segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Victor Frankenstein -- Apenas mais um número

Alguns equívocos cinematográficos podem passar despercebidos, mesmo que ocorram no roteiro (e mais ainda em hipótese exclusivamente técnica). Entretanto, algumas questões constituem pontos nevrálgicos de um filme, são aspectos para os quais o cineasta precisa atentar, sob pena de prejudicar a obra por completo. Nesse ínterim, a premissa se mostra absolutamente fundamental para qualquer obra artística. Trata-se do ponto de partida, a base na qual ela se assenta, a linha-mestra e o limite a partir dos quais seus contornos são traçados de forma coerente. A premissa de "Victor Frankenstein" é equivocada, prejudicando um filme que talvez pudesse ser razoável.

Isso porque não se trata de uma adaptação fiel de obra de Mary Shelley, mas de uma nova história que utiliza alguns elementos básicos do clássico literário. O roteiro pesca alguns aspectos do livro e cria outros que, de tão relevantes, se distanciam demasiadamente do original. São mantidos Frankstein, criador e criatura, mas é praticamente apenas isso que permanece intacto. Ou seja, a expectativa de assistir a uma adaptação minimamente fiel é frustrada, aparecendo um produto novo quase que na íntegra. Melhor seria admitir a si mesmo como obra nova, ao invés de, aproveitando a fama do livro, assumir-se como adaptação. É evidente que qualquer adaptação livro-filme admite criatividade artística ao redator (no caso, roteirista), isso já é rotineiro. O problema se dá quando a liberdade, que é um direito inegável, extrapola os limites do razoável a ponto de ultrapassar as premissas do original, partindo então de uma premissa própria equivocada. Vale dizer, se fossem dados novos nomes (em especial no título), confessando ser Mary Shelley mera inspiração teórica (quiçá longínqua), haveria maior honestidade artística na produção, gerando expectativa diversa da concretamente causada. Essa afirmação não é exagerada, pois há sim uma desonestidade artística nessa propaganda enganosa. Analogamente, o mesmo se deu com "O hobbit", obra do grandioso Tolkien, que foi tão deturpada que a versão cinematográfica é desprezivelmente aquém do original. Não custa reiterar que a adaptação não precisa ser 100% fiel, mas faltou parcimônia a "Victor Frankenstein".

A premissa básica se refere a essa desonestidade artística, pois o filme não é uma adaptação do livro, mas uma obra nova nele inspirada. A segunda premissa, também equivocada, refere-se ao fato que, ao contrário do que pode parecer pelo título, o protagonista não é Victor, mas Igor, seu assistente, personagem inexistente no livro. É bem verdade que Victor gira as engrenagens que permitem a narrativa avançar, sem ele, não haveria narrativa. Contudo, Igor é ainda mais fundamental, por diversas razões. Igor tem mais subtramas relevantes, como seu pretérito no circo, sua condição física e intelectual e um romance anunciado desde o começo. Já Victor tem duas únicas subtramas, minúsculas: o relacionamento com seu pai, que se reduz a uma única cena, e a perseguição que sofre pelo policial que o investiga, que aparece mais, mas que se mostra irrelevante. Igor é muito mais aprofundado que Victor, a ponto de o espectador poder afirmar que conhece o primeiro muito melhor. Outrossim, é apenas Igor que evolui com a narrativa: não apenas no aspecto físico, mas principalmente do ponto de vista psicológico, o assistente cresce como pessoa, enquanto que Victor é estagnado e voltado exclusivamente ao seu objetivo de vida.

O objetivo da vida de Victor, como se sabe, é a superação da morte através da criação artificial de um novo ser. Isto é, o dr. Frankenstein quer deixar de ser criatura para ser criador. É óbvio que essa ideia permite diversas conclusões, de cunho ideológico, moral e religioso, mas o roteiro fica centrado no olhar religioso sobre o tema, em especial no maniqueísmo artificial entre o cientista e o policial investigador. Na verdade, além de artificial, o debate religioso é muito artificial, logo, o que poderia ser um trunfo, acaba se tornando um enorme defeito. A artificialidade reside no fato que os dois têm entendimentos tão radicais que se mostram inverossímeis, são dois extremistas irracionais. O policial é risível de tão fanático religioso, aliás, isso chega a permitir que Victor o satirize, de modo a escancarar que a personagem em si não pode ser levada a sério. Mas Victor não fica muito atrás, pois, obstinado no intento de criar um novo ser vivo, parece habitar uma realidade à parte. É justamente por isso que o assistente é mais interessante: até mesmo por gratidão, Igor ajuda Victor na criação, mas seus interesses não ficam ali reduzidos, ao revés, procura relacionar-se afetivamente e sabe que, depois de ter sido "curado" por aquele - deixa de ser corcunda -, poderia seguir uma carreira como médico, por exemplo.

Também a atuação colabora para o destaque de Igor em detrimento de Victor. Este é interpretado por James McAvoy, que é tolhido em razão da limitação da personagem; aquele, por Daniel Radcliffe, que, no esforço de se desvencilhar de Harry Potter, abraça projetos diversificados e, desta vez, está ótimo e convence, em especial quando corcunda. Inclusive a competente maquiagem (ao contrário do CGI fraco) privilegia Radcliffe, que é o único que carece desse recurso. O resto do elenco não merece destaque algum.

