quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Herança de Sangue -- Mel Gibson, o salvador

Finalmente um filme de ação sobre um pai protegendo a filha. Perseguição, vingança, lutas, sangue, tiros, ritmo frenético... "Busca Implacável" deixou um legado e Liam Neeson não é o único ator com êxito no nicho. HERANÇA DE SANGUE, novo filme estrelado por Mel Gibson, é esse filme? Definitivamente não. "Blood Father" (nome original) é provavelmente um dos 10 piores filmes de ação de 2016 - e só não fica no top 5 porque Mel Gibson está lá para salvar o desastre.

Isso mesmo: Mel Gibson salva o filme de um desastre completo. É um daqueles longas em que é necessário pescar os bons elementos. O argumento não poderia ser mais genérico: John Link é um tatuador com um pretérito sofrido (dependência química em relação ao álcool e anos na cadeia), mas que agora tenta prosseguir sua vida no sossego do seu trailer. Porém, sua tranquilidade se esvai quando sua até então desaparecida filha o procura por estar com problemas. Inicialmente, ela pede apenas dinheiro ao pai, quando se encontram, todavia, ele decide protegê-la dos homens que estão atrás dela para matá-la. Mesmo sem saber a gravidade da situação da moça e colocando em risco a própria liberdade condicional, Link entra em rota de colisão com os criminosos, enfrentando incontáveis perigos.

A bem da verdade, apesar de genérico, o argumento até poderia render uma película empolgante, ainda que descerebrada. Algo do tipo filme B de ação dos anos 1980, sem muita reflexão, mas com pancadaria que empolga. Ocorre, porém, que quase tudo de "Herança de Sangue" é ruim. O prólogo é honesto ao explicar de forma franca como o filme funciona: (1) Lydia compra munição para uma arma; (2) Lydia insiste para o namorado Jonah não saber de nada; (3) Jonah exige que ela o ajude e vigie a casa, armada, para ninguém atrapalhar; (4) ele a droga e adentra na casa com outros homens, todos armados; (5) ela acaba entrando também e vê a revolta dos amigos (comparsas? capangas?) de Jonah ao não encontrarem o que procuram; (6) ele começa a torturar uma mulher para que ela revele onde está; (7) Lydia pede para Jonah não machucar a mulher; (8) Jonah responde para Lydia que, como prova de amor, ela deve matar a mulher; (9) por acidente, ela acaba matando Jonah; (10) foge rapidamente dos outros homens após assassinar o namorado. Não ficou compreensível? É isso mesmo: o filme não dá explicações, joga eventos esparsos que, com esforço interpretativo, podem fazer sentido, dentro de um enigmático contexto que nunca fica límpido. É como se o universo diegético estivesse arquitetado, e a história de Lydia (e do pai) fosse continuação deste todo maior, já previamente conhecido pelo público - isto é, parte-se da premissa que as lacunas são preenchidas pelo espectador, ou que ele já conhece aquele universo. Ainda mais grave, quando as explicações surgem, são mal elaboradas (confusas) e muito mal expostas (uma personagem narrando), o que revela a clara preguiça na elaboração do roteiro. Não que não seja possível entender nada, mas há no plot uma bagunça sem igual. O acidente do prólogo não foi por acaso: o filme todo parece um acidente na carreira de Mel Gibson.

Falando nele, Mel Gibson é o único elemento sólido da película. (Ele, pois o papel não o é. Afinal, um pai desnaturado que repentinamente se vê disposto a largar tudo pela filha não é exatamente crível. Com paciência, é possível "engolir" o arrependimento. Que diferença um bom ator faz, não?) Não apenas pela caracterização - penteado mal arrumado e para cima, barba grisalha, vestuário despojado -, que auxilia, mas seu trabalho de atuação é ótimo, como de costume (o que inclusive comprova seu potencial para projetos mais ambiciosos). Sua face cheia de rugas também privilegia o papel (bem semelhante ao ator, em sua vida pessoal) ao constar como "testemunha" da intensidade do que foi vivido. O trânsito entre emoções - drama, sarcasmo, brabeza, bravura etc. - é explorado por um tenaz Gibson, que, em síntese, encanta ao interpretar de forma vívida um papel denso - cuja densidade é picotada pelo roteiro mal desenvolvido, vale frisar. Duas cenas são exemplo do seu talento: o monólogo da sua primeira aparição na tela e o diálogo com a filha sobre suicídio. Aliás, Erin Moriarty, atriz que interpreta a sua filha, é muito fraca, ainda que se considere que o papel seja fajuto (e de personalidade inconstante, variando incoerentemente entre confiança e insegurança). Diego Luna tem o talento desperdiçado com um vilão unidimensional que aparece em poucos minutos e claramente não é páreo para o herói.

Para não deixar o mérito apenas com o astro, a direção de arte é competente, e não apenas pela caracterização do protagonista - quanto a este, o que o cerca também é coerente, como o trailer enclausurante e a televisão antiga. Os cenários são bonitos e o deserto californiano tendo Mel Gibson como personagem principal remete um pouco à clássica série "Mad Max" (excetuando o filme recente). Entretanto, isso soa como uma grave heresia, pois Jean-François Richet é um diretor pouco eficiente e nada criativo, ou seja, não chega aos pés do gênio George Miller. Richet até tenta usar artifícios como o zoom out saindo do close logo no início e evitando excesso de cortes, contudo, tendo em vista que o longa não cativa o espectador, que precisa ter muita empatia com o carismático Mel Gibson para se envolver minimamente com a trama, não se pode afirmar que a direção faz um bom trabalho - sequer na ação, que não faz sequer um plano que impressione.

Não obstante, não se pode olvidar que o que "Herança de Sangue" tem de pior é o roteiro. Não custa reiterar mais uma vez que o script tem crateras consideráveis, lacunas que incomodam, como o passado pouquíssimo explicado com um amigo - Michael Parks em um papel sofrível, pior que o deslocado William H. Macy como Kirby, que também é um amigo cujo desfecho é bastante óbvio. Obviedades não faltam: carro que funciona apenas no último segundo possível (duas vezes!), disfarces clichês (homem retira a barba, mulher pinta o cabelo). Nem coincidências: o noticiário fala da moça justamente quando ela aparece para flertar com um rapaz! Pior ainda as imbecilidades: dois dependentes químicos que se escondem justamente em um bar, a menina está fugindo do bandido e decide ir ao cinema... e o que é central no plot é uma briga familiar de traficantes que, em essência, não chega a lugar nenhum. Se tem algo positivo no roteiro é a conversa sobre o suicídio, que, de fato, possui uma substância a mais. Além disso, um texto preguiçoso, mal elaborado e previsível que sequer justifica a ação.

"Blood Father" entrou em cartaz nos cinemas brasileiros hoje, mas tranquilamente poderia ter ido direto para a locação. Não oferece nada novo, nada cativante, nada que chame a atenção. Ao menos não positivamente. Ainda bem que Mel Gibson evita que a sessão seja um desperdício.

Nenhum comentário:

Postar um comentário