quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Steve Jobs -- Espectador blasé

Steve Jobs foi uma figura pública que contribuiu bastante para a revolução tecnológica, não se pode negar. Ao alavancar uma empresa e trazer ao mercado produtos inovadores, ganhou notoriedade provavelmente maior que qualquer outra pessoa física. Alguns de seus produtos são hoje reverenciados por consumidores fiéis à marca, tornando-o figura até mesmo cultuada. Seu falecimento, em 2011, acabou por iniciar uma indústria específica capaz de lucrar com a sua morte, gerando livros e dois filmes em cerca de apenas 4 anos. O primeiro deles, "Jobs", é muito fraco e não foi bem recebido. Está em cartaz um novo, com título extremamente criativo (sic), "Steve Jobs".

Diversamente do anterior (aquele com o Ashton Kutcher), o objetivo não foi elaborar uma cinebiografia de Jobs, mas revelar sua personalidade através de três momentos específicos, relativos ao lançamento de três produtos. Cada evento tinha o seu envolvimento, maior ou menor. Há, pois, uma clara tripartição do longa em três atos, iniciando-se em 1984 e dando saltos posteriormente. Apesar de ser uma abordagem não convencional, é criativa - provavelmente gastaram toda a criatividade aqui, daí o título recebido. Além disso, essa opção do roteiro implica maior complexidade, não apenas pela necessidade de expor as variações da personalidade de cada personagem, mas também pelos aspectos visuais e estéticos - da atuação à maquiagem, do figurino ao cenário. Há uma ousadia inegável no roteiro em razão dessa fuga ao lugar-comum, pois o que comumente se espera é, no máximo, um recorte temporal específico (ou, normalmente, uma biografia completa). Porém, isso não basta.

Não se pode negar que o elenco faz um ótimo trabalho. Com nomes como Michael Fassbender (ótimo), Kate Winslet (ainda melhor), Seth Rogen e Jeff Daniels, o diretor Danny Boyle teve o trabalho facilitado. Boyle tem uma direção razoável, majoritariamente discreta desta vez - exceto numa cena com efeitos desnecessários em uma parede. Todos foram fiéis à ideia inicial, desenvolvendo o que era proposto.

Aliás, a proposta é singular e o objetivo de fazer diferente é atingido. A personalidade das personagens - em especial do protagonista - é bem exposta, especialmente seu amadurecimento com o passar dos anos. A interpretação é bem conduzida nesse sentido, conseguindo expressar bem a arrogância que se transforma em indiferença e depois segurança. É bem verdade que o prólogo dá a entender que haverá uma crítica à (possível) dependência do ser humano às máquinas, mas essa ideia é abandonada. O roteiro seria excelente, mas não o é porque, apesar de ousado, é um plot repetitivo e frio. É repetitivo - e, por via de consequência, cansativo - porque cada um dos três atos traz as mesmas personagens debatendo suas mesmas relações, apenas em nova perspectiva (mais amadurecida). Ou seja, o roteiro é rocambolesco, e o sabor é insosso. Daí também a frieza, não das personagens, mas da história em si. Até existe um progresso (reiterando, o amadurecimento), mas a sensação que o final dá é de indiferença. Não é um filme que empolga (tenta criar expectativa no pré-lançamento dos produtos, malsucedida), que faz refletir, que faz alguma diferença na vida do espectador. Claro que ele não tem a ambição de "mudar a vida" de ninguém, porém, nem o epílogo piegas tira o provável olhar blasé do espectador quando o exageradamente longo filme se encerra.

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

A quinta onda -- Esforço para ser um desastre homérico

A Sony também tem direito de lançar uma franquia cujo público-alvo é o adolescente. Comprou os direitos de uma trilogia apocalíptica e lançou "A quinta onda", muito inferior aos concorrentes "Maze runner", "Divergente" e mesmo "Jogos vorazes".

A rigor, não se trata de um universo distópico, pois ausente uma ideologia opressora, como em "Jogos vorazes". Não há um enfoque social como em "Divergente", pois molda um maniqueísmo na luta humanos versus alienígenas. E os humanos estão juntos, diversamente de "Maze runner". Contudo, como a maioria (exceto este último), parte de um baita clichê com inúmeros arquétipos tediosos (que apenas este último até agora fugiu) - Carl Jung deve se remoer no túmulo ante a banalização da sua teoria, mas a causa é nobre. São eles: heroína insegura, romance, proteção da família, insegurança, affair como braço-direito, um grupo contra quem lutar (vilania coletiva e polarização), incontáveis dúvidas (exceto "Jogos vorazes", cuja história não é tão nebulosa, nem surpreendente) e desafios crescentes. Em síntese, segue o script básico de encantar uma legião que se torna fã (e defensora voraz) e que possibilita uma bilheteria expressiva. Todavia, ainda não se sabe se "A quinta onda" conseguirá tal sucesso financeiro, pois é realmente inferior aos demais.

A sinopse é minúscula: a maioria da população falece em razão de ataques alienígenas (as "ondas"), e Cassie, personagem principal, é uma das poucas sobreviventes. O péssimo roteiro (mal irremediável), portanto, faz de Cassie a engrenagem principal ao seguir sua luta (pela sobrevivência e contra os invasores). E o primeiro problema já surge aí, pois ela, que deveria ser a personagem principal, divide o filme com Ben - a empreitada deste também aparece bastante, sem justificativa. Isso não seria ruim, pois uma montagem dividida entre duas personagens pode ser bastante benéfico. Contudo, Cassie é eleita para ficar no foco, não apenas por protagonizar a boa cena inicial - publicidade enganosa (surpreende e gera expectativa, que, porém, fica bastante frustrada) -, mas também por ser a narradora (em voice over). Ela inicia o filme, narra os fatos e move a trama. Mas divide a tela com Ben. Pode soar pouco, mas, em termos cinematográficos, é um equívoco. Se Cassie é narradora onisciente, deveria ser também onipresente, não podendo ser esquecida para deixar os holofotes com o crush.

É evidente que uma narrativa centrada em invasão alienígena tem a liberdade para sair bastante do real. Todavia, "A quinta onda" tem incoerências diversas que o tornam demasiadamente inverossímil, comprovando o péssimo roteiro. Alguns exemplos: carros que voltam a funcionar magicamente, sem explicação aparente; uma patricinha adolescente que, de forma repentina, adquire habilidades diversas voltadas à sobrevivência (olvide-se o argumento desonesto da adrenalina), inclusive habilidades convenientemente camaleônicas; um irmão mais novo que se mostra vulnerável apenas em momentos-chave, não em outros; um treinamento militar limitado ao condicionamento físico (o que deveria causar estranheza aos recrutas); alienígenas que têm dificuldade de aniquilar a espécie humana, mesmo conseguindo controlar a natureza - e assim por diante. Pior: as "ondas" são encaradas com normalidade. O planeta está sendo invadido por extraterrestres, mas isso não é motivo suficiente para abandonar a escola. Os ataques até são vistos com estranheza, mas não com medo. Um OVNI "estacionado" em espaço aéreo não amedronta. Claro, é praticamente cotidiano. E um plot twist nada surpreendente não conseguiu salvar.

Ficou implícito, mas não custa explicitar: é previsível e óbvio. Além disso, tem uma moral clichê e não convincente naquele contexto, tornando-se idiota. E quer fazer o espectador de idiota ao criar um clima de mistério. Não é fazer suspense, não é uma nebulosidade proposital para instigar o espectador. É roteiro ruim mesmo. Raso ao máximo. Deixar perguntas sem apresentar respostas é conveniente porque possibilita mudanças de rumo na trama e explicações de nível deus ex machina. Pobreza intelectual define.

Talvez padecer desse mal irremediável que é o péssimo roteiro seja pouco. Insatisfeita, a produção é também ruim tecnicamente. A edição de som é amadora, o que fica ainda mais evidente nas cenas em ambientes naturais. Os efeitos visuais são fracos, o que é agravado com o disparate das filmagens noturnas de ação. A violência escondida (sangue zero, golpes brandos etc.) é aceitável em razão do binômio censura-bilheteria.

