídias etc.), envelhecimento, tudo tem profundidade e é pertinente, sendo, porém, afetado com a diluição ocasionada pela extensão exagerada do filme (com reflexos também na direção). São muitas "gorduras" em um roteiro que poderia ser bem melhor.

Coerente em um sentido negativo, a direção toma exatamente o mesmo rumo: são vários os acertos, mas é também enorme a "gordura". Clara se alongando, ação de um traficante, exercícios na praia, alimentando os gatos... tantos momentos dispensáveis (em especial, mas não apenas, no final) que fizeram com que o filme tenha uma duração bem maior que o necessário. Era possível retirar, sem exagero, meia hora. O diretor Kléber Mendonça Filho, do ponto de vista holístico, chega quase à excelência - prova da sua qualidade é a belíssima elipse da primeira parte. Ser excelente também envolve o "feijão com arroz", logo, diálogos de montagem pingue-pongue são plausíveis. Há um exagero desconfortável na exposição da intimidade, que alcança o limite do aceitável. Muita nudez, sexo explícito, genitálias expostas (inclusive pênis ereto, e mais de um), orgia, a limpeza de um bebê para trocar a fralda... chega a ser até cansativo e soa como sensacionalismo para chocar e surpreender o espectador. Não soa como realismo porque a montagem com um grande número de cortes, em tese, afasta tal raciocínio. Em tese, tudo isso está lá para soar natural, dentro da atmosfera diegética e do cotidiano da protagonista, alterado com a briga com a construtora. Mendonça Filho também insere planos despropositados, como panorâmicas sem sentido, zoom in desconexo do momento, vários planos de fechamento de porta (de semântica nula na fita), pesadelos eventualmente ininteligíveis... o trabalho só não fica prejudicado porque as cenas mais dinâmicas compensam os momentos falhos, especialmente no ápice do drama. A tentativa de suspense merece ser ignorada - exceto em relação ao desfecho, que, reitera-se, é fenomenal.

De todo o exposto, conclui-se que "Aquarius" é um belíssimo exemplar da sétima arte, que compreende plenamente o significado que possui na área. No mínimo, representa o ímpeto de aprimoramento do cinema nacional, historicamente tímido (para falar o mínimo). Ignorando as questões políticas, alheias ao universo cinematográfico, "Aquarius" dá azo à esperança de solidificação da arte no Brasil. Existem bons profissionais, o exemplo está dado.