Da mesma forma, não merecem destaque a direção e o design de produção, que não ousaram a fazer o básico, com ambientes e cenários majoritariamente escuros, figurino de época sombrio e filmagem regular com poucas angulações. Surpreende o final, em que a narrativa deixa de ser responsabilidade de Igor para recair em Victor.

"Victor Frankenstein" cairá no esquecimento em breve, pois não apresenta nenhum elemento memorável. É apenas mais um filme sem originalidade, sem inovação, sem brilhantismo e com alguns defeitos. Apenas mais um número na cinebiografia dos envolvidos.

domingo, 22 de novembro de 2015

Jogos vorazes: a esperança - o final -- Acabou mal, mas (ainda bem que) acabou

O capítulo final de uma saga tem o condão de eternizá-la ou sepultá-la na história do cinema. Pode ser o seu ápice, com um grand finale - como é o caso de "O senhor dos anéis: o retorno do rei", por exemplo -, ou uma frustração gigantesca - como o parente "O hobbit: a batalha dos cinco exércitos". Têm razão os que inserem "Jogos vorazes: a esperança - o final" no segundo grupo.

Tratando-se de um epílogo, um olhar diacrônico pode ser um bom começo. A série "Jogos vorazes" se inicia com uma mitologia aparentemente pós-apocalíptica, em que uma nação é dividida em distritos, sendo anualmente escolhido um homem e uma mulher para disputar um jogo. O jogo consiste numa batalha surreal em que apenas o último representante vivo é o vencedor - encerra-se apenas quando todos os demais falecem, seja por assassinato de outro participante, seja por cair nas armadilhas dos organizadores. Tudo isso para representar a paz que a nação (Panem) atingiu há mais de 7 décadas e lembrar o passado sombrio do qual pouco se fala. De certa forma, para enaltecer o pulso firme do líder - além de divertir os cidadãos da capital, que vivem como nobres, ao contrário dos demais. No primeiro filme, são os seguintes fatos de relevo: (i) a protagonista Katniss abandona a sua família se oferecendo para participar do jogo no lugar da sua irmã; (ii) Katniss e Peeta, outro representante do seu distrito, conseguem fingir um romance que faz com que os dois recebam a simpatia da capital, o que é estrategicamente vantajoso; e (iii) Katniss e Peeta ganham a edição que participam. No segundo filme, são chamados os vencedores de todos os distritos - e não participantes quaisquer, como antes -, numa edição chamada "Massacre quaternário" (que remete a uma rebelião contra o sistema, que não deu certo), prometendo uma carnificina ainda maior. O que há de importante em "Jogos vorazes: em chamas" é o crescimento de Katniss como figura forte e de personalidade, e o início de uma rebelião contra o líder, Presidente Snow - o pseudoromance entre Peeta e Katniss permanece. De forma arrogante e gananciosa, os produtores da série imitam a saga Harry Potter, dividindo o último livro em dois filmes (o que também foi feito em outra obra, de qualidade ainda inferior) - arrogante porque não chega aos pés da história criada por J. K. Rowling, gananciosa porque garante maior arrecadação sem se importar com a qualidade do produto oferecido. "A esperança" foi dividido em dois filmes ("parte 1" e "o final"), um pior que o outro (ao menos os filmes), ambos narrando a rebelião contra Snow. O resultado só não é catastrófico porque, no fundo, há uma boa ideia.

Como se percebe, a série pode ser dividida em duas: antes da rebelião (dois primeiros filmes) e depois da rebelião (dois últimos filmes). A primeira fase padece de um mal de correção impossível, vez que parte de uma premissa inaceitável, segundo a qual a humanidade seria capaz de um retrocesso tal que permitiria que uma carnificina fosse encarada como diversão, dentre outras ideias intoleráveis. Por outro lado, há bastante ação e a figura da protagonista recebe o enfoque necessário para fascinar. Já a segunda fase é muito mais inteligente, pois exibe a luta de um povo contra um déspota e a favor de um regime democrático, eliminando o absurdo que os Jogos Vorazes representam. Porém, o primeiro filme é extremamente travado (pouco acontece, o que escancara o objetivo exclusivo de lucro, o que é incoerente com a própria ideologia da história), enquanto que o segundo é simplesmente fraco. De positivo foi o encerramento de uma saga cinematograficamente descartável.

A divisão em dois filmes acabou se mostrando um erro fatal do roteiro, que é claramente escalafobético. Katniss perde seu encanto, Peeta se descaracteriza e a sequência dos fatos é bastante previsível - o que inclui o encerramento em sentido estrito. De nada adianta uma boa montagem - em especial ao unir cenas concomitantes com um pingue-pongue entre planos diversos, o que já foi feito anteriormente e se mostrou um acerto - e uma direção razoável se o roteiro sabota todo o resto. Narrar uma luta em prol da democracia, a frivolidade e o egoísmo humanos e a alma ditatorial de alguns - dentre outros temas interessantes expostos - é uma excelente ideia, não por ser nova, mas por ser densa, complexa e capaz de render ótimos frutos. Ainda mais considerando o público alvo adolescente/jovem. Ocorre que "Jogos vorazes" não quer ir tão longe, prefere uma abordagem horizontal dessa crítica social do que aprofundar e levar o espectador à reflexão. Nem mesmo um leve plot twist no final (que não será revelado para não correr o risco de expor o leitor a um spoiler, mas que é previsível, como todo o filme) consegue envolver o suficiente, pois, apesar do tema adulto, o filme é bastante superficial na temática. A diferença abissal de tratamento entre os moradores da capital e os cidadãos dos demais distritos seria motivo por si só de uma revolta popular, todavia, são os Hunger Games que causam o rancor social. Não que não exista sentido, pois os odiosos jogos seriam sim capaz de revoltar qualquer sociedade. Mas e o abismo social? Há que se recordar que ele ocorre não por um sistema eminentemente econômico, como se poderia alegar a respeito do capitalismo, mas sim pelo regime de governo, pois é o déspota o grande responsável (não apenas pelos jogos como também) por essa situação. Enquanto alguns vomitam para poderem comer mais, outros passam fome, e é Snow o responsável por manter o status quo, apoiado por uma minoria e querendo, na base da força e da repressão, parecer, na pior das hipóteses, um mal necessário. Snow quer convencer a sua população que o sofrimento é o preço a ser pago pela paz. É evidente que a ideia é muito boa.