Apesar do esforço, nem tudo é um desastre homérico em "A quinta onda". Quase tudo, mas não tudo. Por exemplo, algumas atuações são razoáveis, como de Liev Schreiber e Nick Robinson. Não à toa, eles interpretam as personagens mais interessantes: aquele é um militar de propósitos pouco conhecidos e identidade duvidosa; este, um herói moldado em razão das circunstâncias e fortalecido pelo seu inato espírito de liderança, afastando-o de distrações (como romance). Robinson tinha tudo para ser o arquétipo do galãzinho inexpressivo que conquista com um sorriso bonito e um discurso vazio. Mas ele passa a bola para outro nesse longa. Se deu bem ao dividir algumas cenas com o talentoso Schreiber. Bem ou mal, o jovem ingressou em franquias famosas (esta e "Jurassic world") - ainda que de qualidade baixa. E parece ter talento, até por fugir do arquétipo mencionado. Por outro lado, o casal protagonista vai mal - tanto as personagens quanto os artistas. Primeiro Chloë Grace Moretz, já experiente em Hollywood, mas que ainda não convenceu em papel algum. Não chega nem perto do nível Shailene Woodley. Muito menos Jennifer Lawrence, é claro. O arquétipo do galãzinho inexpressivo fica com Alex Roe, responsável por muito do que acontece, movendo a narrativa em diversos momentos, com a previsibilidade inerente ao roteiro. Com direito à exposição corporal que faz brotar o desejo sexual em Cassie - num olhar freudiano, a cena previamente divulgada em que ela assiste a Evan banhando-se indica a faísca da obsessão sexual que só se satisfaz após a consumação do ato, que, evidentemente, não demora a ocorrer. Coerente, pois ela é uma adolescente em situação extrema, sem o crush Ben e com o atraente e protetor Evan à disposição. O amadurecimento foi acelerado com a explosão da sua libido, abandonando a visão romanceada da realidade. O afeto cede ao apetite sexual. Em teoria, um romance com os pés no chão, na prática, entregam(-se a) uma paixão nem um pouco convincente que só fica interessante no início de confronto entre Ben e Evan - estragado quando aquele é esquecido pelo diretor, tornando-se parte do cenário para a interação exclusiva dos apaixonados (Ben se torna vela do casal, sem entender nada, nem participar - poderia, por exemplo, insistir no perigo que um desconhecido representa). Dito de outro modo, abreviar o flerte e chegar ao sexo é positivo, vez que realista, mas fazer de Evan o arquétipo do arquétipo (além de galã, herói), tão perfeito e impecável que apenas a ficção pode mostrar, é incoerente com o realismo que tentam imprimir antes.

Apesar de clichê, a ideia de "A quinta onda" não é ruim. O erro reside na incoerência do roteiro, o que prejudica totalmente o longa. O referido desastre homérico se credita a essa(s) incoerência(s), só não ocorrendo porque sempre pode ser pior. E sim, podia ter sido pior. Ao menos tentou ser realista em algum momento, por exemplo. Podia ter sido pior.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Joy: o nome do sucesso -- Até que tem algumas poucas virtudes

Sem 8 ou 80, "Joy: o nome do sucesso", novo filme de David O. Russell, não é um desastre, tampouco uma obra-prima. É bem verdade que está (bem) mais próximo da catástrofe do que da excelência, mas é possível pescar alguns bons atributos.

"Joy" (melhor ignorar mais um desprezível e desnecessário subtítulo brasileiro) conta a história real de uma mulher que, apesar de vários apertos e obstáculos em sua vida, consegue alcançar o sucesso (afinal, o subtítulo já entrega) graças à sua criatividade em inventar objetos, virtude presente desde a sua infância. Um plot bem razoável, quiçá promissor. Bastava ser bem conduzido e executado. Em tese, ganharia muito com um bom diretor e um bom elenco. Teoria e prática, porém, nem sempre andam juntos...

O bom elenco fez a sua parte, dentro do que foi possível. Grosso modo, as atuações são boas. Jennifer Lawrence faz o já conhecido trabalho competente, não tendo culpa dos equívocos alheios. O primeiro se refere à sua escolha, pois a atriz é claramente jovem demais para o papel. Ela até se esforça, mas uma bela e rica moça de 25 anos jamais seria crível como uma mulher sofrida e mãe de dois filhos. Por que não uma Kate Winslet para o papel, por exemplo? Bradley Cooper está lá apenas para conceder seu nome, pois seu papel é quase insignificante - ainda mais para um ator do seu quilate. Deve ter aceitado o projeto pela amizade com o diretor e a atriz. Não obstante, é interessante perceber que, em atuação desta vez contida (como a própria Lawrence), ele(s) consegue(m) inovar - cada papel é um papel, ainda que pequeno. Está mais uma vez presente no grupo (com Russell, Lawrence e Cooper) Robert De Niro (como em "O lado bom da vida"), também competente, ainda que muitas vezes oblíquo na história. Da mesma forma, os demais coadjuvantes.

Falando em bons atributos, o figurino é razoável: Joy com uma camisa costumeiramente amassada e suja (afinal, ela é uma dona de casa) e Neil Walker (Cooper) com um visual dourado, indicando riqueza e poder - e assim por diante. A trilha sonora também é razoável, com direito a Sinatra e Elvis, por exemplo. Até mesmo Tom Jobim está presente  algumas vezes com "Águas de março" em espanhol, cantada pelo venezuelano Edgar Ramírez, servindo para dar uma erudição inexistente no longa - até porque Brasil e Venezuela são quase a mesma coisa (sic) na visão estadunidense. Ah, sim: razoável não é bom, é apenas um pouco acima do fraco.

Encerraram-se as virtudes. O trabalho de David O. Russell na direção é uma trágica sequência de falhas, da escolha do elenco (inovar não dói) ao pífio trabalho de câmera. O anúncio de se tratar de uma obra que homenageia as mulheres fortes é publicidade enganosa, pois a representação feminina na película é majoritariamente negativa. A construção das personalidades também é equivocada. Por exemplo, Rudy (De Niro) é demasiadamente inverossímil: assume a responsabilidade por dar apoio a Joy em seus sonhos desacreditados por todos, mas é vulnerável a ponto de reconhecer que precisa de uma namorada. O relacionamento de Joy com seus familiares é mal desenvolvido: tirando a sua avó, são todos, a priori, vilões em potencial, mas seu ex subitamente vira melhor amigo, seu pai se mostra preocupado... E mais: por que narração em voice over? Por que esconder Walker (Cooper) na sua primeira aparição? Não acrescentam nada! Como um telefone cuja ponta não foi paga magicamente começa a funcionar?

Pior, a engrenagem que move o filme é uma sucessão de fracassos que não abalam o ímpeto da protagonista, isto é, em um extremismo sem igual, o roteiro concretiza um processo dialético pelo qual Joy tenta e fracassa incontáveis vezes de diversas formas. A síntese para o espectador é que o longa acaba se tornando um árduo exercício de paciência, pois é difícil até mesmo torcer para alguém cujas circunstâncias são tão irritantemente desfavoráveis. Tudo contribui para o fracasso da protagonista, de forma tão radical que se revela piegas e estressante. Como se não bastasse, o previsível desfecho (que custa a chegar) é simplista a ponto de sugerir o dinheiro como a solução de todos os problemas das pessoas. Joy tenta incontáveis vezes o sucesso, e, quando consegue, é de forma repentina, ganhando dinheiro e nunca mais tendo dificuldades pessoais. Essa parte chega a ser desprezível. Melhor recordar que o filme até que tem algumas poucas virtudes.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

A grande aposta -- Três pilares que empolgam nesse filme excelente

Por que um filme tão espetacular quanto "A grande aposta" dificilmente ganhará o Oscar de melhor filme? Tem um bom plot, um grande elenco e recursos técnicos geniais. Porém, a história, pelas suas características, lhe falta aquela originalidade que o destacaria dos demais (como ocorre com "Mad Max", por exemplo). Se vencer na categoria, será por expor o american way of life de uma forma única, explorando o que eles mais gostam, que são eles mesmos - "entendedores entenderão". Outro trunfo é o fato de não se enquadrar facilmente em gênero algum: o enredo é triste (afinal, trata de uma crise!), mas não chega a ser um drama; tem cenas engraçadas, mas não é comédia. Essa peculiaridade presente em vários longas, referente à hibridização dos gêneros, é bastante apreciada pela Academia, o que pode justificar a estatueta.

Trata-se de um relato composto de quatro núcleos pequenos inseridos no grande contexto anterior à crise do mercado imobiliário de 2008. Cada núcleo está ciente do que está prestes a acontecer (desde 2006), a diferença entre eles é como agir e reagir. Não falta originalidade apenas por se tratar de uma história real - afinal, "O regresso" é também baseado em fatos reais, mas muito mais original -, mas também por basear-se em um evento que teve a atenção do mundo todo por impactar a economia de um dos países mais importantes do globo (em termos econômicos, é claro) - e também, por via de consequência, a economia de diversos outros. Isto é, a história é real e notória, tendo afetado milhões de pessoas. Na verdade, é real demais. E sem surpresas, pois o desfecho é conhecido - diversamente de "Spotlight", por exemplo, cuja história também é real, mas bem menos famosa. Ainda que se considere a utilização de personagens desconhecidas da maioria do público, o contexto econômico (esse o protagonista) é tão próximo de todos que, em teoria, o filme não empolgaria.  Não pelo plot não ser bom, ele é bom. Só não é tão original.

Para compensar a notoriedade do protagonista, as personagens deveriam ser desconhecidas do grande público. E mais: interpretadas por artistas de renome, o que chamaria a atenção do filme. Claro, reunir grandes nomes aumenta as chances de o espectador comum ter a curiosidade de ao menos pesquisar sobre a obra. Indo mais fundo, esses artistas não têm apenas renome, mas, no geral, são bons e estão muito bem. No geral, o elenco está excelente.

