terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Macbeth: ambição e guerra -- Ambição teórica

É sem dúvida uma tarefa hercúlea transportar para a linguagem cinematográfica qualquer peça teatral. Mais ainda ao se tratar de uma que não é uma qualquer, mas uma das maiores da história. A tradução para a linguagem do cinema não é retórica vazia, pois existem diferenças abissais entre as duas expressões artísticas. Sinteticamente, enquanto o cinema é focado na ação, o teatro se embasa no texto - o que se amplia em Shakespeare. Uma tragédia shakespeareana clássica como "Macbeth" representa um texto denso, e é nesse quesito que "Macbeth: ambição e guerra" falha, pois o filme se tornou demasiadamente alongado e, consequentemente, cansativo. É evidente que leve ele não seria, afinal, o livro, que é o texto-base, não o é. Mas a película deveria ter encontrado meios para reduzir o peso de uma obra tão grandiosa e profunda. Afinal, o original é Shakespeare, que, como é sabido, é um dos maiores nomes da história da literatura. A tragédia em questão é uma das mais conhecidas: conta a história de um general (Macbeth) que ouve de 3 bruxas que ganhará títulos de nobreza até se tornar rei, sendo então convencido por sua esposa que, para reduzir o caminho a ser trilhado, seria necessário excluir qualquer censura moral, matando quem fosse preciso para tornar-se rei. O que ecoa a partir de então é o conflito psicológico, brilhantemente representado pelo Bardo (apelido de Shakespeare) em críticas ainda hoje válidas.

Nesse ínterim, as legendas brasileiras inteligentemente se aproximam do texto original, conectando mais o espectador àquela diegese. Por sua vez, grosso modo, o texto original foi basicamente mantido, o que é muito mais impactante. Aliás, foram incluídos os célebres e magníficos excertos de Macbeth, como a reiterada fala "o que está feito, está feito" e o monólogo "som e fúria".

Para tornar sua obra mais atraente, o diretor Justin Kurzel, pouco experiente, aposta no estilo Tarantino, ou seja, abusa de cenas sanguinárias. Ao adaptar uma obra prévia, o idealizador tem uma margem de liberdade artística que concede a ele o poder de trazer o seu olhar particular, desde que minimamente fiel ao original. Dificilmente Shakespeare via em Macbeth toda a carnificina que Kurzel expõe, mas isso não chega a afastar a adaptação do original. Aliás, a direção é muito boa e com personalidade, com acertos técnicos em especial visuais - por exemplo, ao filmar na Escócia, onde se passa a peça.

O grande destaque é o visual: a fotografia é ótima, quase uma personagem à parte. Filmar na Escócia foi, de fato, um grande acerto. Há 3 momentos especiais em que se dá o ápice estético do filme: uma fotografia cinzenta na cena inicial de batalha, dando a entender a tristeza que a chacina exposta representa; o dourado preponderante após Macbeth tornar-se rei (fato sabido desde o início, pois previsto pelas bruxas); e tons alaranjados e avermelhdos na cena final, tons compatíveis com o que se quer indicar. Porém, há um exagero na névoa que incomoda porque quase obsta a nitidez dos planos. Além disso, é desagradável o slow motion na cena inicial (a de guerra), pois usado sem critério e de forma desnecessária - equívoco do diretor. Não que a névoa prejudique em demasia a fotografia, e não que o slow motion destrua a direção. Apenas mostram que um ótimo trabalho não é um trabalho impecável.

"Macbeth: ambição e guerra" tem muitos predicados técnicos. A edição de som é detalhista a ponto de incluir até mesmo o sopro do vento da fria Escócia, e a trilha sonora é acertadamente discreta, reduzida a instrumentos musicais (músicas não cantadas), para não destoar do ambiente. O que deve "saltar aos olhos" é a estética, não o som. A este bastou ser compatível. Assim como a atuação de Michael Fassbender, que surpreendentemente conseguiu compreender os vários conflitos internos de Macbeth e expor as nuances da sua personalidade volátil. A sua convicção cresce no decorrer da narrativa, e Fassbender, verdade seja dita, se mostra ótimo como um Macbeth representativo da miscelânea de sentimentos causada por seus atos. Vacilante, corajoso, ambicioso, obstinado, confuso, raivoso, louco... Macbeth reúne tudo isso em um só. O ator alemão não soou como melhor indicado para o papel, até pela sua aparência um pouco grosseira, mas mesmo essa característica acabou sendo verossímil. Talvez ele fique aquém apenas no monólogo niilista "som e fúria", o que não é tão ruim porque o texto em si já é forte o suficiente (ou seja, poderia ser potencializado por uma interpretação menos contida nessa fala). Por outro lado, a francesa maravilhosa e oscarizada Marion Cotillard decepciona profundamente ao atuar praticamente de forma unidimensional uma personagem riquíssima como é Lady Macbeth. O olhar de Cotillard continua expressivo, designando o talento ímpar da atriz. O problema é que Lady Macbeth é muito mais que um olhar, mais que uma voz, mais que um gesto. Ela tem tanta personalidade que é grande o risco de reivindicar para si toda a obra e assumir o seu protagonismo. Cotillard confundiu frieza com indiferença, distanciando-se do ideal que ela poderia atingir. O elenco conta ainda com David Thewlis, Jack Reynor e Sean Harris, os três em ótima forma e compreendendo que seus papéis são reduzidos para que apenas o protagonista brilhe. E ele brilha.

A equipe sabia que o texto garantiria um roteiro acima da média, desde que bem trabalhado (como foi, embora pudesse ser reduzido). Isso significa que os aspectos técnicos poderiam catapultar o filme ao status de obra-prima, o que não ocorre porque eles não chegam a ser memoráveis. Fassbender é ótimo, a fotografia é ótima. Para ser obra-prima, porém, precisariam ser incomparáveis, estonteantes, magníficos. O projeto é ambicioso, mas a ambição fica só na teoria (e na tela), restando "apenas" um filme ótimo. Clássico mesmo só o literário.

Até que a sorte nos separe 3 -- Comédia que deixa muito a desejar

Com um subtítulo ("a falência final") que dá a entender tratar-se de um epílogo, encerra-se a trilogia com "Até que a sorte nos separe 3". O primeiro episódio foi de razoável para fraco, o segundo, bem fraco. Este, novamente fraco, mas menos fraco que o segundo.

O grande trunfo do terceiro filme em relação ao segundo é a referência constante à realidade brasileira contemporânea. Esse ponto de partida já fica claro na primeira cena, em que o protagonista participa de uma competição em um programa do apresentador Luciano Huck, conhecido no ramo. Faustino ganharia um milhão de reais se emagrecesse mais que seu concorrente, André Marques. A cena é, ao mesmo tempo, (a) o start do filme, (b) a explicação para o emagrecimento notório de Faustino e (c) o alerta de uma narrativa fictícia porém atrelada à realidade externa. A narrativa em si, porém, se inicia com mais uma cena real: Tino trabalha (novidade, sim) vendendo biscoito e limpando vidros de carros em semáforos. O norte do roteiro foi o realismo, até aproximando a história do cotidiano do cidadão comum. Contudo, sua ideação foi melhor que a execução, isto é, por trás das boas ideias e das boas intenções há um trabalho mal feito.

O protagonista, Faustino/Tino, a quem incumbe carregar o filme nas costas, é uma sequência de equívocos. Começa na atuação fajuta de Leandro Hassum, que permanece no humor físico (mesmo magro) e termina com a sua exposição: Tino é interesseiro ao querer conhecer o pai do seu novo genro - o rapaz que o atropelou é filho do homem mais rico do país e namorado da filha de Tino, fatos desconhecidos porque este ficou em coma por 7 meses em razão do acidente -, mas é o seu conservadorismo que impera ao não admitir que a filha de 19 anos namorasse qualquer homem (ele a queria virgem e fica perplexo ao saber que ela não é). Deste modo, Tino é um anti-herói caricato e nada cativante. Um anti-herói no protagonismo não implica que ele seja exemplar (na verdade, não o é), mas Faustino não consegue cativar o público senão quiçá pelo carisma do ator, já bastante conhecido nas comédias brasileiras. Diversamente, Jane é interpretada por Camila Morgado, que, para sintetizar, representa o desperdício de uma grande atriz em um papel supérfluo na carreira de uma artista do seu cacife. Ao menos Jane tem maior profundidade que seu marido, ao defender sempre o mínimo, que é a felicidade da sua filha - melhor ainda que seja com um rapaz de família bilionária. O elenco de apoio é repetido (inclusive na qualidade razoável), com alguns novos nomes, podendo ser destacado o casal Rique e Malu de Carmo, respectivamente, Leonardo Franco e Emanuelle Araújo, não pela interpretação, mas por claramente representar uma sátira ao casal Eike Batista e Luma de Oliveira. O filho deles na trama, Tom (Bruno Gissoni), ao revés, de Thor Batista não tem nada.