No cinema, contudo, uma ideia boa nem sempre basta. O diretor Francis Lawrence fez um ótimo trabalho de câmeras, no qual prevalece o primeiro plano (close nas personagens, em especial, claro, Katniss), alternando com poucos planos gerais - esses ocorrem apenas para mostrar a atuação devastadora de Snow. Além disso, Lawrence até conduz bem o filme, errando em especial no ritmo - estava, porém, fadado a tal equívoco, em razão da divisão em dois filmes -, conseguindo ser claro nos enfoques que deseja. Claro, mas não ácido, isto é, despido da acidez que um filme tão crítico demandaria. Snow é um vilão aterrorizador, mas não chega a ser odioso. O ditador é interpretado com maestria por Donald Sutherland, e não podia se esperar menos de um ator do seu quilate. Mas Snow apenas assusta, e não revolta. Nem Snow nem Sutherland têm culpa da monotonia imprimida pela direção, algo incoerente em relação ao que se espera de uma guerra civil. Isso tudo sem contar a indecisão quanto ao gênero, pois "o final da esperança" é um blend de ação, romance, suspense, terror, ficção e drama - um filme que quer ser tudo acaba sendo nada.

Também a ótima atuação de Jennifer Lawrence não evita o fiasco. Sua Katniss consegue crescer com o decorrer da saga, sendo prejudicada agora, pois a personagem se esvazia demasiadamente. A protagonista surge como corajosa e imprudente, além de fria, amadurecendo a cada filme. É em "a esperança: o final" que esse amadurecimento é descartado, pois Katniss regride para uma guerreira insegura (ou não tão segura quanto outrora) sobre si, ainda que corajosa. Ela move o filme, mas sem exercer o fascínio de antes, sem convencer ao representar o Tordo, aquilo que a população esperaria dela. Os outros grandes nomes não deixam a desejar no que lhes cabia, em especial Josh Hutcherson (teve o azar de a personalidade de Peeta, a exemplo da protagonista, se esvair com o roteiro, que o tornou inconstante e de menor relevância), Julianne Moore (prejudicada pela obviedade de Coin), Philip Seymour Hoffman (fará falta no cinema, R. I. P.), Jeffrey Wright (Beetee foi a única personagem que se manteve estável, importante e interessante), Elizabeth Banks (Effie foi a única personagem que cresceu na narrativa, em especial pelo caminho da futilidade para o amadurecimento pessoal, social e afetivo, do primeiro ao último filme), Sam Claflin (Finnick enfim tem importância) e Woody Harrelson (de participação diminuta). Liam Hemsworth é o pior, demonstrando que é discípulo de Kristen Stewart. Por sua vez, Elizabeth Banks é a melhor, até pelo privilégio de interpretar a melhor coadjuvante da história.

Não existem aspectos técnicos que merecem grande destaque. O figurino é simplório e inferior aos anteriores, e o design de produção é constantemente sombrio, o que não condiz com o título (melhor dizendo, deveria ser apenas preponderantemente sombrio, não quase que exclusivamente). A mixagem de som é paupérrima em razão da edição de som discreta e óbvia. De positivo, apenas o cenário, que continua encantando por ser tão heterodoxo. É pouco.

Diante de uma infinidade de olhares que "Jogos vorazes" permite, um olhar imparcial (distante do fanatismo, em especial dos leitores da trilogia original escrita) aponta pela insignificância da saga e pelo desprezo em relação ao epílogo. Desprezo por ser chato, monótono, incoerente e decepcionante. É chato porque muito previsível, monótono porque despido da ação característica, incoerente porque aniquila premissas prévias (em especial no que se refere a Katniss, que deveria estar no seu auge), e decepcionante porque a boa ideia foi desperdiçada. De forma sintética, o desprezo se materializa pela cena ridícula em que zumbis atacam os heróis, cena esta artisticamente asquerosa para um filme que pretendia ser minimamente sério. Até a última cena é desnecessária - definitivamente merecia ter sido excluída. Se os problemas fossem esses, "Jogos vorazes" seria finalizado de forma respeitável. Mas um filme que mescla, de forma estúpida, mais de um gênero, sem qualidade em nenhum deles, não merece esse respeito. Acabou mal, mas (ainda bem que) acabou.

sábado, 14 de novembro de 2015

Aliança do crime -- Filme medroso

Existem filmes arrojados, usando como norte o famoso ditado popular "quem não arrisca, não petisca". Evidentemente, arriscar significa dar maior margem para o erro, ou seja, é uma coragem de resultado duvidoso. Isso porque o produto pode ir do oito ao oitenta, do genial ao fracasso. Não é por razão diferente que a imensa maioria prefere transitar dentro de uma zona de conforto, sem grandes avanços e ousadia zero. São filmes medrosos, como "Aliança do crime", filme bastante aguardado mas que deixa a desejar.