Dividido em grandes núcleos, apenas dois nomes brilham mais que os demais. Indicado ao Oscar de melhor ator coadjuvante, Christian Bale, de talento já inquestionável (quiçá um dos melhores atores da atualidade), faz um trabalho soberbo como Michael Burry. Sua entrada triunfal ocorre em uma cena marcante em que a caracterização da personagem já se destaca: um fone no ouvido, uma camiseta azul lisa, descalço (seu figurino é praticamente o mesmo o filme todo, e não combinaria, em tese, com o seu sério trabalho) e com baquetas nas mãos (o ator fez aulas de bateria só para o filme). Bale está magro e usa ainda uma prótese no olho esquerdo para simular o olho de vidro. Burry é uma pessoa extremamente excêntrica, e o visual foi fundamental para destacar isso - além da direção, que dá a ele o privilégio de ter planos exclusivos, em que só ele aparece (inclusive em primeiríssimos planos). Claro, a atuação de Bale é excelente, com uma linguagem corporal de inquietude e distanciamento, uma entonação vocal peculiar e sorrisos repentinos que se explicam pela esquisitice da personagem (embora soem deboche). Em segundo lugar - embora haja opinião minoritária em sentido contrário -, Steve Carell é outro que brilha ao dar vida a Mark Baum, grande norte moral da película. Carell já havia demonstrado interesse em explorar novos horizontes com "Foxcatcher", o que é ótimo, pois demonstra que o ator quer um aprimoramento profissional e mostrar versatilidade. Desta vez, fez a que provavelmente foi a melhor interpretação na sua (ascendente) carreira (até agora, evidentemente). Baum transita entre o cômico e o dramático: o humor reside tanto na caracterização (sobrepeso visível e penteado risível) quanto na vocalização (uma agudez ainda maior que a costumeira) e na expressão representando seriedade e depressão, mas é o deslocamento do real (vale dizer, ele é muito nonsense) que chama a atenção; o dramático aparece em especial ao contracenar com Marisa Tomei (no papel de esposa), vez que ele (é o único no filme que) sofre em razão da crise financeira, ao perceber o impacto na vida das pessoas comuns. Baum é capaz de interromper uma palestra para falar uma verdade desacreditada, brigar com um desconhecido por um táxi e abandonar uma conversa repentinamente para atender o celular. Não há como não rir (a cena com a dançarina é hilária!). A personagem é complexa, mas não tão desafiadora quanto Burry. Dois sujeitos excêntricos e igualmente encantadores na trama. Tanto que ofuscam Ryan Gosling - que mostra não dominar o timing cômico necessário em algumas cenas (como ao criticar o vestuário alheio). O papel de Jared Vennett, porém, é relevante não apenas como engrenagem, mas para simplificar a película em vários momentos. Brad Pitt aparece pouco, sendo destaque apenas em um monólogo realista em determinado momento, já ao final. Seu núcleo com John Magaro e Finn Wittrock é muito mais centrado nestes - e que ótima dupla. Os coadjuvantes menores também vão bem.

Porém, direção e montagem são os verdadeiros astros de "A grande aposta". A especialidade de Adam McKay em comédias acabou sendo essencial, evitando que um tema complexo e mecânico se tornasse enfadonho. De fato, um filme que tinha tudo para ser entediante por tratar da bolha imobiliária que até hoje muitos não entenderam acaba sendo empolgante. Como? Com apuro técnico exemplar, praticamente uma aula. Exemplos não faltam: jump cuts, flash forwards, quebra da quarta parede (em especial com Ryan Gosling), citações explícitas, muitos movimentos de câmera - aliás, uma câmera inquieta, com bastante zoom e alguns travellings -, primeiros e primeiríssimos planos, narração expressa e assim por diante. Direção e montagem concorrem ao Oscar e não à toa, vez que, embora a câmera talvez seja demasiadamente ágil para representar tudo que o filme quer dizer, é a sua inquietude que imprime um filme dinâmico. Logo, a veloz (talvez demais) montagem e a câmera hiperativa funcionam como uma injeção de adrenalina. Também para simplificar o universo econômico (que é duramente criticado na lição que o filme tenta passar), McKay insere um quê de fellinesco com interrupções de celebridades (participações especiais) para, didaticamente, explicar conceitos técnicos que presumidamente o público desconhece. A preocupação em ensinar o espectador existe, e, de modo geral, o objetivo é atingido em seu cerne (talvez não em seus pormenores) e a mensagem repassada fica bastante clara. Enfim, um trabalho heterodoxo, mas muito requintado. A mixagem de som também vai bem ao silenciar nos momentos certos, inserir músicas instrumentais e exemplificar o gosto de Burry com Metallica e Gorillaz.

"A grande aposta" talvez não entre no rol de filmes memoráveis, mas é sabido que nem todo gênio recebe a honra que merece. Independentemente de qualquer premiação - a indicação já é bastante significativa -, o filme, com seus três pilares (bom plot, grande elenco e recursos técnicos geniais), surpreende se tornar compreensível. Aliás, é um deleite para quem tem conhecimento na área. Para os leigos, "apenas" empolga. Um filme tão frenético quanto o mercado financeiro. É excelente, não se pode negar.

domingo, 17 de janeiro de 2016

Creed: nascido para lutar -- Grande no subgênero, mas pequeno

De 1976 a 2006, seis filmes e uma notoriedade cinematográfica indiscutível. O de 2006 indicava um epílogo, até que Ryan Coogler apresenta ao espectador exigente um ótimo derivado - e não um spin off, afinal, o protagonista não existe em nenhum dos anteriores - da franquia Rocky. Tão bom que não surpreenderá se render frutos (uma trilogia, por exemplo).

"Creed: nascido para lutar" tem como protagonista Adonis Johnson, filho de Apollo Creed. Adonis foi criado por Mary Anne Creed, esposa do seu pai. Um dos grandes trunfos do filme reside aqui: há uma quebra de paradigma ao ter um protagonista afrodescendente com boa condição financeira e estudos. O normal seria o estereótipo daquele vindo das ruas, do mundo das drogas. Mas não, Adonis é estudado e quer ser boxeador profissional porque isso é da sua natureza, para o desgosto da sua mãe (de criação), Mary Anne. E quer Rocky Balboa, rival e amigo do seu falecido pai, como treinador.

O diretor Ryan Coogler faz um trabalho filiado à direção ultrarrealista, esboçado já pela mudança de Adonis de L.A. para Filadélfia. São vários fatores que indicam essa filiação: lutas majoritariamente em planos-sequência (em especial a segunda), elipses orgânicas retratando os treinos de Adonis, inserção de elementos reais travestidos na diegese (uma propaganda de uma luta na HBO Sports, uma luta "real" entre Rocky e Apollo sendo assistida no Youtube por Adonis etc.), pouca linguagem figurada e até mesmo eventos do cotidiano comumente ignorados nas películas, como assistir a um filme, uma reação fisiológica decorrente da ansiedade pré-luta, cozinhar e assim por diante. A minúcia de Coogler é notória, tudo tendo como norte o realismo que ele quer retratar. Até mesmo a violência das lutas soa real, não apenas pela maneira de filmar, como também em planos-detalhe com sangue, ferimentos, o impacto dos golpes e poucas cenas com slow motion. O prólogo se passa em 1998 e há um flash forward imenso, para 2015, que não é artificial porque serve para mostrar a primeira aproximação entre Adonis e Mary Anne.

O peso do protagonismo não sobrecarregou Michael B. Jordan, que dá conta do papel e sobra talento - também porque não se lhe exige muito. Phylicia Rashad como Mary Anne estaria melhor se tivesse mais espaço. O mesmo se deu com Tessa Thompson (Bianca, a namorada do herói). Sylvester Stallone teve, pela primeira vez nos últimos anos, a nobreza de ceder o protagonismo a outro artista, recolhendo-se agora a um coadjuvante tragicômico. Rocky está velho e tem cicatrizes do passado, mas o lado dramático está além da capacidade de Stallone, que surpreende ao se dar muito bem na faceta cômica de Balboa. Sim, pode-se afirmar que o ator teve boa atuação, mas indicá-lo a prêmios sérios (excluindo, portanto, o Globo de Ouro) é piada de mau gosto. Jordan divide muito melhor o humor com o drama. Stallone foi bem, mas não merece ser premiado porque "bem" não é sequer "ótimo". Exemplo é a cena no espelho: Rocky não convence como filósofo. Stallone fez de Rocky uma lenda pelo conjunto da obra, não pela sua interpretação. Se vencer o Oscar, será uma forma de homenageá-lo, não reconhecer o trabalho da vez.

O longa acerta ao unir com maestria novidade com nostalgia. Todos aqueles elementos já conhecidos estão lá, de forma mais suave: corrida com moletom cinza, treino com galinhas, subir as escadas e, claro, a marcante "Eye of the tiger". Está tudo lá, suavizado. As novidades também estão lá, em especial o hip hop e a jovialidade impressa por Jordan - é boa a dicotomia reiterada com a idade de Rocky. Por outro lado, pouco se inova em relação aos filmes de lutadores. É tudo repetido, ainda que de forma suavizada: a personalidade explosiva de Jordan está a um passo daquela de Jake ("Touro indomável"); a saúde de Rocky é delicada como a de Randy ("O lutador"); Rocky reluta em treinar Donnie como Frankie ("Menina de ouro"). São tantos os clichês suavizados que "Creed" não teve espaço para grandes inovações. Mas tentou.