Como previamente anunciado, a ideação do roteiro foi melhor que a sua execução. Isso porque, partindo da premissa, reitera-se, de uma história próxima ao Brasil hodierno, no estilo "a arte imita a vida", o roteirista Paulo Cursino aproveitou o momento pátrio para destilar ácidas e pontuais condenações a vários setores reais. A ideia é ótima, pois é salutar um cinema preocupado e atento com os fatos do dia-a-dia e com a realidade do país. Assim, o filme expõe diversas críticas, mas não as explora. Algumas delas são apenas mencionadas, como a hipocrisia de alguns religiosos em relação à homossexualidade, a tentativa de ocultação pela Igreja Católica dos escândalos sexuais de pedofilia e as manifestações diversas dos cidadãos brasileiros inconformados com a situação atual do país (abordagem en passant). Outras têm uma cena exclusiva a elas dedicadas, como a que se refere à Presidência e o ótimo monólogo do pai de Rique (Daniel Filho) em que ele cita vários estorvos para o avanço do Brasil ao mesmo tempo em que aponta a esperança nas gerações futuras. As duas cenas exclusivas merecem atenção especial.

No trailer recebe atenção uma cena de gosto duvidoso em que a Presidente é ironizada. No fundo, a cena agrada ou não o espectador a depender da sua orientação política, pois ela é uma só moeda com duas faces: ao mesmo tempo engraçada e desrespeitosa. A atriz Mila Ribeiro faz um magnífico trabalho de voz ao imitar a Presidente Dilma Rousseff, não apenas no timbre e na entonação como no próprio discurso (como o vício de linguagem "no que se refere"), comparado por Faustino ao modo de falar do Mestre Yoda (novamente uma referência bem contemporânea). Ao mesmo tempo, no geral, a alusão a eventos famosos relativos à Presidente é bem explícita e em sátiras escancaradas. Todas as suas "pérolas" (vide youtube) estão lá: pedaladas, mandioca, insistência no sufixo "enta", impeachment (na sutil fala "nada derruba essa mulher"), "mulheres sapiens" (sic) etc. Por outro lado, não se pode negar o desrespeito ao chamá-la de "presidanta" e "mulher sapa", por exemplo. É o que o filme tem de melhor e pior: seu momento mais cômico, mas também o de maior desacato a essa figura pública. Mister o advogado do diabo: o setor privado e o empresariado não ficam imunes às críticas, apontando que há mais culpados pela situação ruim na qual o país se encontra. Justiça seja feita, a irreverência é um franco-atirador. A empolgação foi tanta que houve um flerte com a desonra. Daí a boa intenção unida à má execução. Aliás, execução boa se deu em especial na pequena participação de Daniel Filho, em um discurso que vai da elite exibicionista ao povo consumista do país em que ninguém quer poupar, muito menos trabalhar. Novamente com justiça, aponta-se na direção de novas gerações melhores.

Em termos de narrativa, nem um plot twist conseguiu salvar "Até que a sorte nos separe 3". As piadas acabaram sendo preponderantemente gestuais; quando textuais, ou eram sem graça, ou, como dito, de gosto questionável. A cena em Brasília inicia com um plano pessimamente elaborado, digno de arrepios por se tratar de um trabalho profissional. Era a única que carecia de um aprimoramento técnico, mas que faleceu face à incompetência. O riso se verifica, mas em pequena medida. Logo, como comédia, deixa muito a desejar. A sensação é muito mais de "enfim acabou!" do que "já acabou?".

domingo, 20 de dezembro de 2015

Star Wars: episódio VII - O despertar da força -- Muito bom

A demora foi imensa, mas enfim os cinemas receberam o sétimo episódio da saga "Star Wars", que, na síntese mais reducionista possível, deixou os fãs satisfeitos com o resultado. Antes da crítica, algumas observações se mostram pertinentes.

A saga "Star Wars" tem importância ímpar para o cinema, revolucionando-o de uma forma que poucos conseguiram. A mudança de paradoxo na relação efeitos-história (a história não necessariamente depende dos efeitos especiais da época) é digna de aplausos e o universo criado em seis filmes merece atenção especial. Contudo, o maniqueísmo clichê que embasa a obra é bastante incômodo na medida em que não cede espaço para personagens dúbios ou paradoxais (o que chega mais perto é Han Solo). Isso sem falar que criatividade prevalece sobre profundidade, pois é muito mais explícita em "Star Wars" toda a fantasia exposta do que reflexões relevantes. Não é por outra razão que parcela do público encara o segmento da ficção científica um amálgama de tolices e infantilidades. Julgamento precipitado, mas não inteiramente falso - no caso de "Star Wars", basta lembrar-se de Jar Jar ou dos "ursinhos carinhosos" do sexto episódio. De todo modo, uma saga tão longínqua e frutífera (não apenas financeiramente) indubitavelmente tem predicados e merece atenção especial.

O problema ao abordar algo tão grandioso é enfrentar a potencial revolta dos fãs relativa aos apontamentos negativos. Fãs são cegos e não admitem discursos desfavoráveis à obra a que são devotos, é um fanatismo religioso xiita que jamais pode ser levado a sério. "Star Wars" é fantástico, mas não perfeito, e este é o espaço para julgar o que há de bom e de ruim. Assim, de forma racional e ponderada, tudo que for dito representa uma análise fria e objetiva, ao menos no maior grau possível, no intuito de eliminar ao máximo a subjetividade inerente ao ser humano ao emitir opinião. Não há nenhum prejulgamento benéfico ou maléfico à obra, logo, o presente texto é isento de um olhar repleto de expectativas como os de fãs e de haters. Nada contra, nem a favor. Apenas mais uma crítica.

Uma última observação preliminar: não há spoiler algum no presente texto. Qualquer revelação acerca da história limita-se ao que já foi divulgado antes mesmo da estreia, como o que foi exibido nos teasers e trailers e na sinopse oficial.

"Star Wars: episódio VII - O despertar da força" não é o melhor da série, mas é muito bom. Comparando com os anteriores, é fácil concluir que perde (substancialmente) apenas para o episódio V (o melhor), praticamente empata com o IV e com o VI e é superior à nova trilogia. Talvez o episódio IV o vença por constituir fato novo, tudo lá é novidade - mas só. É na comparação que o filme novo se torna destaque negativo: "O despertar da força" é um remake travestido de continuação. Sua grande falha reside aqui, o episódio VII copia o IV descaradamente: a personagem protagonista (Rey e Luke) encontra um ídolo para a apadrinhar (Han e Ben), dilemas familiares, estrela da morte (escancaradamente repetida!), um vilão mascarado que é marionete, um robô com uma mensagem (R2-D2 e C-3PO, e agora BB-8)... o esqueleto é quase idêntico. E isso representa duas faces da mesma moeda: há um claro respeito em relação ao pretérito, ratificando toda a estrutura e a lógica antes vista com uma roupagem mais moderna; contudo, apesar de alguns novos elementos, o roteiro não quis sair da zona de conforto - e é esse fator que prejudica demais o sétimo episódio. Fazer referências à trilogia inicial seria edificante, mesmo repetindo algumas personagens, como ocorreu. No entanto, "O despertar da força" vai além e imita bastante "Uma nova esperança" visando garantir a aprovação popular, o que se concretiza. Usa a lógica segundo a qual "em time que está ganhando não se mexe". Para os fãs isso representa uma nostalgia sem igual, não é à toa o sucesso de "Jurassic world" e do último "Exterminador do futuro". Todavia, em termos de análise cinematográfica, o novo "Star Wars" foi covarde ao não trazer nada de surpreendente e absolutamente novo. Não significa "cópia idêntica", tampouco "inovação zero". Mas as referências não são meras referências, e sim repetição. Isso tudo sem contar inconsistências diversas no roteiro, não expostas para evitar spoilers, mas que são facilmente detectados (e encontrados também na internet, é claro). Assim, o roteiro não é ruim, mas perdeu a oportunidade de ser ousado na história.