Não se pode negar que fazer um filme sobre máfia não é fácil, ainda mais em se tratando de um subgênero que tem representantes clássicos, como "O poderoso chefão" e "Os bons companheiros", cujo brilhantismo causa influência até em outros gêneros (ainda hoje). Mais complexo ainda quando se trata de história real e razoavelmente conhecida pelo público, o que, em tese, obsta inovações relevantes.

Mas isso tudo não é desculpa, pois falta a "Aliança do crime" a coragem necessária no cinema. Vale dizer, o filme é medroso simplesmente porque não quer arriscar e faz o "feijão-com-arroz" para ter como resultado uma obra de qualidade, mas distante do memorável. Indo além: nem mesmo o pesado marketing e o elenco estelar conseguiram dar um quê a mais - na verdade, o marketing acaba sendo prejudicial, pois gera expectativa gigantesca em torno de um objeto ordinário.

O medo começa na direção: Scott Cooper, diretor que está se habituando com grandes nomes (Christian Bale, Jeff Bridges) e histórias sérias, influenciado pelos clássicos e com receio de arriscar demais, mostra-se discreto no seu trabalho, o que acaba sendo fundamental e refletindo nos demais setores (tamanha a importância da direção em um longa-metragem). Poucos planos gerais, alguns planos abertos, movimentos óbvios de zoom in e zoom out e evasão a movimentos de câmera um pouco mais complexos (como panorâmica e travelling). Os ângulos de filmagem são básicos, sem ousadia alguma, como faz qualquer principiante (como Cooper). Dada a sua importância, a análise sonora merece algumas palavras, na menor quantidade possível em razão da limitação vista (ouvida) em "Aliança do crime": edição de som tediosa e vulgar, com uma obviedade absurda, uma discrição lamentável e escolhas minimalistas; e mixagem de som limitada justamente por causa da edição fajuta. Por outro lado, o design de produção já está em outro patamar, pois sai do óbvio ao (i) dar aos mafiosos um figurino sombrio sem soar bizarro e (ii) reproduzir a Boston das décadas de 70 e 80 de forma verossímil e com tons discretos - mérito para a fotografia, com e sem luz nos momentos corretos. Como a história não permitia um design fantasioso, a opção por um realismo historicamente condicionado foi um evidente acerto, pois permite ao espectador adentrar na diegese com facilidade. Torna-se, pois, um visual pitoresco.

O grande destaque, em especial em relação ao público em geral, refere-se ao elenco, afinal, "Aliança do crime" conta com grandes nomes. Protagonista, o grande mafioso James (Jimmy) "Whitey" Bulger é interpretado por Johnny Depp, que finalmente volta a fazer um filme sério e consegue se desvencilhar de Jack Sparrow. Depois de fracassos recentes retumbantes como "Mortdecai: a arte da trapaça","Transcendence: a revolução" e "O cavaleiro solitário", Depp enfim participa de um filme que, no mínimo, lhe concede respeito artístico - afinal, seu renome já não mais permite ao ator abraçar projetos quaisquer como esses pretéritos. E isso não é resultado apenas de se tratar de uma história real, uma personagem real, mas sim reflexo da sábia decisão de acolher um projeto virtualmente aprazível, além de uma dedicação para mudar e fazer algo realmente diferente. Depois de Jack Sparrow, Depp dificilmente conseguia atuar sem os trejeitos e maneirismos desta personagem, prejudicando, por exemplo, Willy Wonka. Inegavelmente, a pesada maquiagem coopera para o esquecimento do que o ator viveu antes, mas não é diretamente responsável (ou ao menos não o único elemento responsável). Isso porque Depp faz uma interpretação simplista e contida (raro, em se tratando de quem ele é), mas sem recair nas expressões de paisagem como em "A janela secreta" e em "O turista". São as poucas nuances que o ator dá a Bulger que permite o trânsito entre um pai dedicado (à sua maneira, é claro), um marido carinhoso e um bandido crescentemente inescrupuloso. Mais que isso, é a interpretação de Depp que permite ao espectador ficar sempre de sobreaviso, pois é veloz a alteração entre a calmaria e a raiva em Bulger. Um dos grandes trunfos de "Aliança do crime", aliás, é esse: Jimmy pode soar sempre pacato e pacífico, mas sua (em regra) racionalidade é um trampolim para a ira instantânea, representada por gestos e atitudes, raramente na face. Se não houve um desenvolvimento maior da personagem, foi porque o roteiro não permitiu um aprofundamento psicológico - por exemplo, no que se refere à relação dele com seus familiares -, não é culpa de Depp, que fez a sua parte.