O clichê seria ofuscado pela ótima novidade relativa ao legado Creed, não fosse a inclusão de uma subtrama vazia e a exclusão de outra com potencial. Filmes de lutadores não costumam trazer grandes novidades, mas tratar Adonis como um boxeador com potencial que quer criar a própria fama sem colher as migalhas do caminho trilhado pelo pai seria uma novidade ótima que ofuscaria os demais clichês. Porém, o relacionamento entre Bianca e Adonis é superficial, enquanto que a relação deste com Mary Anne não é verticalizada como poderia. Portanto, "Creed" acerta ao pegar virtudes pretéritas, dar a elas nova roupagem e revitalizar a antologia com elementos inéditos e um formato próprio e peculiar. Mas não há uma originalidade marcante, há sempre uma sombra, seja a de Rocky, seja a de outro (filme de) lutador. O filme é  grande no subgênero, mas pequeno se visto isolado no universo cinematográfico. Enfim, empolga e contagia por ser bom, mas não marca por não ser inesquecível.

Carol -- Encantador, mas não extraordinário

O ano é 1952, e a única opção para Patricia Highsmith publicar seu livro "The price of salt" ("O preço do sal"), após algumas negativas editoriais, é com o pseudônimo de Claire Morgan. Em 1990, a obra foi publicada novamente, com novo título: "Carol". Somente agora chega a adaptação cinematográfica. Lamentavelmente, o olhar recebido por uma história que envolve homossexualidade não é muito distinto daquele de 1952. O avanço nos EUA foi substancial, tendo em vista que, hoje, os 50 Estados admitem a união entre pessoas do mesmo sexo. Contudo, até meados de 2015, 13 Estados ainda a vedavam - ou seja, a conquista plena é recente. De toda sorte, o tema é encarado de forma preconceituosa por vários setores sociais (nos EUA e no Brasil), de maneira não muito distinta do olhar dos anos 1950.

A polêmica da narrativa fazia sentido naquela época: Carol Aird, mulher de meia idade, mãe de uma menina e em processo de divórcio, se apaixona por Therese Belivet, moça muito mais jovem e inexperiente que tem apenas um namorado. Como se vê, a história é um romance em que as subtramas praticamente inexistem. Carol ama a sua filha, é uma mãe preocupada e zelosa, porém, infeliz em seu casamento e ciente que o caminho para a sua felicidade não é com o marido. Acaba se encantando por Therese ao comprar o presente natalino da sua filha na loja em que ela trabalha, mas esse interesse poderia ter sido por qualquer outra pessoa - isto é, Therese não é a causa do divórcio de Carol, e isso fica bem claro. Therese não é uma destruidora de lares como os homossexuais são taxados por pessoas retrógradas, mas, ao contrário, um possível caminho para a felicidade de Carol. A dificuldade para elas é óbvia: enfrentar uma sociedade conservadora - provavelmente o divórcio per si já não era bem visto. Se quisessem ficar juntas, as duas teriam de enfrentar um enorme preconceito, inclusive em seu próprio círculo. A situação de Carol é ainda mais complicada, pois o marido tinha a filha para as necessárias chantagens.

Dessa sinopse, dois caminhos são possíveis: o dramático e o romântico. No caminho dramático, haveriam vários embates ideológicos nos quais as duas realmente teriam de enfrentar o mundo ao seu redor para serem felizes juntas. O foco seria a dificuldade de encontrar a paz afetiva pretendida. Contudo, o roteiro (e, supõe-se, o livro) opta pelo caminho romântico, pois o enfoque é muito mais um conflito interno que externo. Carol e Therese encontram mais obstáculos em si mesmas do que nos outros - à exceção do marido de Carol. Dito de outro modo, o que as mantinha receosas era a dúvida que residia em si mesmas, não tanto o olhar das outras pessoas. Isso fica mais claro em Therese, pois Carol sabe que envolver-se com ela poderia prejudicar o contato com a filha, mas há sempre uma cautela ao interagir com a jovem.

Nesse sentido, "Carol" decepciona por não ter nada de revolucionário. É um romance quase que como qualquer outro, não um manifesto a favor da comunidade LGBT. É polêmico hoje pela ignorância de algumas pessoas, pois o filme é muito brando em relação à causa. Carol e Therese representam duas mulheres que se amam em uma época em que isso era encarado sempre como imoralidade, mas elas não representam o preconceito sofrido pelas lésbicas. O longa não é engajado porque enclausura o casal protagonista naquela realidade, deixando subentendida a inegável e previsível discriminação que elas sofreriam. Partindo da premissa da previsibilidade desse preconceito, ele é afastado para enfocar o surgimento desse amor. Assim, o amor crescente entre as duas é destaque maior que os obstáculos que enfrentam, razão pela qual "Carol" não tem nada de extraordinário. "O segredo de Brokeback Mountain", de 2005, por exemplo, vai além, embora também esteja com os pés mais no romance do que no drama. Ocorre que essa opção de "Carol" faz com que o amor ofusque o preconceito como se daria em uma história qualquer de romance improvável. Para a causa LGBT, a película não chega a ser defensora.

Talvez tenha sido o motivo pelo qual "Carol" não foi indicado ao Oscar de melhor filme. Para um Oscar de melhor filme, indispensável ir além, pois são vários os exemplos de romances improváveis. Falta conflito, falta amargor, falta tristeza, falta dificuldade, falta drama. Porém, o filme é muito bom, vez que conduzido com competência.

Competência mostrada pelo diretor já na primeira cena com um belo plano-sequência que objetiva a ambientação. O trabalho de Todd Haynes não chega à excelência da direção, mas é ótimo, principalmente nas sutilezas. Trata-se de um filme para ser apreciado (ainda mais que os outros) nos detalhes, como o toque de Carol no ombro direito de Therese na cena do jantar (o lado direito, nosso lado da segurança, do conforto e da confiança), como a cidade em que o longa dá um grande passo, Waterloo (representando a mudança do status quo como representou também para Napoleão), ou mesmo como a neve simboliza a infelicidade da vida das duas, diminuindo cada vez mais. Haynes também é bastante eficaz ao expor a faísca que vira uma enorme chama, isto é, a narrativa é tão bem conduzida que o afeto crescente entre o casal soa sempre natural - mesmo as investidas de Carol em Therese, que surpreenderiam (para aquele contexto), não espantam porque o diretor deixa claro que inibição não faz parte da personalidade da loira. Essa evolução do afeto entre as duas tem uma ardência que não frustra expectativa alguma. O diretor foi inteligente, também, ao adotar uma estratégia de montagem circular, idêntica àquela usada por Tarantino em "Pulp fiction". É um filme de detalhes técnicos, o que Haynes, no geral, dominou - inclusive na cena de sexo, filmada com nudez, mas sem vulgaridade, dotada de uma delicadeza que apenas a verdadeira arte é capaz de retratar. Não apenas ele, mas também a equipe responsável pelo magnífico figurino, indicada com justiça ao Oscar. Cate Blanchett já tem uma elegância natural, que é apenas multiplicada por roupas de cores vivas, em especial vermelho e verde, além de casacos quentes, como um casco para camuflar sua vulnerabilidade. Já Therese usa um vestuário mais simplório, também compatível com a personalidade da personagem. Além do figurino estonteante, também a trilha sonora de Carter Burwell é belíssima, certamente pensada para esse longa porque representa as nuances de tudo que acontece - dos momentos mais suaves aos mais intensos. Figurino e trilha sonora concorrem ao Oscar, bem como o roteiro (adaptado por Phyllis Nagy) e a fotografia - esta, talvez indicação exagerada.

Da mesma forma, o casal protagonista também concorre ao Oscar por suas atuações impecáveis. Carol e Therese são opostos que se atraem até se misturar: Carol é uma leoa de apetite voraz prestes a se alimentar da frágil e indefesa ovelha Therese, mas a leoa também tem fragilidades, e a ovelha também tem sua força. No início, Carol tem uma personalidade expansiva: é ela quem toma decisões, quem faz convites (inclusive convidando a si mesma para visitar Therese na casa desta), quem decide o que comem ou bebem e aonde vão. Therese é insegura, de personalidade rasa (praticamente não reage quando beijada por um rapaz que não é seu namorado) e timidez. A introspectiva Therese, porém, vai conhecendo a forte Carol e percebendo que ela também é vulnerável, em especial quando se trata da filha. Da mesma forma, é a experiente Carol que tira Therese do casulo e faz daquela moça uma mulher. O relacionamento faz bem a ambas. Fica claro que é a loira quem tem as rédeas do laço afetivo que está se formando, todavia, isso vai se reduzindo - exemplo é na festa de ano novo: a cerveja fica com Carol, o champanhe, com Therese (invertendo-se a lógica preliminar). Na lógica das sutilezas, a sempre maravilhosa Cate Blanchett expressa de maneira fabulosa que a decidida Carol também tem seu calcanhar de Aquiles; Rooney Mara, mais discreta, faz bem o papel da menina que vira mulher (o que se inicia ao enfrentar o namorado). As duas têm uma química visível, mas Blanchett brilha mais não apenas porque Carol é mais entusiasta como também porque consegue transformar um olhar insinuante em um tiro arrebatador. Seu talento é imensurável.

"Carol" é um romance que encanta olhos e ouvidos, reconforta o espectador, ávido por uma bela história de um verdadeiro amor. Repleto de atrativos muito sedutores: da atuação à direção, da trilha sonora ao figurno. Entretanto, admirar a beleza nunca foi dificuldade para o ser humano, que o faz desde a Grécia antiga. Dificuldade mesmo é enfrentar o preconceito. É isso que "Carol" não faz.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Oscar 2016 - análise inicial: visão holística dos destaques

Finalmente saíram os indicados ao Oscar 2016, que podem ser conferidos no site oficial (clique aqui).