Merece ser ressaltado esse que foi mais um excelente trabalho de J. J. Abrams na direção. Ele não é o melhor diretor da atualidade, longe disso, mas é o maior especialista em tributos de ficção científica. Começou com "Star Trek", continuou com "Star Wars". É fascinante a deferência de Abrams para com o passado das franquias que revitalizou, pois ele, sabendo da legião de fãs que são obrigados a confiar no seu trabalho, age para agradá-los ao máximo, sem ignorar o rigor técnico. Em termos práticos, isso significa que tudo que é básico em "Star Wars" foi mantido: da síntese inicial e seu formato único às pontuações heterodoxas. A síntese inicial expõe a premissa de cada episódio, em um texto que caminha em uma espécie de cone; as pontuações não ficam em meros fade in e fade out, mas variam sempre. Esse, dentre outros fatores, indicam que o diretor estudou bastante o material anterior, para cultuar o que já foi feito. "O despertar da força" não destoa dos anteriores, mas claramente continua naquela diegese, ainda que 30 anos depois. Até John Williams estava na equipe! Grosso modo, visual e som foram reiterados, com um aprimoramento óbvio em relação ao primeiro, graças às novas tecnologias - o 3D não é extraordinário, não chama a atenção. Abrams faz ótimos efeitos, mas é minimalista ao não querer impressionar e priorizar o todo. Vale dizer, o diretor evita o CGI exagerado (o que é ótimo, pois dá maior realismo às cenas) e prefere sequências triviais ao fugir de planos estrambólicos de tirar o fôlego. Os efeitos visuais são um complemento daquele universo, não uma personagem à parte. Compõem aquele contexto para formar o panorama geral, sem roubar a cena. "Star Wars" não precisa do exagero e ele sabe.



A exumação de algumas personagens se mostrou fundamental. É evidente que amplifica o déjà vu, mas também permitiu um elo para sustentar a continuidade pretendida. Han Solo e Leia (Harrison Ford e Carrie Fisher) são a linha de frente no quesito, ambos ótimos como há décadas atrás. Cada um tem o seu caminho, mesmo que se encontrem e se recordem do romance vivido. Chewbacca também retorna, e também igual a antes. R2-D2, C-3PO e Luke têm participação diminuta, que possivelmente aumentará no futuro. Os veteranos servem de conexão, nucleares são os novatos (ainda bem!). Quem ganha destaque é Rey (Daisy Ridley), que aproveita a trilha deixada pelas personagens femininas fortes (thanks, Furiosa and others!) para engolir um episódio inteiro. "O despertar da força" é de Rey,  ela é sua dona, ao ser privilegiada pelo roteiro, pelas circunstâncias do cinema e pela brilhante atuação de Ridley, talento muito promissor. A aptidão de Rey é superestimada em algumas cenas, em excesso desconfortável. Mas o flagrante pode ser desconsiderado. Até porque a força que desperta se refere a ela. Não há episódio VII sem Rey, assim como não haveria "Star Wars" sem a força. Ainda pouco se sabe sobre ela (o que é bom!), mas ser a estrela mais reluzente de um projeto tão grandioso é digno de aplausos. Aplausos esses que alguns colegas novatos não recebem (Finn e Kyle Ren, especificamente). John Boyega interpreta Finn, um stormtrooper rebelde (que estranhamente não preocupa a Primeira Ordem, de origem não explicada) que serve tanto de mola propulsora para momentos de ação como para alívio cômico. Na prática, Rey é tão grandiosa que ofusca Finn. É belo e cômico vê-la rejeitando o seu auxílio no início, reconhecendo posteriormente que ele pode ser útil. Enquanto Rey tem uma estonteante constelação de valores, Finn faz um planejamento "tiro curto" da sua vida, o que inevitavelmente reduz a personagem. Lupita Nyong'o teve a sorte de interpretar Maz Kanata, que brilha muito, mas em poucos minutos. E brilha não apenas pela qualidade da atriz (auxiliada pela tecnologia), mas também pela inteligência na construção da personagem e pela sua relevância - é peça essencial. Andy Serkis vive o Líder Supremo Snoke em um CGI desnecessário, ainda que comum para o ator. Snoke ainda não representa muito, provavelmente terá maior destaque no futuro. Como ainda não se sabe muito sobre ele (apenas que o ator que o interpreta é excelente - para quem não sabe, é o Sméagol), melhor não se debruçar. Outro ainda obscuro é Poe Dameron, herói interpretado por Oscar Isaac, um herói carismático, sem defeitos e que pode oferecer mais no que depender do ator. Aliás, o novo androide, BB-8, é sinônimo de carisma: com sacadas espetaculares e a autoridade de alguém importante (como de fato ele é), BB-8 representa o parceiro ideal de Rey, único que ela não ofusca em razão, justamente, do seu carisma magnético.



Um filme tradicionalmente maniqueísta carecia de um vilão melhor - ignorando Snoke, que pouco mostrou a que veio. Kyle Ren beira o patético e não é apenas por sua imaturidade visível. A argumentação de que ele ainda está no início da sua carreira como Ren (seja lá o que isso signifique) é válida, mas insuficiente. A comparação com o eterno, icônico e insuperável Darth Vader é inevitável, havendo inclusive uma referência (presente já no trailer) a este cuja compressão é dificultada por não se saber ao certo (ainda) o seu objetivo (inclusive pessoal). É óbvio que Kyle Ren não chega aos pés de Darth Vader. Contudo, o novo vilão esbanja fraqueza e instabilidade, constantemente precipitado, não dá sustentação para o polo maléfico da obra. Kyle Ren é estúpido, fraco e muito aquém do que a saga merecia. Até mesmo o capacete utilizado acaba sendo ignorado para dar espaço para a interpretação fajuta de Adam Driver, um Ezra Miller mais assustador pelo semblante que pelo convencimento como malvado. Existem alguns conflitos pessoais interessantes e ainda pouco explorados, mas fato é que Kyle Ren é pouco significativo diante do potencial que detém. Ou seja, é possível salvar a personagem em um novo episódio. Sugestão: reduzir seu lado humano, diminuir suas falas, aniquilar seu descontrole e multiplicar sua maldade.



Colocar uma mulher como personagem protagonista foi um enorme avanço, corroborado pelo braço-direito afrodescendente. E muito do que já era consolidado na mitologia de "Star Wars" se fez novamente presente. Por outro lado, o roteiro em si poderia ser muito melhor. Porém, é por saber que a saga segue viva e ainda tem potencial a ser explorado que o cinema agradece. O novo não basta pela mera condição de novo. É preciso também ser bom. E "O despertar da força" é muito bom.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Olhos da justiça -- Sombra discreta e digna de esquecimento

Surpreendentemente, "Olhos da justiça", remake hollywoodiano do fabuloso "El secreto de sus ojos", filme argentino vencedor do Oscar em 2010, foi razoavelmente bem recebido pela crítica. Longe de ser aclamado, mas bem recebido. A surpresa reside em dois aspectos: a presunção de inferioridade da cópia em relação ao original e o altíssimo nível da película argentina. Não que não existam adaptações (tecnicamente, remakes) boas, mas o original é extraordinário. O cinema argentino tem um pé em Hollywood e o outro na Europa, razão pela qual, com roteiros que transbordam o cotidiano comum, tem se mostrado quiçá o melhor da América Latina. "El secreto de sus ojos" é sensacional, "Olhos da justiça", porém, é meramente ordinário e muito aquém do primeiro. Não obstante, alguns críticos dão um olhar paternalista à nova obra, analisando-a isoladamente ou comparando especificidades. Em perspectiva global, todavia, é um filme nota 6 comparado com um nota 11 (em escala de 0 a 10).

O roteiro é coerente e verdadeiro consigo mesmo, exceto por um plot twist presente no final que ficou prejudicado pela montagem (vide abaixo). A história se resume à busca e tentativa de punição de um informante da polícia pelo cometimento de um crime (estupro e posterior assassinato) contra a filha de uma policial. Especializados em combate ao terrorismo numa época de preocupação em relação ao tema (pós-2001), os policiais (inclusive o chefe) tentam abafar o caso, pois era mais importante preservar o informante infiltrado num potencial foco terrorista. No entanto, dois policiais discordam dessa decisão e tentam punir o responsável. É dessa sinopse que saem algumas reflexões de relevo. A principal, em teoria, é o conflito justiça versus vingança, bastante clichê e que dificilmente catapulta uma história. Nesse contexto surge também a obsessão humana consistente em Ray, que, durante 13 anos, por uma razão revelada no decorrer da trama (e que não se reduz à amizade com a mãe da vítima e colega de trabalho), procura encontrar o criminoso/informante; além da corrupção policial, pois, embora o argumento fosse um "bem maior" (?), o combate ao terrorismo com o auxílio de um civil, o resultado foi negligenciar um crime em que o civil se envolveu talvez como grande responsável. Em olhar atento, na prática, reflexão central também é o sacrifício de uma investigação em prol do combate ao terrorismo (alongamento da anterior), sem olvidar a outra face da moeda na trama, o sacrifício da burocracia e dos obstáculos oficiais em favor da punição de um possível infrator. A paranoia estadunidense quanto ao terrorismo também é patente, ainda mais por um dos períodos em que o filme se passa ser após o 11 de setembro. Por fim, as interações (de mera amizade ou afetiva) entre colegas de trabalho são também abordadas, em especial (porque a amizade entre Ray e Jess fica explícita em apenas uma cena, em que eles estão juntos conversando com a filha dela sobre a vida afetiva dele) o amor platônico que Ray sente por Claire (que cessa em uma nebulosa cena com o suposto marido desta). Entretanto, as reflexões são repassadas de forma rasa e picotada, sem um grande aprofundamento. O interesse afetivo que Ray nutre por Claire é artificial e fica ainda mais artificial quando ela o critica por ser demasiado lento, como se ela desse brecha, o que não ocorre. Os conflitos e sacrifícios ficam com o espectador, pois não existem diálogos reflexivos. Mesmo quando Ray discute com Morales, este não permite um debate.