Aparentemente, o objetivo era colocar toda a luz em Johnny Depp, apenas amparado pelos coadjuvantes, todos eles com um histórico notório - alguns mais, outros menos. Todavia, não avisaram Joel Edgerton que o protagonismo deveria ser exclusivo daquele, de modo que Edgerton, sem dificuldade, é o melhor ator em cena. Jimmy é o protagonista, é em torno dele que a história gira, do começo ao fim, mas Connely é, sem dúvida, engrenagem fundamental para a narrativa, e seu intérprete foi capaz de representar um policial dúbio. A ambiguidade de Connely reside no fato de que ele mesmo se convence estar guiado por um objetivo nobre, norteado por um interesse maior (a aniquilação da máfia - exceto Bulger) que justifica todas as suas ações, inclusive as mais questionáveis. No entanto, o envolvimento com o(s) mafioso(s), Bulger em especial, se torna tão próximo que Jimmy Bulger e John Connoly se tornam um só, duas faces de uma mesma moeda. O policial é o que de concreto Maquiavel considera a justificativa dos meios através dos fins, pois suas públicas boas intenções são cada vez mais dúbias, não se podendo afirmar se haveria má-fé e finalidade de ajudar o amigo de infância ou ingenuidade e real crença em fazer o bem. Em suma, não se sabe se Connely é apenas um ingênuo com boas intenções, um corrupto travestido de policial cujo objetivo é apenas engrandecer o poderio de um mafioso com quem mantém uma relação de amizade, ou ainda um tolo que enxerga uma oportunidade para se destacar nas aparências crendo estar imune nas suas ações por força da sua condição de policial - e é a ótima interpretação de Edgerton que dá a incerteza sobre o que norteia Connely e se o desenrolar dos acontecimentos fazem jus à sua conduta e às suas intenções. Dos demais coadjuvantes, duas observações de relevo. A primeira se refere a dois atores de talento imensurável que estão no elenco apenas para catapultar o filme à fama: não seria necessária a presença de Benedict Cumberbatch para interpretar o Senador Bill Bulger - no entanto, nas raras cenas em que aparece, o ator é, como sempre, excelente, em especial ao contracenar com Edgerton -; da mesma forma, é artisticamente inexplicável a presença de um Kevin Bacon para atuar tão pouco, ambos foram desperdiçados. Ademais, dois atores que ainda estão se firmando são convincentes em seus papéis respectivos: Peter Sarsgaard vive um bandido de pouca experiência e muita imprudência, sempre com seriedade; e Corey Stoll atua como um fascinante promotor obstinado no dever e de profissionalismo invejável. Para não cometer uma injustiça, Dakota Johnson também está no elenco e não é desprezível como em "Cinquenta tons de cinza": ao contrário, ela mostrou que, quiçá, um dia será uma atriz apenas fraca. Em síntese, os coadjuvantes cumprem muito bem seus papéis, em especial Joel Edgerton, que vai muito além dos demais.

Novamente para evitar uma injustiça, merece ser mencionada a montagem, que é o único aspecto técnico em que há alguma ousadia em "Aliança do crime". Isoladamente considerada, a montagem é razoável e vai de encontro com a obviedade dos demais elementos, em especial na pontuação, que se reduz a fade in e fade out, sem nenhum efeito diferenciado, o que é um claro erro diante de um filme que reproduz a passagem de tantos anos. São muitas as elipses, e um plano geral com o ano escrito para situar o espectador é demasiadamente básico. Provavelmente para não causar desconforto decorrente de tantas elipses, a montagem insere diversas cenas em que os mafiosos subordinados a Bulger testemunham de modo a entregar o chefe ("delação premiada"), através de flashforwards irritantes e descartáveis. Explicando melhor: o filme tem uma clara linha do tempo, isto é, há uma diacronia evidente, que é cortada por cenas em flashforward com diversos narradores diferentes para atenuar as incessantes elipses, inevitáveis numa representação de tantos anos. Até mesmo a primeira cena é um surpreendente flashforward, levando a presumir que aquele seria o narrador, quando, na verdade, são vários narradores em cenas pontuais, gradual e inexplicavelmente abandonadas - talvez tenham percebido o equívoco. Porém, essa opção da montagem (e da direção, é claro) foi um erro manifesto, pois não traz vantagem alguma, tira o foco do espectador, concede uma visão subjetiva meramente parcial (pois se reduz a apenas alguns minutos, afinal, o narrador se altera) e, o que é pior, infla o filme com cenas descartáveis e desnecessárias, com "cortes" nada sutis que chegam a incomodar. Se essas cenas fossem retiradas, não fariam falta alguma, apenas cansariam menos o espectador. Aqui sim foi assumido um pequeno risco, que resultou em um grande erro.

No geral, "Aliança do crime" é um projeto medroso porque não tenta fazer nada muito diferente do que já foi feito, exceto na montagem/direção, no erro acima mencionado. O produto final não é ruim, serve como um bom entretenimento, mas, se o objetivo era (e aparentemente era mesmo) entrar para a história do cinema e receber diversas premiações (o que ainda é possível, mas improvável e, caso se concretize, não merecidas), falhou no intento. Há algum lucro imaterial para o elenco (notadamente Johnny Depp e Joel Edgerton), mas não um legado cinematográfico para os cinéfilos. O medo não permitiu.

terça-feira, 10 de novembro de 2015

007 contra Spectre -- Copo meio vazio

O copo pode ser encarado como meio cheio ou meio vazio, a depender do observador. Retomar um molde tradicional é uma justa homenagem a um sucesso merecido. Mas não inovar e reiterar clichês pouco ou nada acrescenta ao cinema, resultando em uma obra ordinária. A dúvida que fica sobre "007 contra Spectre" é se o copo está meio cheio ou meio vazio.