Uma dupla foi o grande destaque: "O regresso" (que só chega aos cinemas brasileiros em fevereiro) e "Mad Max: estrada da fúria" (que já está disponível nas locadoras há algum tempo). Isso porque "O regresso" foi indicado em 12 categorias (incluindo melhor filme, melhor diretor e melhor ator, além daquelas essencialmente técnicas), enquanto que "Mad Max: estrada da fúria" foi indicado em 10 (incluindo melhor filme e melhor diretor, além das categorias técnicas). A diferença é de duas indicações, que se referem às categorias de atuação: melhor ator (Leonardo DiCaprio) e melhor ator coadjuvante (Tom Hardy). Interessante observar que Hardy também está presente em "Mad Max", mas o trabalho não fez jus a nomeação alguma. Alguns defenderam uma indicação para Charlize Theron, o que não se confirmou. Assim, a única diferença substancial entre os dois filmes, em termos de qualidade, reside na atuação, pois, tecnicamente, provavelmente estão no mesmo nível de excelência. Não obstante, provavelmente "O regresso" ganhará mais estatuetas.

Em terceiro lugar ficou "Perdido em Marte", com 7 indicações, incluindo melhor filme e melhor ator (Matt Damon). A direção (Ridley Scott) não foi indicada, apesar de ter ganhado o Globo de Ouro, por exemplo. "Spotlight: segredos revelados" e "Ponte dos espiões" obtiveram 6 indicações cada, assim como "Carol", mas somente os dois primeiros podem ganhar o de melhor filme. "A grande aposta" vem logo após, com 5, incluindo melhor filme. "Star Wars: episódio VII - o despertar da força" também teve 5 indicações, exclusivamente técnicas. "A garota dinamarquesa" em seguida, com 4, incluindo melhor ator (Eddie Redmayne, ganhador do ano passado por "A teoria de tudo"). Por fim, com 3, "Os oito odiados", "Brooklyn" e "O quarto de Jack".

Não se pode afirmar que houve um azarão, mas tivemos algumas pequenas surpresas, como a indicação de Sylvester Stallone como melhor ator coadjuvante em "Creed: nascido para lutar" e o brasileiro "O menino e o mundo" como melhor animação. O primeiro tem chances, o segundo deve perder para "Divertida Mente", que chegou a ser cotado, nas prévias, a uma indicação como melhor filme. Duas ausências sentidas: "Labirinto de mentiras" não foi nomeado como melhor filme estrangeiro, embora tivesse grandes chances; e a música "See you again" (Wiz Khalifa feat. Charlie Puth), tema de "Velozes e furiosos 7", era cotado até mesmo para ganhar o prêmio de melhor canção original.

Nesse primeiro post sobre o Oscar, atenho-me a uma visão holística para os destaques globais, olhando os filmes a partir das categorias em que são indicados. Voltarei a falar sobre a premiação antes do dia 28 de fevereiro, dando palpites, aí sim por categorias, individualmente.

Síntese do ranking - top 5:
1) "O regresso" >> 12 indicações: melhor filme, melhor diretor (Alejandro González Iñárritu), melhor ator (Leonardo DiCaprio), melhor ator coadjuvante (Tom Hardy), melhor fotografia (Emmanuel Lubezki), melhor design de produção, montagem, figurino, maquiagem e cabelo, edição de som, mixagem de som e efeitos visuais).
2) "Mad Max: estrada da fúria" >> 10 indicações: melhor filme, melhor diretor (George Miller), melhor fotografia (John Seale), melhor design de produção, montagem, figurino, maquiagem e cabelo, edição de som, mixagem de som e efeitos visuais).
3) "Perdido em Marte" >> 7 indicações: melhor filme, melhor ator (Matt Damon), melhor roteiro adaptado, melhor design de produção, edição de som, mixagem de som e efeitos visuais.
4-A) "Spotlight: segredos revelados" >> 6 indicações: melhor filme, melhor diretor (Tom McCarthy), melhor ator coadjuvante (Mark Ruffalo), melhor atriz coadjuvante (Rachel McAdams), melhor roteiro original e melhor montagem.
4-B) "Ponte dos espiões" >> 6 indicações: melhor filme, melhor ator coadjuvante (Mark Rylance), melhor roteiro original, melhor trilha sonora, melhor design de produção, e melhor mixagem de som.
4-C) "Carol" >> 6 indicações: melhor atriz (Cate Blanchett), melhor atriz coadjuvante (Rooney Mara), melhor roteiro adaptado, melhor fotografia, melhor trilha sonora e melhor figurino.
5-A) "A grande aposta" >> 5 indicações: melhor filme, melhor diretor (Adam McKay), melhor ator coadjuvante (Christian Bale), melhor roteiro adaptado e melhor montagem.
5-B) "Star Wars: episódio VII - o despertar da força" >> 5 indicações: melhor montagem, melhor trilha sonora, melhor edição de som, melhor mixagem de som e melhores efeitos visuais.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Ranking 2015: os melhores e os piores filmes

Como são muitos os rankings de piores e melhores filmes de 2015, resolvi fazer o meu ranking, com algumas ressalvas. A primeira delas é a falibilidade de um rol como esse, pois ignora a elasticidade cinematográfica e a liquidez das obras quando comparadas. Logo, acho que é apenas um destaque norteador, não um veredicto. Estar no ranking dos melhores não significa perfeição, e também não exclui outros eventualmente esquecidos. Estar entre os melhores significa ter muitas virtudes marcantes; entre os piores, muitos defeitos notórios. Não é, em síntese, uma lista perfeita, impecável e indiscutível.

Até porque a subjetividade inerente ao ser humano é ainda mais forte aqui. Nas críticas, é possível ser mais objetivo e ponderado, dissecando o objeto do texto. Aqui o olhar é mais relativo, o que aumenta a possibilidade de discussão. É por essa razão que serão mencionados apenas o top 5.

Importante: os critérios utilizados são variados, merecendo destaque dois deles: originalidade (basicamente, roteiro) e execução técnica (visual, som, direção e atuação). Há também alguma margem de subjetividade no posicionamento de cada um - os ruins, porém, são praticamente indefensáveis.

MELHORES FILMES DE 2015

1. "Mad Max: estrada da fúria", pelo preciosismo técnico;

2. "Birdman (ou A inesperada virtude da ignorância)", pelo preciosismo técnico;

3. "A colina escarlate", pelo visual inigualável;

4. "Beasts of no nation", pela exposição crua de uma realidade; e

5. "O expresso do amanhã", pela originalidade inquestionável

- Menção honrosa para "Ponte dos espiões" (dentre outros, incontáveis, que poderiam ser citados), pelo roteiro genial.

- Menção honrosa (2): "Missão impossível: nação secreta", pelo fôlego da saga e seu protagonista.


PIORES FILMES DE 2015

1."Quarteto fantástico", pelo desastre completo;

2. "50 tons de cinza", pela exposição midiática que exigiria maior qualidade;

3. "Mortdecai - a arte da trapaça", por desperdiçar um bom elenco;

4. "Pixels", por ofender um sentimento saudosista; e

5. "Como sobreviver a um ataque zumbi", por não ter nada que se aproveite

- Menções honrosas não faltam, merecendo destaque "O último caçador de bruxas", que só não ficou em quinto lugar porque Michael Kane merece respeito.

- Menção honrosa (2): "Sob o mesmo céu", por mais um desperdício de elenco.

- Menção honrosa (3): empate entre "O exterminador do futuro: gênesis" e "Jurassic World", por também ofender um sentimento saudosista.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Spotlight - Segredos revelados -- Uma ótima história, um filme muito bom, mas superestimado

O jornalismo está em declínio no mundo. Sensacionalismo, notícias irrelevantes, exposições midiáticas desnecessárias e parcialidade são algumas das críticas recorrentes. A manipulação visível nos meios de comunicação ganha destaque e é constantemente referida, inclusive aqui no Brasil. Porém, não se pode negar a importância desta profissão, apesar do seu desmedido descrédito geral. E é por isso que "Spotlight - segredos revelados" aparece em boa hora, como uma justa homenagem ao jornalismo.

Uma faca de dois gumes. Como em qualquer profissão, existem bons e maus profissionais, e qualquer generalização se mostra equivocada. "Spotlight" é elogiadíssimo por parcela da crítica porque muitos deles são jornalistas, tendentes, portanto, a venerar a homenagem. Uma homenagem, reiterando, justa. O problema é que o filme exacerba numa visão romântica da profissão, como se fosse mais relevante e séria do que realmente é. Faz sim uma mea culpa, todavia, discreta demais. Com boas intenções, pode melhorar uma determinada realidade, mas, sozinho, não consegue mudar o mundo. O jornalismo é muito importante, mas tem suas limitações e seus podres. Está distante da perfeição retratada. Assim, "Spotlight" está distante do brilhantismo a que lhe é atribuído, é apenas um filme muito bom.

Trata-se de um retrato de uma história real em que um grupo de jornalistas (chamado "Spotlight") componentes do The Boston Globe investiga casos de pedofilia na Igreja Católica na sua cidade, mas acaba descobrindo números muito superiores aos inicialmente previstos. Enfrentando a Igreja e descobrindo várias tentativas de ocultação desses números (por parte dela mesma) - fato descoberto já no início-, os jornalistas seguem a empreitada até lançar ao mundo o escândalo, no início dos anos 2000. Com justiça, ganharam um Pulitzer, o Oscar do jornalismo.