A montagem não colabora ao criar duas linhas temporais que avançam concomitantemente, com o tempo presente interrompido por flashbacks de 13 anos atrás. Há uma priorização dos acontecimentos do presente, até porque o passado não permitiu um desfecho, contudo, os flashbacks foram inseridos para explicar o porquê de muito que acontece agora, situando o espectador. O problema é que isso impede o suspense, primeiro por se anunciar que o caso não foi, ainda, encerrado, e segundo porque veda qualquer possível clímax do suspense. O pingue-pongue temporal quebra a tensão das cenas, além de estragar o final do filme. Ademais, de tão confusa, a técnica dificulta o discernimento das duas linhas temporais, pois, apesar de terem envelhecido artificialmente os atores, não é fácil diferenciar o momento em que cada cena se passa, o que exigindo-se atenção a respeito de algo que devia ser mecânico. O ritmo lento do início cede a este vaivém desenfreado, progredindo tanto que o final soa exageradamente artificial, com uma importante decisão de Jess (um leve plot twist) nada coerente. Se a opção é interessante por revelar pistas e explicar os acontecimentos aos poucos, o excesso é prejudicial.

Nessa esteira de pensamento, o suspense policial dramático não gera ansiedade ao espectador, afinal, tudo é tão veloz que não há prazo para criar expectativas. Não que torne o filme desinteressante ou monótono, mas cria uma barreira antes de qualquer clímax possível. Contudo, a direção é até razoável, sem ousadia (a não ser na montagem), mas com bom trabalho de foco. Inferior ao original argentino, é claro, mas razoável, amparada por cenários variados e bem compostos (em especial no pretérito), uma fotografia levemente sombria e uma mixagem de som inteligente (com silêncio nos momentos certos).

A atuação talvez gere alguma controvérsia. Muito embora alguns defendam que Julia Roberts (Jess) esteja em alto nível, na verdade, a atriz não atinge o ápice do seu talento. Há que se reconhecer a sua coragem na caracterização simplória e distante da vaidade comum entre estrelas de Hollywood, o que aponta um amadurecimento artístico profissional notório. É significativo ver o esforço de Roberts em ter reconhecido o seu talento, mas, para uma mãe que perdeu a sua filha, ela não convence no luto e é melhor nos momentos racionais. A raiva de Jess é muito melhor concretizada que pela tristeza em razão da perda, pois Roberts não comove. Muito melhor está Chiwetel Ejiofor, pois Ray representa um luto maior, de sorte que Ejiofor está ótimo no papel e sustenta o filme quase que sozinho. Ainda que pouco plausível, a obsessão de Ray pelo caso é um dos melhores elementos do filme, vez que o ator encarna esse mote com afinco. Dos três principais é Nicole Kidman que tem o menor papel, então a atriz acaba sendo discreta de acordo com a inteligência da personagem, que praticamente se sobressai apenas na cena do interrogatório, em que é ofendida. Dean Norris é de pouca representatividade, ao contrário de Alfred Molina (Morales), interpretando de forma magnífica o policial corrupto, convencendo qualquer um do seu discurso  (em tese) questionável. Ejiofor carrega o filme nas costas, Molina dá uma ajuda substancial quando aparece.

Mas ninguém salva o remake de ser uma sombra discreta e digna de esquecimento de uma obra anterior (esta sim sensacional e memorável).

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Pegando fogo -- Sem grandes lamentos nem exaltações

A culinária não é objeto de muitos filmes, provavelmente porque não chega a ser interessante do ponto de vista financeiro. É necessário um elemento criativo, como se observa em "Ratatouille". "Pegando fogo", diversamente da animação mencionada, aposta em um realismo dramático com uma narrativa que gira em torno do chef Adam Jones. Interessante que o nome do filme, inicialmente previsto, era justamente esse, tendo sido mudado para "Burnt", opção mais acertada (inclusive melhor que a versão brasileira). Com uma fotografia baseada em tons claros, compatível com o ambiente de uma cozinha, e cenários tipicamente londrinos, o filme é razoável, porém, falta algum tempero a mais.

É possível enxergar "Pegando fogo" claramente em perspectiva diacrônica, pois o aspecto temporal é marcante. O passado é revelado aos poucos, mas é central para a construção do presente e do futuro. Fica claro que Adam Jones foi um grande pupilo de um renomado chef francês, atingindo seu auge, passando depois por um declínio que teve como causa o uso de drogas (lícitas, como o álcool, e ilícitas, de todos os tipos). A relevância desse pretérito marcado pela penumbra é que a construção dos eventos que seguem depende apenas de Jones, que pode fracassar novamente ou retornar à fama e ao reconhecimento. É por isso que, no presente, o protagonista investe no abandono parcial do seu pretérito: o que ele teve de bom ele tentou retomar, como o know-how de Michel e os benefícios de Tony (em especial, a estrutura); de ruim, Jones tenta abandonar, em especial as drogas que o atormentaram. Surgem também novos elementos, em especial Helene. Como em um aprimoramento pessoal, Adam Jones quer um recomeço, expurgando a si mesmo de seus males, mantendo, porém, as virtudes. É essa a sua tarefa e o caminho em direção ao seu intento é o objeto do filme. O futuro se mostra em um final decepcionante (spoiler!), transformando o drama em um conto de fadas estupidamente tedioso.

Como já dito, Adam Jones não é apenas o protagonista: ele é a essência do próprio filme. É em torno do chef que tudo gira, com a sua presença constante. Jones é dotado de uma personalidade muito forte, é genioso, exigente (com os outros, mas também consigo mesmo), perfeccionista, crítico, grosseiro e ambicioso. Ele tem pouco tato nos relacionamentos interpessoais, não se importando ao ferir os que o rodeiam - mesmo os que o amam. A personagem é vivida por Bradley Cooper, que, como sempre, tem ótima atuação, provavelmente já acostumado com personagens levemente desafiadoras (que não chegam a exigir mudanças drásticas) e que se mostram centrais nas tramas. Cooper é um dos melhores de Hollywood, notadamente oscarizável; mostrando-se confortável no papel com francês fluente e experiência na cozinha, não deve ser sequer indicado porque a categoria de melhor ator está muito concorrida. Com um figurino que transitou entre o despojado e moderno (em especial uma bela jaqueta de couro azul) e a tradicional roupa de chef, Cooper compreende a necessidade de ser o centro das atenções, hipnotizando o espectador a partir do gênio forte de Adam Jones. Foram três os pilares a partir dos quais foi feita a sua construção: raiva, tendendo à grosseria; ironia, como ao provocar o inimigo; e galanteio acidental, a sombra inevitável do ator. Bradley Cooper foi escolhido a dedo e, se não está em um papel eterno, é por deficiência que a ele não pode ser imputada, mas por limitações inerentes à narrativa.

Adam Jones é central, é dele que parte a história. Como não se trata de um monólogo, as ramificações são as interações de Jones com os coadjuvantes. O grande destaque é Tony, interpretado com excelência por Daniel Brühl, provavelmente só não maior porque o roteiro foi tímido e não se permitiu avançar na subtrama. É Tony quem dá a Adam a oportunidade para recomeçar a carreira, no restaurante que seu pai é dono, dando como justificativa esse fator. Na verdade, há um motivo oculto que embasa a confiança de Tony em Adam, o qual dá um up na subtrama, com dois momentos de destaque. Essa subtrama, ao sair do clichê, dá a entender que surgirá um novo e interessante conflito, quando, lamentavelmente, o roteiro não o verticaliza. O papel de Brühl acaba sendo subestimado provavelmente por força do conservadorismo hollywoodiano, que não permitiu a inserção de um tempero a mais na narrativa. Por sua vez, Emma Thompson atua como a médica de Jones, responsável por acompanhar sua sobriedade. O relacionamento da médica com o chef tem alguns bons momentos, muito mais pelo discurso que pela interpretação. A subtrama é pouco relevante e nada inovadora. Já o cada vez mais famoso Omar Sy atua como Michel, sendo efetivamente importante em apenas uma cena, justamente quando o filme decresce em direção ao tédio - o plot point é inteligente não tanto por surpreender, mas por chacoalhar a narrativa. Matthew Rhys teve a sorte de interpretar um pseudo-vilão, em um trabalho muito bom do ator, com papel coerente e um pouco enigmático. Um defeito é a obscuridade em relação ao passado entre Adam e Reece, todavia, este representa a competitividade sadia imanente ao âmbito profissional - Cooper e Rhys têm ainda um diálogo profundo numa cena rica e muito bem abordada. Depois de Tony, é Reece o coadjuvante que brilha. Uma Thurman faz uma participação minúscula, mas é boa surpresa, não apenas pelo seu talento, mas também por constituir engrenagem central nos planos de Adam. Alicia Vikander vive Anne, affair do protagonista no pretérito, que surge como deus ex machina e, com um passado exageradamente nebuloso com Adam, desaparece para ressaltar sua condição secundária na narrativa. Vikander não pode sequer ter seu trabalho analisado, pois o roteiro parece ter abandonado a ideia inicial de torná-la peça aleatória para gerar dúvidas quanto ao final. Mas é a Sienna Miller quem coube o papel de Helene, a pior personagem, vez que altamente volúvel, instável e desnecessária. A bem da verdade, Helene está lá apenas para justificar um romance óbvio. Clichê e abusivamente previsível, ela prejudica muito o filme, é o oposto de Tony. A atriz deu azar. Último do elenco a merecer destaque individual, Sam Keeley se mostrou promissor como David.