O filme faz uma clara opção cronológica ao continuar de onde "Skyfall" parou, fazendo um link entre vários precedentes na história de Bond, desde "Cassino Royale" (ou mesmo antes). Isso mostra que o roteiro não foi feito de improviso, ao revés, trata-se de um roteiro bastante premeditado, que obtém êxito ao conectar toda a saga sem cometer equívocos ou soar incoerente - de tão insignificante, merecem ignorância as cenas em que há tentativa de alívio cômico. Isso merece atenção porque não é fácil ligar tantos precedentes como se o universo fosse um só. Em "Spectre", tudo que aconteceu antes passa a fazer sentido diante de um todo, nada ocorreu por acaso, levando Bond a enfrentar essa organização criminosa. Não que isso signifique brilhantismo, mas aponta inegável competência ao pensar o todo e dividí-lo em partes para criar uma saga harmônica. Com inteligência, quem dá o start é a M de Judi Dench, que tem relevância, mesmo morta. Ademais, ao retomar episódios pretéritos, o roteiro elabora também uma homenagem ao histórico de Bond e de suas aventuras, tanto no que se refere à sua vida pessoal - cada vez mais explorada, ao contrário do que antes acontecia - quanto (principalmente) ao seu trabalho e os desafios que enfrentou. Para um fã da franquia 007, é aprazível vislumbrar que a ficção da tela é uma história contínua, sem rupturas bruscas, apesar do passar de tantos anos. No entanto, o grande pecado de "Spectre" foi justamente homenagear o pretérito em detrimento de uma possível e salutar inovação, como "Skyfall" consegue fazer de forma solaçosa. Em outras palavras, no novo filme, todos os clichês e a carga enorme de previsibilidade são retomados com ênfase, não havendo preocupação alguma em renovação. O brilhantismo do anterior foi justamente trazer novos elementos - por exemplo, ao eliminar o estereótipo de Bond Girl (e sugerir a M de Judi Dench para o papel), ao tornar a luta do protagonista mais pessoal do que de costume e ao sugerir uma falência institucional do MI6 (retomada agora, mas de forma escancaradamente frágil) -, vontade que o novo filme não teve. Se antes havia o elemento surpresa e a tensão em razão da surpresa, agora, tudo está dentro do script mecânico visto por gerações, o que resulta, reitera-se, numa obra ordinária, ou seja, comum.

Nem mesmo a ótima direção de Sam Mendes consegue salvar "Spectre" de seu roteiro tedioso. O diretor foi inteligente ao montar uma ótima cena inicial, comparável à também ótima de "Skyfall" (também dirigido por Mendes): a do anterior teve mais adrenalina, a do atual, mais rigor técnico. Este rigor técnico atinge seu auge no plano-sequência em que 007 sai de um quarto em direção a um ponto estratégico em que pode atuar como atirador, de modo que a câmera varia de posições sem corte algum (daí o plano-sequência): de frente para Bond, por cima do espião e nas suas costas (para o espectador enfim visualizar seu objetivo na cena). Não que seja o maior plano-sequência da história do cinema (título que talvez fique, por exemplo, com uma cena de "O iluminado"), mas foi a novidade que Mendes pode trazer ante o pobre roteiro. E a ótima cena inicial não se reduz ao plano-sequência, pois há um antes e um depois: antes, ao criar um ambiente de curiosidade, beleza e tensão, pois Bond está nas festividades do "Día de Muertos" na Cidade do México - curiosidade para saber qual seu objetivo (apesar da máscara, é óbvio quem aparece), beleza pela estética diferenciada, típica da festividade, e tensão porque certamente uma cena de ação ocorrerá -; e depois no confronto do protagonista com um vilão inicial, que já o introduz, mesmo que sem querer, ao vilão principal. A fotografia acertou nessa primeira cena (a tradicional cena anterior à animação com a música-tema), mas errou ao usar o rack focus (mudança no foco do que vemos na tela) sem critério algum. Em termos de design de produção, acertado foi apenas o figurino, que pode ser tradicional sem ser clichê, com direito ao quase esquecido smoking branco que Bond usava antigamente, belos vestidos da(s) Bond Girl(s) e mesmo elegantes óculos de sol.

Ainda sobre a tema inicial, diante de uma ação preliminar tão bem executada, difícil não criar boa expectativa, a qual resta frustrada em razão da uma continuação fraca de imagens (animação) e sons ("Writing's on the wall", de Sam Smith). A animação simplória (quase grosseira), aliada à insossa música-tema, geram uma sonolência que já faz a propaganda do tédio que segue por mais duas horas. Sam Smith canta bem, mas não chega aos pés da magnífica Adele - tanto o intérprete quanto (principalmente) a canção. E à animação segue a mesmice batida de um 007 que mata, pilota, bebe, flerta, apanha, investiga e viaja (não necessariamente nessa ordem). Para não dizer que os efeitos sonoros são ruins, a edição de som é preguiçosa, contudo, a mixagem de som é boa, em especial por mesclar a trilha com os sons inerentes às cenas de ação. Com uma edição melhor (em especial a trilha sonora), a mixagem teria sido ótima.