Ocorre que uma opção fundamental do roteiro faz com que seu impacto seja inferior ao potencial. Baseada em fatos reais, a história por si só é ótima: ao descobrir alguns casos de padres pedófilos na cidade, o complexo emaranhado desses casos, ao ser esmiuçado, revela que os casos de pedofilia são mais comuns do que se pensava, e que as autoridades maiores dentro da complexa organização da Igreja Católica não apenas tem ciência desses fatos como faz de tudo para acobertá-los - utilizando-se das táticas mais inescrupulosas que se possa imaginar. O ponto nodal em que o roteiro acerta é demonstrar que não são casos isolados, mas uma ocultação sistemática de práticas vedadas na teoria e aceitas na prática. Afinal, ao padre é vedada qualquer atividade sexual. No caso, o que faziam consistia também em crime - sem adentrar no mérito da moralidade. Em outras palavras, a investigação demonstra que (i) o número é gigantesco, (ii) a Igreja Católica tem ciência disso e (iii) a Igreja Católica tenta esconder tais fatos. O resultado, ainda mais severo, é a impunidade dos padres em razão do disfarce usado por seus superiores. Não é fácil investigar um esquema tão orquestrado, tampouco expor na película de forma coerente e de fácil compreensão. Sem ser um ataque à instituição - até porque é muito mais brando que "Dúvida" na dramaticidade, por exemplo -, apresentam-se os fatos: existem muitos padres pedófilos, e a Igreja Católica não apenas sabe como se esforça para colocar uma cortina de fumaça diante disso.

O problema é que o longa, por opção própria (do roteiro), é muito mais impressionante do que comovente. As cenas que chegam mais perto de emocionar são os depoimentos das vítimas. É pouco, até por serem poucas e rápidas. Não fosse o elenco, seria um cubo de gelo. Há uma clara preocupação maior com os números do que com o drama em si, uma exposição fática fiel e objetiva. Isso fica evidente na medida em que mais importante que o objeto da investigação é o retrato de como ela ocorre, isto é, o foco é o trabalho jornalístico investigatório, e não o conteúdo da investigação. Sem olvidar o "inimigo" do Boston Globe, os holofotes ficam no hercúleo trabalho feito pelos jornalistas. Como já ressaltado, é uma homenagem ao jornalismo, o que significa que o enfoque é a sua empreitada - até porque seu objeto já é de conhecimento notório. Há um destaque no aspecto organizacional do Boston Globe, sem grande envolvimento das personagens com o que descobrem. Apenas sutilmente é que se demonstra a má-vontade dos católicos ante a investigação, diversamente da determinação dos não católicos, notadamente o novo editor do jornal, judeu. Esse retrato está presente, mas de forma tímida, pois o essencial era enaltecer o trabalho vencedor do Pulitzer. De bom na abordagem apenas esclarecer que vilã seria a Igreja Católica como instituição, não apenas os padres, afinal, eles agem, mas acobertados por ela. Sempre, porém, um olhar bem light de tudo isso, sem o escopo de horrorizar. No máximo, leva a uma reflexão fugaz.

Não que fosse necessária uma satanização (irônico, não?) do catolicismo. Os fatos falariam por si, se fossem melhor abordados. É nisso que a frieza e a falta de dramaticidade tomam relevo, pois a objetividade é tão grande que o filme que poderia ser histórico acaba sendo "tiro curto", ou seja, o potencialmente memorável enredo é abordado de forma tão objetiva e amena que a reflexão ocorre apenas no pós-filme, logo antes do esquecimento. Os jornalistas não tiveram medo de metralhar a Igreja Católica. O mesmo não se pode dizer dos roteiristas.

Para ser coerente com essa objetividade, coube a Tom McCarthy, também diretor do fraquíssimo "Trocando os pés", conduzir essa obra. Com efeitos visuais e sonoros minimalistas, alguns singelos planos-sequência e sem invencionices, McCarthy filia-se ao realismo numa direção modesta, porém competente. Essa era, de fato, a melhor opção, afinal, para um filme morno e racional (o lógico seria a passionalidade), melhor uma direção recatada.

O grande trunfo de "Spotlight" (melhor ignorar o desnecessário subtítulo dado no Brasil) é, sem dúvida, seu grande elenco. São poucas obras que reúnem nomes como Michael Keaton, Mark Ruffalo, Rachel McAdams, Liev Schreiber, Stanley Tucci e John Slattery. Contudo, poucas estrelas brilham mais que as outras, pois o nível geral de brilho é o mesmo. O fundamento disso é a (novamente) opção do roteiro em não aprofundar nas personalidades das personagens, retratadas de forma gélida, impedindo a identificação cinematográfica secundária. Não há um herói, não há um exemplo, nem se exige um grande trabalho dos atores. Não obstante, os artistas são tão bons que dão um toque dramático sempre que possível, suprindo a deficiência do roteiro. Se fosse possível destacar alguns nomes, seriam quatro. O primeiro é John Slattery, não pelo trabalho do ator, mas por Ben constituir o que haveria de mais próximo de um vilão dentro da redação - o que enriqueceria a narrativa, se desenvolvido. Também se destaca Stanley Tucci, por fugir dos papéis estereotipados com os quais se acostumara, desta vez sóbrio e sombrio. Outra surpresa foi Liev Schreiber, também bastante sério e distante da impaciência costumeira das suas personagens. Mas é Mark Ruffalo o único ator que realmente se sobressai: além de representar um Michael Rezendes hiperativo, destemido e com características próprias, o ator se transforma no papel, diferente dos anteriores - exemplo disso foi inserir um "TOC" de coçar a cabeça, detalhe que pode fazer alguma diferença. Alguns cogitam uma premiação, o que soa exagerado porque Ruffalo não chega à genialidade, destacando-se apenas porque a personagem permite uma distinção em relação às demais. Rezendes é o típico repórter de campo, aquele que corre (literalmente) durante os atos da profissão e que enfrenta os vários dissabores (como uma porta se fechando, também literalmente). O ator faz um bom trabalho, não um trabalho grandioso.

"Spotlight" é um filme que conta com a sustentação de uma boa história e um elenco grandioso, mas um roteiro fajuto. A questão é delicada, sem dúvida, mas havia a possibilidade concreta de uma narrativa mais arrojada. Falta verticalização das personagens, há um flerte com o maniqueísmo Igreja Católica versus Boston Globe (felizmente, os jornalistas não são perfeitos, e isso também aparece), não existe tensão nem dramaticidade, as possíveis subtramas ficam só na imaginação, enfim, a flecha da objetividade ruma em sentido horizontal. Disso se conclui que, na verdade, o longa é altamente superestimado por alguns críticos, afinal, não é inesquecível e não há genialidade alguma. Não é denso, nem tenso. É fático, é frio - contudo, inegavelmente competente. O filme é bom, talvez muito bom. É a prova que uma ótima história pode sustentar um filme. Ok, o elenco estelar ajuda. Mas é a história que chama a atenção. Se o filme é muito bom, a história é ótima. E se o filme não é ótimo, não é a história que deixa a desejar, mas sua abordagem.

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Os oito odiados -- Alto nível artístico

Quentin Tarantino é um diretor bastante particular, com uma obra consistente em, até agora, 8 filmes (ele promete 10). Seu oitavo é "Os oito odiados", no qual estão presentes todas as características típicas de Tarantino, como autor e diretor. Não que ele tenha errado, mas este não é seu melhor filme, podendo ser considerado muito aquém em relação ao último, "Django livre" (também do gênero western), por exemplo. O filme é excelente, mas acaba sendo vazio.

"Os oito odiados" se inicia com um rápido prólogo consistente em imagens e música, para depois começar efetivamente o primeiro capítulo - Tarantino fez novamente uma divisão em capítulos, o que já lhe concede alguma peculiaridade, embora não seja novidade em seus trabalhos. A música é uma introdução à brilhante trilha sonora; as imagens, planos gerais (que são raros) da nevasca que as personagens enfrentam. É no capítulo 1 que a narrativa tem seu start, com o Major Marquis Warren pedindo carona para o carrasco John "The Hangman" Ruth, que, relutante, acaba por aceitar. Seu receio reside em outra pessoa presente, Daisy Domergue, que foi apreendida (como se fosse um objeto) por ele para ser trocada por uma quantia em dinheiro - e, depois, enforcada. Warren também tem seu tesouro, logo, cada um poderia cuidar dos próprios interesses. Posteriormente, surge Chris Mannix, que se anuncia como futuro xerife (prestes a ser empossado) da cidade onde Ruth entregará Domergue. A nevasca aumenta tanto que os quatro buscam abrigo no Armazém da Minnie, encontrando outros quatro indivíduos: Joe Gage, Oswaldo Mobray, Bob e General Sanford "Don't give a damn" Smithers. Os três momentos preambulares (o prólogo, a reunião dos quatro na carroça e a chegada ao Armazém) merecem análise detida.

O prólogo (seria um "capítulo zero") tem como objetivo situar o espectador na insensível nevasca, esteticamente bela, mas cruel e muito presente na história. Aparece, além da neve, uma estátua de Jesus crucificado, figura que pode ser interpretada de incontáveis maneiras.