Para um olhar mais exigente, o foco aleatório na comida faz com que "Pegando fogo" não fascine. A gastronomia é retratada de forma lateral, e é apenas assim que deve ser encarada. O diretor tem o mérito de retratar bem a realidade de um restaurante chique (em especial a cozinha), com cenas bem gravadas, ótimo rack focus em alguns diálogos, uma boa direção com uma edição adequadamente veloz - notadamente em algumas elipses já mais para o final do longa, que, alerte-se, não prejudica o ritmo regular. Em síntese, um filme apenas razoável, sem grandes lamentos nem exaltações, que consegue entreter sem encantar. Podia mais, mas não quis.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

O clã -- Máfia argentina

Mais um filme sobre máfia? É necessário algum diferencial. "O clã" relata a história real de uma família mafiosa argentina especializada em sequestros na década de 1980 (sequestravam pessoas eventualmente próximas, como vizinhos, para, posteriormente, extorquir seus familiares para receber um alto montante pelo resgate). Ao menos não é uma máfia italiana ou estadunidense, na verdade, suas práticas têm proporções comparativamente reduzidas (em relação àquelas), o que, evidentemente, não reduz a censurabilidade das suas condutas atrozes. Um diferencial é o pano de fundo, um contexto de efervescência política, notadamente a transição de uma ditadura militar bastante rígida para um regime democrático. Ainda que se trate de elemento circunstancial, tem relevância à medida que aparece também lateralmente: primeiro, pela inserção de cenas reais (mais detalhes adiante); além disso, porque explica a ocultação de alguns crimes e a impunidade (até certo prazo) dos mafiosos. Ao invés de reduzir o filme às atividades ilícitas, o roteiro expõe a conjuntura, recebendo maior densidade (sem a necessidade de aprofundar).

Tendo em vista a participação maior de dois atores, pode-se questionar quem é o protagonista de "O clã". Nesse sentido, a melhor resposta parece ser a vida criminosa da família. Do ponto de vista cinematográfico, esse questionamento não é simplório, pois, por exemplo, nem sempre uma personagem é protagonista, podendo ser, por exemplo, um sentimento (como a raiva no maravilhoso e também argentino "Relatos selvagens"). O protagonista é o elemento nuclear, pessoa ou coisa latente na obra inteira, sobre a qual o universo diegético gira e que move as ações do filme. No caso de "O clã", apesar de o líder da família soar como exercente de tal função, na verdade, tendo em vista a narrativa ser subdividida em 3 sequestros e o pós-prisão, são as atividades criminosas e a sua defesa perante as autoridades que se mostram centrais, logo, o protagonismo é exercido pela vida criminosa das personagens. Central é o cometimento dos delitos, seu modus operandi, seu planejamento e execução, suas consequências, e assim por diante. Também poder-se-ia defender como protagonista a sua hipocrisia ou cinismo, pois a família Puccio, em diversos momentos, tenta aparentar normalidade (leia-se honestidade e licitude), enquadramento retratado em vários momentos no filme. O chefe da família trata os sequestros como uma carreira (é essa a palavra exata usada), exigindo o auxílio dos seus filhos - e os que se negam são encarados como ingratos. Arquímedes Puccio, inclusive, age normalmente no seu cotidiano, chegando até a lavar a calçada, afinal, ele é um cidadão comum. Isso tudo sem contar a oração antes das refeições, pois mesmo os criminosos são religiosos. (Spoiler!) Arquímedes, coerente, na frente das autoridades, inclusive um juiz, nega a condição de criminoso, defendendo, ao revés, que é vítima de outras pessoas, que o coagiram a atuar daquela forma. Portanto, a insistência em retratar a família Puccio como uma qualquer que "apenas" opta por uma vida à margem da legalidade torna possível advogar pelo protagonismo da hipocrisia. No entanto, esse argumento cai por terra à medida que o lado humano dos Puccio é frequentemente reiterado, como se eles quisessem convencer a si mesmos que sua vida criminosa não fosse extraordinariamente reprovável, isto é, são pessoas que cometem delitos sabendo dessa condição mas acreditando não agir de maneira tão monstruosa. Parecem viver outra realidade - em especial, é claro, Arquímedes.

No que se refere à atuação, a personalidade das personagens e a medida da sua exibição se mostram fundamentais. Guillermo Francella interpreta Arquímedes Puccio, o patriarca da família e cérebro da máfia. Cabe destacar logo de início tratar-se de um comediante atuando em um papel dramático/sério, e Francella tem ótimo desempenho, certamente o melhor do elenco. O ápice é atingido quando Arquímedes briga com seu(s) filho(s) (em especial Alejandro), diversamente da sua faceta costumeiramente afetuosa. Na verdade, Francella entendeu a importância do lado humano da personagem, tendo a sensibilidade para marcar as gradações emotivas de cada momento, do racional e tranquilo na "carreira" até o revoltado e agressivo com Alejandro. Arquímedes é o cérebro do clã, o que não significa que seja despido de emoções - e o ator compreendeu essa condição de maneira magistral. Por sua vez, Peter Lanzani interpretou Alejandro, se mostrando aquém do parceiro Francella ao não conseguir atingir a dramaticidade exigida do papel. Lanzani cresce apenas no conflito, e, mesmo assim, não convence. O papel é maior que o ator, e até Guillermo (Franco Masini), de participação menor, tem melhor desempenho. Para tirar os holofotes de Alex, surge Maguila (Gastón Cocchiarale), que aparece menos, mas reforça o lado familiar dos Puccio (sem olvidar as atividades delituosas).

"O clã" conta com um design de produção milimalista e verossímil em tons envelhecidos para ressaltar a época (década de 1980). Tem ainda uma edição de som razoável, contraposta à mixagem de som defeituosa, que peca pelo exagero. Aliás, a trilha sonora tem enorme destaque, mas está muito alta. É uma trilha sonora que surpreende ao fugir do clichê pois mesmo nas cenas mais tensas a música é sempre agitada (como um rock leve e de época), evitando que o filme se torne um drama cansativo, concedendo leveza e divertindo. Uma pena a prevalência quase absoluta do inglês.

Ademais, a maior virtude do filme reside na direção. Rack focus (mudança de foco) nos momentos certos, boa montagem e ótimo ritmo - exceto o início lento, que poderia ser mais direto. O auge é atingido com um plano-sequência belíssimo a formar um grand finale.  É a melhor cena! Inteligente também a inserção de cenas reais com falas de políticos na televisão, quase como se fosse um documentário, situando o espectador e destacando o realismo histórico - uma ótima ideia. Pablo Trapero saiu do trabalho com um saldo altamente positivo, tendo já recebido merecidos prêmios. Talvez "O clã" não tenha potencial para uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro (foi pré-indicado como representante argentino), pois o recente "Relatos selvagens" é muito superior (um dos melhores da década). Ainda assim, é um ótimo filme.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

À beira-mar -- Viés europeu ortodoxo em Hollywood

A direção tem se tornado um objetivo de vida de alguns atores. Talvez cansados de receber comandos, decidem participar dos bastidores e ter seu nome nos créditos como "a film by". Angelina Jolie está com seu terceiro trabalho como diretora em "À beira-mar", em que não apenas dirige, mas também atua (como co-protagonista ao lado do marido). Jolie também escreveu o roteiro, para deixar claro que o filme é dela. É melhor que os dois anteriores por ela dirigidos, mas isso não é grande mérito.

"À beira-mar" tem um viés europeu ortodoxo: é um filme longo, parado, bastante centrado em diálogos e com várias cenas de nudez e sexo. Dificilmente um filme de mais conversa e menos ação consegue o feito de Richard Linklater na trilogia "Antes do amanhecer", caso raro de não se cogitar monotonia. A prevalência dos diálogos (e mesmo do silêncio eloquente) é um ímã que puxa o filme em direção à monotonia, são raras as obras que fogem disso - e esta não é exceção. É tão europeu que se passa no litoral francês e é bilíngue (inglês e francês) - sim, até mesmo o casal principal fala francês. Porém, é um filme hollywoodiano.