Bastante parecido com "Missão impossível: nação secreta" (espião que atua de forma extra-oficial, ajuda dos amigos em quem confia, tratativas administrativas do superior,, em 2015, Ethan Hunt superou James Bond com folga. A culpa não pode ser atribuída a Daniel Craig, que, embora não reúna todos os atributos de Pierce Brosnan, ao interpretar um Bond mais grosseiro e ébrio habitual, consegue convencer na atuação. Isto é, Craig convence, sendo auxiliado com competência pelo bom elenco de apoio. De todos os coadjuvantes, é evidente que Léa Seydoux representa o maior destaque. A francesa brilha não pela construção da personagem, que se torna inverossímil em razão da exagerada plasticidade, mas pelo talento magistral da atriz. A Seydoux não pode ser atribuído o triste fato de interpretar uma Bond Girl em moldes tradicionais (e não se pode dizer que ajudar concretamente 007 na empreitada é novidade, que o diga a Jinx de Halle Berry em "Um novo dia para morrer", por exemplo): enigmática, frágil (pero no mucho), inteligente e, é claro, belíssima. Não bastasse o perfil clássico de Madeleine Swann, a personagem poderia ter sido mais interessante se não fosse tão volúvel, sendo a ela conferida uma plasticidade decepcionante e, por via de consequência, previsível. Swaan dá a entender que é repleta de personalidade, mas cede ao espaçoso Bond com enorme facilidade - o que não significa irrelevância, ao revés, a personagem é fundamental na narrativa. Diversamente  de Andrew Scott, responsável por uma subtrama descartável, presente apenas para dar mais espaço a Ralph Fiennes, este ótimo, mais uma vez. C (Scott) existe apenas para ampliar a participação de M (Fiennes), mas podia ser retirado do filme, sem prejuízo. Os outros coadjuvantes reiterados (já vistos em "Skyfall"), Q e Moneypenny - respectivamente, Ben Wishaw e Naomie Harris - mais uma vez dão um charme artístico à narrativa: Q, de competência inigualável, tem opinião própria e conhece as limitações burocráticas inerentes ao MI6, o que não lhe impede de ser fiel a Bond; Moneypenny, mais passional, é preocupada com o destino do protagonista e, mesmo à distância, o auxilia. Em "Skyfall", ela apareceu mais; em "Spectre", foi ele quem teve destaque. Monica Belucci faz uma Bond Girl (ou Bond Madam) ainda mais clássica que Seydoux, e bastante discreta no longa, ainda que relevante no seu momento. Christoph Waltz tem vários fãs, em especial graças aos trabalhos em dupla com o diretor Quentin Tarantino. Contudo, o ator é capaz de fazer apenas um único papel, logo, é tecnicamente limitado. Waltz não é ruim, mas é mecânico, pois seus vilões (sempre vilões) são todos iguais, com alguns pequenos detalhes diferentes. Sempre um homem polido, sagaz, racional, calmo e inescrupuloso, com episódicos momentos de maior emoção. Sam Mendes acerta ao insistir no mistério quanto à personagem que Waltz interpreta, mas a obviedade do roteiro é mais forte. Quando a sombra permite que ele apareça, vemos o mesmo malvado de outros filmes, uma atuação que não é ruim, mas não surpreende em nada (e fica muito aquém do inesquecível Silva de Javier Bardem, que, inutilmente, tentaram desta vez reduzir). Compatível com o filme, que também não quer surpreender. Em síntese, o elenco, no geral, é afinado e de qualidade.

Enxergando a franquia 007 como um todo sem considerar "Skyfall", o copo estaria meio cheio - quiçá razoavelmente cheio. Entretanto, o vigésimo terceiro filme provou que é possível ir muito além das obviedades, dos clichês, da previsibilidade e do modelo mecânico da saga do espião britânico. "Skyfall" é superior porque provou que é possível inovar com James Bond, enfrentou caminhos até então pouco ou não traçados, é uma verdadeira obra-prima memorável (tautologia proposital com escopo de dar ênfase). "Spectre" é muito superior a, por exemplo, "Quantum of Solace" (um dos piores de todos os tempos), e é comparável à maioria (inclusive "Cassino Royale"), mas há um abismo em relação ao antecessor imediato. O copo está meio vazio porque há um exemplo concreto da possibilidade de transbordar esse mesmo copo. É possível ser soberbo com 007, sem desrespeitar o que já foi feito, mas entrando para a história ao ampliar os horizontes. "Spectre" não conseguiu.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Os 33 -- É a história real que salva a obra de arte

Hollywood tem adorado a categoria intitulada "filme-catástrofe". São vários do gênero surgindo, um após o outro, de "O impossível" e "Gravidade" ao recentíssimo "Perdido em Marte". O grande marco provavelmente é "Gravidade", pois detém os maiores predicados. Diversamente dos dois últimos e na mesma esteira do primeiro, "Os 33" baseia-se em fatos reais em solo terrestre (Chile, 2010). Nesse caso, terrestre mesmo, pois narra a saga de 33 mineradores que ficaram 69 dias presos a 700 metros de profundidade em razão de um desmoronamento ocorrido em seu local de trabalho. Como se vê, a história é interessante.