No capítulo 1, Warren é obrigado a pedir carona para Ruth, caso contrário, ficaria preso na neve. A interação entre as personagens é bastante significativa: Ruth é radicalmente desconfiado e, para ceder ao pedido, faz uma série de demandas - o Major não poderia se aproximar armado, devendo livrar-se delas para, lentamente, chegar perto da carroça e poder dialogar. Eles já se conheciam, mas fundamental foi o interesse próprio de Warren, o que, em tese, afastaria o risco de querer entregar Domergue e ficar com o dinheiro. Daisy já estava apreendida, mas não fora entregue, logo, havia o risco de seu apreensor, Ruth, não ficar com o dinheiro, o que justifica a sua enorme precaução. Há muito diálogo antes de os quatro chegarem ao Armazém. Ruth e Warren têm em comum a área de atuação e o profissionalismo, vez que ambos entendem que o trabalho exige seriedade e racionalidade. Os dois são experientes, mas com perfis distintos: enquanto "The Hangman" é grosseiro, preconceituoso, controlador e violento, o Major é um pouco mais sereno. Em vários momentos, Ruth agride severamente Daisy - alguns chegaram a, precipitadamente, acusar Tarantino de misoginia - em razão da sua insolência (afinal, ela não estaria no mesmo status que ele). A própria maquiagem com olho roxo em Domergue aponta uma violência pretérita (que vai se acumulando e continuando com a narrativa), mas Daisy, na prática, é um saco de pancadas para o carrasco, em lances de violência crua e levemente sanguinária. Warren também a agride, mas por um motivo bastante pontual. Não que os golpes de John em Daisy fossem desmotivados, mas são mais banais. A violência em Tarantino é banal. Ainda assim, esse segundo momento preambular é mais calmo e centrado nos diálogos - a maioria deles, dotada de uma acidez fenomenal, com preconceitos e ofensas mútuas, encerrando-se apenas quando Warren ameaça Mannix (aquele sofre muito com os três racistas). Desde então já existem vários conflitos, mas as faíscas se acendem mesmo quando os oito estão reunidos (terceiro momento preambular em diante). Até chegarem ao Armazém da Minnie (um local que mistura saloon com hospedaria), há uma interação inicial lenta. Lá chegando, são apresentadas as novas personagens: Joe Gage, escrevendo sua autobiografia; Oswaldo Mobray, carrasco da cidade em que Daisy será enforcada; Bob, mexicano que toma conta do Armazém em razão da ausência de Minnie (foi visitar a sua mãe); e General Smithers, em mero estado de repouso, alheio a tudo e a todos. Após tudo isso, o filme começa a esquentar e o sangue aparece em maior quantidade.

Como se percebe, "Os oito odiados" conta com um introito bastante arrastado e lento. Entre golpes, ofensas pessoais, uma carta de Abraham Lincoln a Warren e apresentações, muito tempo se passa (o total do longa é de quase 3 horas de duração), exigindo atenção e paciência do espectador comum. Não é um filme de Michael Bay, mas também não é de Woody Allen. Esse início vagaroso é proposital, elevando a tensão e preparando o atrito entre as personagens. Ora, sendo seu idealizador quem é, o sangue em demasia é essencial, obviamente iria aparecer em algum momento. Demora, mas aparece, satisfazendo, provavelmente, os fãs decepcionados com as cenas mais morosas dos primeiros atos.

Desta vez, porém, duas novas características estão presentes. A primeira delas é um escancarado tom teatral dado à obra: diversamente da ação mais comum nos filmes do diretor, este oitavo tem muito mais diálogos, relatos em flashbacks (na verdade, um vaivém temporal, pois ele opta por brincar com o tempo) e acontecimentos espaçados. A linguagem cinematográfica é bastante distinta daquela do teatro, pois aquele é muito mais baseado na ação, ao contrário deste, focado no texto (oral ou gestual). Isso de certa forma surpreende e tende à monotonia, mas o texto é tão bem escrito que não é possível entediar-se em momento algum - além, é claro, da expectativa em relação à previsível chacina. O clima de tensão obsta o tédio. A outra característica nova é uma tentativa vã de mistério na trama, que, lamentavelmente, resulta em um equívoco enorme. No rol de habilidades de Tarantino aparentemente não consta o suspense, e o enigma proposto é óbvio e previsível. Só não é desnecessário, embora outra alternativa poderia ter sido pensada, e certamente seria preferível. "Os oito odiados" flerta com o suspense, mas é um western spaghetti com um quê de terror. É um western spaghetti porque abraça dois dos pilares desse subgênero cujo pai foi Sergio Leone, quais sejam, a carnificina e o foco em figuras que normalmente seriam antagonistas, normalmente bandidos, criminosos e pessoas de moral questionável. É a carnificina que faz a ponte com o terror. O segundo pilar já é premissa na obra do diretor, pois é notório que o ilustre Tarantino foge de maniqueísmos e personagens de moral ilibada. Ao contrário, ele prefere pessoas de moral repugnante ou movidas pelo desejo cego de vingança. Como aponta o nome do oitavo filme, nenhum é flor que se cheire.

No geral, as personagens são interessantes. Samuel L. Jackson interpreta o Major Warren, em mais uma parceria com o diretor, que novamente dá certo. Provavelmente, eles falam o mesmo idioma, pois Jackson novamente brilha numa atuação convincente e, desta vez, mais contida. Seu discurso provocativo, seu riso irônico e sua frieza são marcantes. John Ruth é vivido por Kurt Russell, em atuação boa, mas sem tanto brilho. Já a Jennifer Jason Leigh coube Daisy Domergue, que tem uma fascinante personalidade, pois ela é cínica, sádica, grosseira e intrépida à sua maneira. Ela é fascinante porque reúne características fortes e pouco comuns, o que se alia à interpretação soberba da atriz: exagerada, mas não farsesca, com tom cômico, discurso afiado e um gestual inigualável. No elenco, é ela quem mais brilha, seguida por Jackson. Walton Goggins atua como Chris Mannix, um patife de menor profundidade. Também menores foram Michael Madsen (Joe Gage) e Demian Bichir (Bob). Diversamente, o Oswaldo de Tim Roth destoa da maioria por ser o mais polido e sereno, personalidade que Roth soube captar muito bem. O General Smithers é interpretado por Bruce Dern, em atuação boa, mas participação dispensável. Parece que a personagem foi inserida apenas para interagir com Samuel L. Jackson numa cena mais pesada e chocante (que por si só justifica a censura de 18 anos de idade), e Dern foi o nome certo para a dramaticidade necessária. Ainda assim, a personagem pouco acrescenta. Há ainda uma participação surpresa de Channing Tatum.

Era previsível que oito (na verdade, são mais) personagens não conseguiriam ter o mesmo espaço, de sorte que algumas têm mais destaque que outros - Joe Gage, por exemplo, só não é minúsculo porque o roteiro, forçosamente, não permitiu. A rigor, uma pluralidade tão grande é um equívoco, pois é praticamente impossível todos terem a mesma importância. Além disso, o desnível de talento (comparando Jackson com Bichir, por exemplo), é patente. Ou seja, a presença de tantos nomes acaba sendo um erro primário, que só não é fatal pela idiossincrasia que Tarantino representa no cinema. Sua filmografia é uma colcha de retalhos, o que não é ruim, pois a originalidade reside justamente na compreensão e união de elementos dos mais diversos. O filme é tão peculiar que, ainda que pareça ter tentado, não consegue ser ruim.

Prosseguindo na crítica - afinal, um longa de 3 horas de duração carece de uma análise aprofundada e inevitavelmente prolixa -, a porta do Armazém é quase uma personagem à parte. Mais presente no terceiro momento preambular (que já começa a ser preambular), ela precisa ser fechada de uma maneira bastante própria (e aberta com um chute), caso contrário, continuará aberta, impedindo que o local fique fechado e proteja as personagens da nevasca. É uma metáfora que remete à ideia de que o estabelecimento não é um abrigo, não é um lar, um local onde as pessoas ficariam seguras. O ingresso não é fácil, e mais difícil ainda é manter-se dentro. A entrada no Armazém e a necessidade de um trabalho para fechar a porta simbolizam as noções de insegurança, perigo e cautela. Nada no cinema é por acaso, esse elemento não está lá à toa. A própria nevasca também tem um significado relevante, pois não apenas justifica a reunião dos odiados (esta é desdobramento lógico daquela), mas mostra que o mundo lá fora tem perigos indômitos. São reflexões como essas que levam a concluir que o nível artístico de uma obra como essa é infinitamente superior à maioria dos filmes, pois o marasmo, a frivolidade e a ausência de simbologias impera no cinema - razão pela qual "Os oito odiados", longe de ser maravilhoso, acaba se destacando.