Em interpretação superficial, Angelina Jolie dá vida a Vanessa, mulher amargurada, depressiva e infeliz no relacionamento. O problema é: o que a aflige? São lançadas algumas pistas em uma montagem agressiva através de flashes, mas é apenas no final que se descobre (melhor dizendo, que é confirmado) o motivo da sua insatisfação no relacionamento. Jolie mostrou alguma doação ao exibir os novos seios, por exemplo, mas sua atuação faz de Vanessa uma figura dúbia, pois é impossível saber o que ela quer. A depressão está em um grau tão severo que não há nada que a agrade. De forma incoerente, ela encontra a felicidade através do voyeurismo, ao descobrir um buraco na parede que a permite observar os vizinhos do hotel - depois, a prática voyeurista é dividida com o marido, de modo que, apesar de o casal dividir momentos assistindo ao outro quarto, isso não consegue efetivamente aproximá-los. Vanessa é tão azeda e enigmática que sua criadora e intérprete não consegue cativar o espectador a partir da personagem. É uma personagem de difícil compreensão. Restou a Brad Pitt (Roland), marido real e fictício, a difícil tarefa de parecer mais interessante, e, de fato, Roland é mais fácil de compreender: Vanessa é amarga, Roland sofreu por alguma razão e desconta na bebida, o que, todavia, não o impede de demonstrar que ainda ama a esposa. A narrativa tenta causar uma angústia em relação à razão do sofrimento do casal, mas as pistas acabam deixando tudo bastante óbvio, então o pretenso clímax fica prejudicado. Pitt se sai melhor, com uma personagem melhor delineada e com maiores detalhes. Quem é Vanessa? Uma ex-dançarina, agora esposa introspectiva. Quem é Roland? Um escritor habitualmente ébrio com dificuldade em escrever um novo livro. Aliás, a dificuldade de Roland para escrever é uma clara metáfora que aponta que o relacionamento afetivo coopera na vida das pessoas para o bem e para o mal, ou seja, uma boa fase no relacionamento auxilia nos demais aspectos da vida privada, e a situação contrária também pode ocorrer. Vanessa parece odiar o marido, que parece vítima das circunstâncias, causando simpatia por ele e antipatia por ela. O elenco é pequeno e Niels Arestrup é o coadjuvante da melhor atuação.

O roteiro original escrito por Jolie não é ruim, mas é morno. Trata-se de um romance dramático sem grande densidade e de orientação questionável. Partindo da premissa pela qual "baú aberto não protege tesouro", verifica-se uma comparação entre dois casais contrapostos: casados há 14 anos, Vanessa e Roland, em evidente insatisfação; recém-casados, François e Léa (Melvil Poupaud e Mélanie Laurent, ambos muito bem), em felicidade plena. A dicotomia casal antigo infeliz versus recém-casados felizes é interpretada de forma ambígua por Vanessa, em uma mistura de inveja e voyeurismo. Ela chega a oferecer Léa para seu marido, quase como um produto, atitude que apenas faz sentido com o decorrer da história. Vanessa materializa a inveja da perfeição (que ela vê no outro casal). O "resumo da ópera" (spoiler!) é que a felicidade alheia incomoda, núcleo tolo que decepciona ao final.

De todo modo, é no visual que "À beira-mar" conquista, pois tem uma fotografia estonteante. Sem eufemismo, é a sua maior virtude. O litoral francês é lindo e tem muitas paisagens bem filmadas. A direção teve o trabalho facilitado em razão dos poucos e belos cenários em detrimento da ação, mas não consegue entreter o suficiente para conseguir a atenção, recaindo em uma monotonia fatal. Não obstante, Jolie faz interessantes movimentações de câmera, em especial com zoom, destacando-se apenas ao filmar reflexos para retratar olhares clandestinos - como, por exemplo, quando Roland assiste à conversa entre Vanessa e François. É a filmagem no reflexo (e também no buraco da parede) que dá um pequeno diferencial. Ademais, Jolie faz o óbvio com planos mais fechados para o casal, criando uma atmosfera intimista, contraposta aos planos gerais com paisagens que são um deleite - que direção de fotografia feliz! 

Nesse ínterim, o design de produção é detalhista ao insistir em tons pastéis na maioria dos planos. Interessante também que o figurino é muito significativo: Vanessa usa roupas largas (moda na década de 70, que disfarça o corpo exageradamente magro de Jolie), normalmente de cor preta, apesar do calor do local, remetendo ao seu estado psicológico de tristeza, drama e insatisfação; Roland usa tons mais claros, mas roupas não indicadas para o verão, pois mais compridas; diversamente, o outro casal se veste de maneira mais adequada ao contexto, com figurino típico de verão. Assim, como conjunto, o visual merece ser apreciado atentamente, pois agrada muito. A trilha sonora minimalista é positiva, até para acompanhar o design de produção.

"À beira-mar" não é uma completa perda de tempo porque tem uma estética esplêndida. Contudo, o roteiro é vazio em uma narrativa alongada e de ritmo lento e cansativo. O filme acaba definhando ao não atingir um ápice, chegando ao final com uma decepção proporcional.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

No coração do mar -- Filme aerado

É inegável o potencial financeiro de um filme após premiações de destaque. Assim, não raras vezes o estúdio posterga o lançamento para datas próximas de eventos (ou em eventos, como em Cannes), com escopo de aumentar a probabilidade de receber benefícios (indicações e prêmios). "No coração do mar" foi filmado há algum tempo, mas foi lançado somente agora justamente para aumentar a chance no Oscar 2016. A chance existe mais nas categorias técnicas visuais do que nas demais.

De fato, "No coração do mar" tem uma fotografia ótima. Com efeito, a direção de arte é feliz do começo ao fim, tendo o trabalho de retratar uma época com características marcantes em um tom levemente sombrio. O resultado é um design de produção bastante competente, ganhando notoriedade não apenas a fotografia como também a maquiagem (em especial nas cenas finais) - em menor escala, um figurino coerente, porém discreto. Apesar de contar com cenários belíssimos (alguns, espetaculares) e fotografia imponente, o 3D utilizado é decepcionante, vez que, ainda que inspirado (não apenas nesse quesito, a bem da verdade) em "As aventuras de Pi" (filme fantástico!), não tem o condão de situar o espectador dentro da imersão desejada, dando a entender que o 3D não foi preocupação autônoma, mas acessória. Nem mesmo os efeitos sonoros são dignos de destaque. Os efeitos visuais, contudo, são tão magníficos que tal fato merece ser mencionado novamente.

O grande defeito de "No coração do mar" é consistir em um filme aerado pela direção. A expressão "filme aerado" designa uma metáfora semelhante a "filme plástico". São vários os erros na direção e na montagem que prejudicam demais a obra. O filme não tem dinâmica o suficiente apta a empolgar na ação para ser aventura, por outro lado, é superficial em demasia para conseguir alguma dramaticidade. Isto é, não convence na dramaticidade em razão do ritmo ruim (erro na montagem), mas também por ser dinâmico demais (priorizar a ação). O dinamismo apontaria para uma aventura, mas os recortes temporais se mostram tão inoportunos que obstam qualquer empolgação. É aqui que reside o aspecto aerado: uma boa cena dramática é cortada por uma sequência de ação, e vice-versa, ficando blocos diversos entre si e um vácuo entre eles. É como se a direção estivesse em dúvida se a prioridade seria um ou outro estilo, optando pelo movimento pendular cujo resultado é quase um enigma. Não se sabe, pois, o mote fílmico, isto é, a direção para a qual brilha o holofote do filme. Pela sobriedade observada no todo, o drama seria a prioridade, porém, a frieza e a objetividade das cenas impede que o filme se torne tocante em alguns aspectos mais densos. São lançados diversos conflitos, mas nenhum deles consegue ser aprofundado, seja pela celeridade desses momentos, seja pela sua escassez, ou mesmo pelo desvio em relação ao que realmente importa. Exceção a isso é o conflito entre o capitão e o primeiro imediato, único verticalizado e verossímil, que convence não apenas por ser reiterado em diversas oportunidades (ignore-se o recomeço artificial entre os dois), mas também porque faz sentido a raiva mútua. Desconhecidos, o rancor entre eles existe porque pertencem a classes sociais diversas, com histórico de vida distinto, um verdadeiro retrato de muitos conflitos sociais existentes mesmo hoje. De todo modo, a imensa maioria dos conflitos se mostra sem necessidade, apenas alongando o filme sem uma abordagem benéfica e reflexiva. Falta convicção em todos eles, como, por exemplo, a carreira de Herman Melville e a relação entre Thomas (o sobrevivente que relata o ocorrido àquele) e sua esposa.