Tecnicamente, o filme é impecável. O design de produção é verossímil e precioso, mas é o som a maior estrela, por duas razões. A primeira delas é o fato de contar com uma encantadora trilha sonora original do mestre inigualável Ennio Morricone, que tem a habilidade ímpar de potencializar todos os significados de tudo que cada plano indica. Além disso, a mixagem de som é fenomenal, pois atenta a todos os detalhes possíveis, desde a nevasca até o caminhar dos odiados dentro do Armazém. Seguindo no olhar técnico, o filme foi filmado em Ultra Panavision (câmera) de bitola (largura da fita da gravação das filmagens) de 70 mm, enquanto o comum é de 35 mm (ou câmeras digitais). Infelizmente, no Brasil, não temos nenhuma sala que exiba esse formato original, então, a versão que assistimos é a que foi feita a adaptação para o formato digital, inferior ao original tão enfatizado pela produção.

Diante de tantas virtudes, o que "Os oito odiados" tem de ruim? De fato, o texto do roteiro tem diálogos interessantes, associações simbolicamente significativas e uma dinâmica diferenciada. Alia-se a isso os recursos da direção, como o uso de flashbacks nos momentos certos e uma narração para simplificar alguns relatos. Nesse ínterim, é inegável que Tarantino domina a mise-en-scène ao construir planos detalhistas: o cenário principal é apenas um, o Armazém (o que também remete ao teatro), mas um olhar atento permite observar que são tantos os elementos presentes que a atenção prestada para a sua montagem foi um trabalho árduo; o trabalho de câmera é excelente, com ápice em a uma filmagem giratória durante uma conversa; a linguagem corporal das personagens é eloquente; a iluminação é perfeita; a ação é propositalmente chocante; enfim, há um suntuoso visual minuciosamente orquestrado para ser marcante. O problema é que tudo isso representa uma visão micro dentro daquele universo. O contexto é um momento de pós-guerra, em que preconceitos, com destaque ao racismo (muito presente, em incontáveis oportunidades em que a palavra "nigger" é dita), são comuns. Há um recorte bastante preciso, uma visão bem exposta. Por outro lado, em visão macro, não há muito além do entretenimento e conclusões niilistas. Isto é, à riqueza dos detalhes opõe-se a pobreza da síntese da obra, que, ao mesmo tempo que encanta ao ser assistida, torna-se vazia depois ao não permitir grandes reflexões. Mesmo ao tratar de um tema espinhoso como o racismo, a abordagem é um mero retrato temporal-espacial, não chega a ser uma crítica. O discurso ácido não chega a ser construtivo. Melhor dizendo, a abordagem das temáticas não é construtiva, mas meramente expositiva. Esta ressalva é fundamental, sem, porém, que apagar a conclusão já elaborada de que, ante o marasmo, a frivolidade e a ausência de simbologias que impera no cinema, "Os oito odiados", longe de ser maravilhoso, acaba se destacando por seu alto nível artístico.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Labirinto de mentiras - Em nada arrojado, mas ótimo

A Segunda Guerra Mundial é um oceano não totalmente explorado no cinema, representando infindáveis possibilidades. Ocorre que, para gerar interesse, mister apresentar uma abordagem diferente daquelas já conhecidas (ou, evidentemente, histórias completamente inéditas), caso contrário, o filme é fadado ao esquecimento. "Labirinto de mentiras" é um filme alemão pré-selecionado ao Oscar de Melhor Filme (estrangeiro), prêmio que, se ganhar, não será surpresa. Só o fato de termos em cartaz no Brasil um longa alemão já desperta interesse, pois a pluralidade cultural é uma iguaria a ser encarada com distinção.

A história se inicia em 1958 e tem como protagonista o jovem Promotor de Justiça Johann Radmann, que vê em um fato noticiado por um jornalista perante os demais Promotores a chance de crescer na carreira. Até então, Johann era o responsável pelas infrações de trânsito em Frankfurt, e a investigação dos delitos cometidos em Auschwitz representaria uma catapulta para Herr Radmann e para a justiça alemã. Evidentemente, não seria tão simples.

Como se vê, é nuclear a autosuperação alemã, diacronicamente, em dois momentos: à época, ao enfrentar os seus próprios demônios - lembrando tratar-se de uma história baseada em fatos reais -, e mesmo hoje, ao se expor ao mundo. Isto é, o tema é espinhoso e careceu de um roteiro sensível o suficiente para tratá-lo com seriedade e realismo. O objetivo foi atingido, vez que foi mesclada a investigação do Promotor em relação aos atos impunes de Auschwitz e a sua própria vida pessoal, o que concedeu maior leveza, sem retirar-lhe a densidade. Quanto à investigação, são ressaltados os depoimentos das testemunhas (vítimas e investigados) e as dificuldades encontradas por Herr Radmann na empreitada; quanto à sua vida pessoal, a ampliação do seu círculo de amizades (até então, aparentemente, inexistente, pois apenas ao se aproximar do jornalista é que Johann começa a ter vida social), um romance e um desagradável passado na família. Ademais, a grande novidade do roteiro é expor uma Alemanha "caçando" a própria Alemanha, ou, como dito no longa, uma corte alemã julgando alemães por crimes de um pretérito um pouco distante, cometidos fora do seu território - prescritos a maioria, restaram os homicídios. Isto é, o trabalho do Promotor seria, a contragosto de inúmeras autoridades, investigar as atrocidades de Auschwitz através de documentos e depoimentos, para acusar os responsáveis pelos homicídios (e desde aquela época, juridicamente, a acusação dependia de indicações concretas, como vítima certa). Um trabalho hercúleo, como se pode imaginar - até porque alguns acusados já residiam fora da Europa, o que ameaçaria as relações diplomáticas entre os países envolvidos.

Com uma trilha sonora compatível com as respectivas cenas, aptas a ampliar o sentimento transmitido em cada uma delas, "Labirinto de mentiras" conta com Giulio Ricciarelli (sim, ironicamente, um italiano) na direção, fazendo ótima estreia, inclusive. Ricciarelli utiliza inteligentemente o rack focus (mudança no foco) na cena da visita física a Auschwitz, com belos e delicados planos. Mas foi no domínio da mise-en-scène que o diretor acertou: por exemplo, inserindo gradualmente o cigarro e a bebida no cotidiano de Johann - no início, de forma quase imperceptível e meramente social, depois, de forma mais escancarada e dramática -, além da inserção dos objetos nos cenários (sempre bem montados), que são locais sempre cheios (como a sala do Promotor e a sua casa) e minuciosamente detalhados para indicar a vida social zero do protagonista. Além disso, já no título em alemão está presente o labirinto, que é uma metáfora bastante inteligente, representada de forma física diversas vezes - de forma explícita quando Johann sonha, e em sentido figurado em um alerta dado pelo Advogado-Geral, aparentemente autoridade máxima no que se refere ao órgão acusatório. Assim, seu significado é imenso e merece atenção. Uma pena as indispensáveis elipses nas cenas de interrogatórios: pena porque davam um grau exponencial ao drama; indispensáveis porque, caso contrário, o filme duraria muito mais do que o necessário.

O protagonista é Johann Radmann, como dito, um jovem Promotor de Justiça, interpretado por Alexander Fehling. Trata-se de um ator jovem, mas com muito talento, cujo trabalho de atuação teve o ápice na deterioração pessoal, sem retirar o mérito da direção, já destacado. Coube ao diretor dar as pistas dessa condição de Johann: ele se enterrou nas drogas lícitas como uma forma de se evadir da dura realidade com que se deparava no trabalho (além da pressão). Ou seja, a direção contribuiu na formação deste lastimável estado - mas a interpretação de Fehling beirou a excelência ao retratar o declínio de alguém tão promissor. Com uma maquiagem leve e despido de maneirismos, o ator soube representar os dois lados da personagem: um jovem Promotor subestimado em razão da idade, porém destemido, responsável e bastante dedicado; um homem sério e tímido, mas com um charme introspectivo e uma vulnerabilidade inerente à condição humana. Johann é uma personagem rica e com a densidade suficiente para o protagonismo, e o ator abraçou o ímpeto do Promotor a ponto de escancarar a obsessão que a empreitada se tornou, obsessão esta que leva Radmann ao auge e ao declínio profissional. Nem mesmo um gráfico seria tão nítido para demonstrar o câmbio sofrido por ele em suas nuances. Mais que isso, Johann é o representante de uma juventude que queria apagar o passado por meio de um então imprescindível enfrentamento dos responsáveis. Interessante observar que, até então, o que aconteceu em Auschwitz era desconhecido da população alemã (daí a ideia de mentiras, pois, nas aparências, em Nuremberg haviam sido julgados, pelos Aliados, os principais nomes, enquanto que foi Herr Radmann quem descobriu que muitos outros, nazistas por convicção, ainda estavam impunes). A intenção de muitos, inclusive autoridades, era manter as aparências sem revirar o passado fúnebre. O protagonista é fascinante porque esboça uma conduta exemplar, impulsionando a identificação cinematográfica secundária em relação ao herói real. Ainda em relação ao elenco, no geral, os demais artistas também estão bem. A namorada de Johann é Marlene (Friederike Becht), uma mulher que transborda personalidade, logo, combinando com ele. Apesar de aliviar a tensão da narrativa, o romance é tão artificial que quase prejudica a trama principal. Também no círculo de amizades do protagonista figura o jornalista Thomas (André Szymanski), pessoa impulsiva e passional que faz um contraponto com aquele.

Como se vê, "Labirinto de mentiras" praticamente não tem defeitos. Seu único problema talvez seja a timidez, pois não é em nada arrojado, ao revés, conta até mesmo com um romance maquinado. Não obstante, o filme é ótimo.