Nesse ínterim, a opção de misturar passado e presente com Thomas relatando os fatos pretéritos a Melville se mostrou um equívoco escancarado. E por vários motivos, a começar por quebrar o ritmo da narrativa, fazendo o deplorável aerado antes referido. Pior, há um erro infantil em que Thomas revela ao autor muito mais do que presenciou, ou seja, relata como testemunha fatos que não poderia conhecer, como a conversa entre alguns dos tripulantes do seu navio com o capitão espanhol em determinada cena - como poderia relatar, se não estava lá? Soma-se a isso o fato de que intercalar duas narrativas se mostra descartável e prejudicial: descartável porque desinteressante e desnecessária, prejudicial porque afasta a concentração do telespectador do que realmente interessa, que é o Essex. Normalmente, inserir um narrador é uma técnica cinematográfica preguiçosa. Hipoteticamente, retirando-se as cenas com Thomas e Melville, não haveria prejuízo, ao revés, haveria mais tempo para abordar melhor as aventuras de Owen Chase e Moby Dick. Ainda em termos de direção, o renomado diretor Ron Howard constrói planos bonitos dentro do mar, mas a maioria acaba sendo sem sentido, quase aleatório. O plano holandês (câmera torta, dando a ideia de instabilidade, física e/ou metafórica), por exemplo, poderia ser melhor abordado. É uma sequência de erros na direção que desmantela os acertos. De forma mais específica, pode-se dizer que várias cenas são bem feitas em análise individual, mas alguns fatores fizeram com que o conjunto seja fraco. Não se pode olvidar a dificuldade de lidar com toneladas de água (como bem sabe Ang Lee), e a decupagem (planejamento teórico de filmagem para cada tomada de cada cena) foi bem feita para cada cena. Porém, a inserção inoportuna do diálogo insosso entre Thomas e Melville, aliada a um ritmo inseguro e indecisões referentes ao mote fílmico, foram fundamentais para danificar o produto final. Ron Howard, em análise microscópica, foi ótimo, em análise global, todavia, cometeu equívocos claros. Isso tudo sem mencionar elementos sem sentido, como a razão pela qual o adolescente Thomas, sempre acaba sendo chamado para trabalho braçal como remar para pegar as baleias, enquanto outros marinheiros/baleeiros, mais fortes, apenas assistem (por que um baleeiro adulto, saudável e forte não faz esse esforço ao invés do garoto franzino?).

Em síntese, apesar de não chegar ao nível de brilhantismo da inspiração "As aventuras de Pi", o visual de "No coração do mar" é tão belo que justifica uma atenção especial. Felizmente, o filme não se reduz a isso, pois não há ninguém no elenco que destoe da boa qualidade geral. O protagonista Owen Chase é defendido por Chris Hemsworth: defendido, e não interpretado, porque dedicou-se fisicamente (mudou seu corpo musculoso de deus nórdico) e merece aplausos. Vale dizer, Hemsworth não se livrou de alguns maneirismos de Thor, mas a dedicação notória empregada na atuação dá um quê de humano a Chase, conquistando o espectador. Chase tem seus defeitos, mas permite a todos captar a injustiça sofrida ao não ser nomeado capitão a ponto de permitir uma identificação cinematográfica secundária rápida. Fica difícil não se identificar nem torcer por ele. O pseudoantagonista Capitão George Pollard também tem bons momentos na interpretação de Benjamin Walker, que concede as nuances de um capitão inexperiente, mas arrogante, e corajoso, mas inseguro, conforme demandado. Destaca-se a vulnerabilidade constante de Pollard, a qual afasta a personagem de um ódio que seria consequência da sua arrogância. Se Chase é acolhido, Pollard é apenas digno de pena até mesmo em momentos de tolices. Para atenuar sua constante insensatez há o peso de carregar o nome da família, por força do qual já assume uma posição de destaque no Essex (em detrimento de Chase - é aqui que se inicia o conflito entre eles, um dos pontos altos do filme), fatos esses bem explorados por Walker. Existe até mesmo uma dubiedade: mesmo quando Pollard é desprezível, é possível compreender a sua personalidade e suas ações. No elenco também estão Ben Whishaw e Brendan Gleeson, em diálogos inúteis. Como coadjuvantes de destaque, o futuro Homem-Aranha Tom Holland e Cillian Murphy: aquele coube como uma luva no papel; este, impressionou ao aceitar uma personagem tão pequena. Murphy está, como sempre, muito bem na atuação, mas é estranho um ator do seu cacife se contentar com tão pouco. Joy tem relevância ao ajudar Chase, é o amigo que serve como necessário apoio, mas apenas um coadjuvante sem profundidade. Em outras palavras, Murphy foi subutilizado por ter um papel menor que o seu talento.

"No coração do mar" merece ser visto porque é visualmente belíssimo e tem bom elenco. Não recai na obviedade como recriar um "O velho e o mar" de Hemingway. Também não ousa desenvolver reflexões sofisticadas. E erra ao variar os núcleos temporais e fazer um filme aerado. Não prende o espectador, não comove, nem empolga. Contudo, não é ruim. Apenas podia ser melhor. Exceto nos efeitos visuais, que são impecáveis.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

O presente -- Originalidade mínima

Cada gênero cinematográfico tem uma lógica própria, acarretando características comuns que dão a cada um uma identidade própria. Por exemplo, o drama exige maior qualidade na atuação do que o suspense, enquanto este exige melhor utilização dos efeitos sonoros. É com base nos tradicionais moldes do suspense que é construído "O presente", filme que se mostra regular por ter qualidades que merecem destaque na mesma medida dos seus defeitos.

A direção coube a Joel Edgerton, ator conhecido pelo recente "Aliança do crime", em ótima interpretação. Edgerton faz a sua estreia como diretor (e como roteirista), revelando um trabalho muito aquém do que indica o potencial do filme. Em outras palavras, como diretor, ele é um ótimo roteirista e um excelente ator. Se o trabalho tivesse sido feito por alguém mais gabaritado, a obra alcançaria um nível mais próximo da excelência. Colocando um nome mais famoso nesse trabalho feito por Edgerton, poder-se-ia afirmar que a direção foi marcada pela preguiça, quando, na verdade, foi a inexperiência de Edgerton que pesou para reduzir a qualidade do filme. Sem devaneios, a câmera ficou estática na maior parte do tempo, o que acabou prejudicando o suspense. Da mesma forma, o design de produção é modesto, podando planos gerais e abertos. Prevalecem planos mais fechados, mas não o suficiente para criar uma atmosfera intimista, compatível com um thriller psicológico. Não obstante, é o bom roteiro e a mixagem de som que possibilitam alguns sustos. O roteiro pode ser considerado de boa qualidade porque dotado de uma virtude raríssima no cinema: a história é relativamente original. Sem genialidade, até por se limitar a inserir um terceiro do passado de um dos cônjuges para balançar o relacionamento do casal, a originalidade reside na maneira como isso ocorre: inicialmente, através de presentes. Isso tudo sem contar o final distante do clichê. Uma sinopse sem spoilers revela apenas tratar o filme sobre um reencontro acidental entre o bem-sucedido Simon e o esquisito e misterioso Gordo, e a simpatia que Robyn nutre em relação a este, não compartilhada por aquele, seu marido. Tudo indicaria a materialização do poema "Quadrilha", no estilo Simon que amava Robyn que amava Gordo. Mas não, a narrativa é criativa porque os fatos pretéritos e atuais são sutis, dúbios e altamente misteriosos, de modo a vedar o tédio intelectual sobre todos os eventos, em especial o nebuloso passado entre Simon e Gordo. O que houve entre eles? Estaria Gordo apaixonado por Robyn? O que significam os presentes dados por Gordo? Qual o objetivo deste ao entregar os presentes? Qual será o desfecho? São tantos os questionamentos que o roteiro de Edgerton acerta muito ao deixar o espectador sofrendo com a curiosidade sobre os vários questionamentos. Porém, essa curiosidade é mutilada pela direção simplória, ou seja, o trabalho de Edgerton como diretor, por ser ruim, prejudica o seu próprio trabalho de roteirista, que foi bom. Ademais, é possível sintetizar que o roteiro brinca com as noções de vítima e ofensor, fugindo do maniqueísmo ao mostrar que luz e trevas podem se misturar. Como se percebe, a grande virtude de "O presente" repousa no bom roteiro. Ademais, a mixagem de som também consegue acertar ao variar entre o silêncio completo e a sonoridade brusca (ignorando alguns delays na imagem em relação ao som). Técnica já antiga no suspense, mas que sempre dá certo. Assim, o filme obtém alguns sustos do espectador.

Na verdade, além da relativa originalidade e da fuga do maniqueísmo, outro acerto do roteiro é explorar, ainda que com leveza, a hibridização de gêneros. Isso porque "O presente" não pode deixar de ser rotulado como suspense, o que não obsta, contudo, alguns momentos de comédia e ação, por exemplo. É o suspense que marca, com eficiência nos sustos, mas é apenas uma linha-mestra, não uma barreira intransponível. Há que se reiterar, porém, que o filme tem como grande trunfo a exploração crua das personagens: todos os envolvidos podem ser questionados, pois todos cometem equívocos. Em última análise, o roteiro de Edgerton explora a falibilidade do caráter humano, seu raciocínio arquitetônico e o limite individual da sordidez. Tudo muito interessante, que só não chega a um nível superior, reitera-se, em razão da direção ruim.

Em termos de atuação, Edgerton é facilmente o melhor em cena, tendo larga vantagem em relação aos demais. Jason Bateman não consegue convencer, parecendo desconfortável a todo momento. Rebecca Hall também deixa a desejar, pois nem mesmo a relevância do papel permitiu um aprofundamento interpretativo. Robyn tem função fundamental na narrativa, mas Hall faz uma atuação monótona e inflexível, sem sequer modificar as facetas ao reduzir as nuvens que pairam sobre a história, cada vez mais revelada.

De todo modo, "O presente" é um filme regular que permite boas reflexões, conseguindo apontar um horizonte otimista em relação ao cinema. Diante do marasmo de cópias, uma originalidade mínima se destaca.

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

A visita -- Nem todo suspense é ruim e/ou acéfalo

A teoria cinematográfica ensina que gêneros são códigos de compreensão dos filmes. De fato, o resumo comum sobre um filme - bom ou ruim - envolve três questionamentos: elenco, história e gênero. O público em geral não se interessa pelo diretor, pelo estúdio, pelo figurino etc. Um bom elenco já indicaria a probabilidade de uma obra boa. A história é fundamental, pois pode ou não cativar o futuro espectador. O gênero é o aspecto mais pessoal, pois qualquer espectador tem suas preferências.

Portanto, saber o gênero cinematográfico antes do filme tem uma função teleológica clara, pois dirige o espectador, criando, inclusive, expectativas. Porém, a divisão não é tão simples, afinal, não são poucos os filmes em que há dificuldade de se inserir em algum rótulo - a maioria recai no drama, que seria o mais amplo. Além disso, há enorme controvérsia entre os teóricos, pois não existe um rol exato estabelecendo quais seriam os rótulos corretos. Há que se ressaltar, ainda, a hibridização dos gêneros, surgindo cada vez mais subgêneros (filme de ação com heróis, filmes-catástrofes etc.) ou mesmo gêneros mesclados (comédia romântica, ficção científica dramática etc.).

Nesse sentido, a divisão entre terror (ou horror, hoje entendido como sinônimo) e suspense é a que sempre apontou maior controvérsia. É enorme a dificuldade na diferenciação entre terror e suspense. Apenas a título exemplificativo, há quem sustente que ambos são espécies do gênero thriller; para outros, suspense é gênero do qual são espécies thriller e terror. A bem da verdade, em razão da polêmica, são vários os entendimentos possíveis de serem adotados (várias respostas adequadas). Não é equivocado afirmar que, enquanto o suspense envolve angústia em razão do mistério da narrativa (daí o nome), o terror lida com o medo. Ou seja, o suspense repousa na tensão, o terror, com o susto. Todavia, outro critério de classificação, provavelmente o mais acertado - pois o que impede um mistério de gerar medo? -, é o que defende que apenas o terror lida com a fantasia ou o sobrenatural, isto é, são gêneros ontologicamente idênticos, ambos com tensão, medo e susto, mas é somente o terror que invade o terreno que (em tese) seria exclusivo da ficção científica, para criar elementos que vão muito além da realidade. Todo terror tem suspense, mas nem todo suspense tem terror. Logo, quando a revelação é feita apenas no final, trata-se de suspense, pois o terror deve explorar o sobrenatural por período maior que apenas o desfecho do filme. O terror é um suspense que convive com a fantasia.

Ultrapassadas essas premissas teóricas - reitere-se a possibilidade de entendimentos diversos -, pode-se afirmar que "A visita" é um bom filme de suspense. Este seria o código de compreensão mais compatível com o novo filme de M. Night Shyamalan (diretor, produtor e roteirista), diretor responsável pelos clássicos "O sexto sentido" (excelente) e "Sinais" (ótimo), dentre outros que não merecem menção por não terem a mesma qualidade. A direção de Shyamalan é ótima, elevando a qualidade de uma obra que talvez não fosse tão boa se dependesse de outro diretor. Shyamalan usa do recurso de found footage em metalinguagem: como se não bastasse a gravação como se fosse um documentário, o que já foi feito em diversos outros filmes de suspense/terror (found footage), há uma metalinguagem consistente em três câmeras - uma, imparcial e residual, e as outras duas, controladas pelas crianças que visitam os avós. O formato de documentário é adotado tanto quando aparecem as duas crianças e a câmera não é o ponto de vista de nenhuma delas, quanto nas cenas em que as crianças é que filmam (maioria). Aliás, há metalinguagem também em muitas falas da garota, que desenvolve um discurso sobre teoria cinematográfica, inclusive com nomenclaturas técnicas. Dito de outro modo, haveria um documentário que acompanha as crianças fazendo um documentário (daí a metalinguagem), variando a montagem entre as cenas gravadas por um terceiro e as gravadas pelas próprias crianças - além dos ensinamentos teóricos da garota, também metalinguísticos. Aliás, a montagem varia o ponto de vista no decorrer da narrativa, o que dificulta a identificação cinematográfica primária, mas concede maior agilidade, o que é potencializado pelas pontuações repentinas (recurso usual em suspense/terror), com pouca utilização de fade in e fade out. O resultado é que o controle do ritmo da narrativa é feito de forma soberba, pois a variação entre o suspense e o humor, aliada aos recursos técnicos citados, faz com que o filme não padeça de algum dos males referentes ao ritmo (cansaço ou tédio). Há uma repetição demasiada das esquisitices dos idosos, isto é, as crianças demoram para aceitar que há algo além de mera velhice, porém, esse equívoco não é capaz de afetar o controle do ritmo. Ainda no que tange à direção, mesmo sendo clichê, as várias filmagens em primeiro plano (close), ao invés de montar um clima intimista (como ocorre em outros gêneros), potencializa o suspense, porque reduz o olhar do espectador à interpretação do artista e gera expectativa em razão do mistério sobre o que é ocultado. Merece menção um plano longo na cena de perseguição, ainda no início, o que indica a qualidade da direção.

Como se percebe, o trabalho de Shyamalan na direção é de uma riqueza técnica ímpar para o gênero. Por outro lado, também responsável pelo roteiro, o cineasta não é tão perfeccionista - vale dizer, o roteiro deixa a desejar. Essa frustração decorre não apenas da expectativa gerada para uma explicação excessivamente simplória e (portanto) desapontante (ou seja, o final decepciona, apesar de uma pequena surpresa), mas também (principalmente) em razão de um vazio que o filme deixa em termos de legado. Em outras palavras, além da decepção do epílogo, não há no filme uma profundidade apta a gerar uma reflexão mínima: "A visita" acaba sendo um indiferente intelectual porque não instiga a nada, é, no máximo, uma diversão inofensiva. Por exemplo, as duas crianças têm fobias (tornando previsíveis alguns acontecimentos posteriores), mas esses medos são descartáveis, vez que mal utilizados.

O único acerto do roteiro foi inovar ao criar um suspense cômico: são várias as cenas em que a situação per si permite ao espectador dar risadas, não apenas pela montagem, mas o roteiro prevê cenas levemente cômicas, inclusive para aliviar o suspense. É um suspense que, de forma proposital, soa menos amedrontador, o que é bastante raro. A própria fotografia que não abusa da escuridão (sendo esta quase a regra no suspense) já permite distinguir "A visita" dos fracos concorrentes - além de, nas cenas finais, uma edição de som que se destaca ao inserir músicas em tom erudito (pena que isso ocorre apenas no final).

Não apenas os recursos técnicos mecânicos são bons, mas também os orgânicos: o elenco é afinado, com destaque para Deanna Dunagan, ótima no papel de avó louca (além de destreza física e dedicação visível), e para o promissor Ed Oxenbould, que rouba a cena em diversos momentos, apesar dos raps irritantes.

Assim, é notório que "A visita" é dotado de muitas qualidades técnicas que merecem atenção - o que, segundo alguns, indicaria uma retomada da antes promissora carreira de Shyamalan. No entanto, deixa a desejar no essencial, faltando-lhe motivação. Um bom filme, que tem como maior virtude indicar que nem todo suspense é ruim e/ou acéfalo, sendo sim possível fazer um suspense de qualidade.