A história é interessante, mas isso, per si, não garante nada. Tratar de uma história real, na prática cinematográfica, é uma faca de dois gumes: de um lado, garante a verossimilhança da narrativa, o que indica uma credibilidade apriorística; de outro, exige fidelidade em relação aos fatos e condução capaz de dar a dramaticidade necessária. A fidelidade deixou a desejar logo de início, em razão de não colocar nenhum chileno para atuar em um dos principais papéis - só os mineradores são 33, nenhum deles, porém, é chileno, isso sem contar as demais personagens de relevo, que também não o são. Não bastasse isso, a língua oficial do filme é o inglês, o que indica o mote comercial da obra, mas também retira a fidelidade que seria exigida. Esse foi o primeiro equívoco da diretora Patricia Riggen, mas não o mais grave. O erro mais severo da direção foi implantar cenas reais de documentários sobre o caso, que ficou conhecido mundialmente e foi acompanhado por emissoras de todos os cantos do globo. Ora, a ideia claramente foi retratar um caso real a partir de uma dramaticidade artística, não relatar como fato jornalístico. Assim, os jornalistas reais que aparecem fazendo matérias reais são desnecessárias, pois o filme não é real, ainda que o seja a história. Pior, esse erro causou uma gigantesca incoerência, vez que incompatível com a participação da principal coadjuvante feminina e, principalmente, com uma cena fantasiosa (não detalhada para não gerar spoiler). Esta cena dividiu opiniões, quando, na verdade, é uma das melhores cenas do filme, pois concede a dramaticidade compatível com o filme. Em se tratando de um longa-metragem, e não um documentário, há liberdade artística para flutuar entre o concreto e o fantasioso, ainda que a base seja real. A direção cometeu alguns equívocos, mas a montagem os compensou, pois segue a ordem lógica, sem brilhantismo, mas com competência. Isso porque, de forma didática, indica os dias em que as cenas se passam, sendo fácil visualizar a ordem cronológica e, principalmente, a crescente aflição. Na verdade, para não cometer injustiça, a diretora teve também dois acertos. O primeiro acerto - e principal - se refere ao fato que o início monótono e entediante vai sumindo, de forma que o filme cresce de tensão e expectativa a cada minuto, com o ápice no final. Como se fosse um vinho - se é que isso é mesmo verdade -, o tempo só faz bem a "Os 33", pois a obra melhora com o desenrolar da narrativa. Isso significa que Riggen logrou êxito na empreitada, pois é essa a lógica de um bom drama. Ignorando o início ruim, a atmosfera diegética de desconforto e esperança é bem retratada. Uma das maiores virtudes do produto. Além disso, outro acerto - menor, é verdade - foi a escancarada dualidade dos planos iniciais em relação aos demais: os minutos iniciais apresentam planos gerais e, no máximo, abertos, para depois focar em planos mais fechados, ajudando, justamente, a criar e fazer crescer a atmosfera desagradável do soterramento. Riggen se esforça para sabotar o próprio trabalho, como, por exemplo, ao colocar um carro modelo 2013 (Hilux) numa cena que se passa em 2010. Todavia, o resultado não pode ser visto como ruim. A fotografia também coopera nesse sentido, pois permite que o telespectador abrace a situação dos chilenos.

A atuação também foi um acerto, pois, no geral, não há ninguém que destoe da boa qualidade geral. Para nós brasileiros, é mais um filme hollywoodiano com Rodrigo Santoro, que, desta vez, interpreta bem o Ministro das Minas do governo chileno. Foi uma das personagens melhor abordada em relação aos que estão fora da mina, porque destaca, de um lado, sua motivação política - inclusive com a pressão do Presidente -, e, de outro, sua alma humanitária - ele está realmente preocupado com as vítimas do acidente. A dicotomia "político interesseiro - pessoa preocupada" é encarnada no Ministro Laurence vivido por Santoro, e ele, repetindo a montagem, faz seu trabalho sem brilhantismo, mas com competência. Há um notório crescimento do ator em Hollywood, que assim continue, pois enfim mostrou que pode (melhor dizendo, talvez possa, para evitar precipitação) ser capaz de viver um coadjuvante de algum destaque. Há ainda outra dicotomia de destaque, entre o Ministro Laurence e Andre Sougarret - interpretado por Gabriel Byrne, é o encarregado técnico por salvar os mineradores -, pois, enquanto este é racional e ligeiramente pessimista, Laurence é passional e bastante otimista. Só não tão otimista quanto Mario Sepúlveda, líder dos 33, em que Antonio Banderas claramente se destaca na atuação. Sepúlveda é uma personagem que enriquece o filme não por ser o líder do grupo (e, em razão disso, unir seus integrantes e comandar as tarefas "burocráticas", como o racionamento da comida), o senso de liderança e o respeito dos demais são elementos relevantes, mas o que é reluzente é a voracidade da personagem. Tudo em Sepúlveda é em tamanho macro, em especial suas emoções, sem recair em tom piegas. Sua perfeição é duvidosa, mas o bom-humor lhe concede um carisma que torna este fato insignificante - sem contar, evidentemente, o talento de Banderas, que, desta vez, fica inegável. Se ele não é lá muito premiado, é por abraçar projetos fracos, não por falta de talento. Poucos dos outros 32 recebem destaque, não por falta de generosidade do protagonista, mas porque a entrega do ator inafastavelmente ofuscou os que estavam perto (até porque, com um número tão grande, impossível haver espaço para todos). Também Juliette Binoche tem bons momentos - exceto uma terrível cena em que ela canta em espanhol (apesar de falar inglês) -, pois sua María, irmã de um dos mineradores, é convincente como parente responsável. É a irmã mais velha que se sente no dever de cuidar do caçula, ainda que ele não queira, e Binoche soube andar na corda bamba para não recair no desespero irracional - exceto ao dar um tapa em Laurence.

Como o filme cresce, ele consegue minimamente comover o espectador. Apesar do final feliz, fato público e notório (portanto, não é spoiler), o clima de tensão está presente e é bem retratado. Não chega a emocionar a ponto de levar o público às lágrimas - longe disso -, mas mantém alguma curiosidade, principalmente sobre a maneira como tudo termina. Porém, há dois erros que comprometem demais o filme. O primeiro erro reside no som, especificamente a trilha sonora, que é deplorável: repetitiva, cansativa, algumas vezes incoerente (música alegre em momentos de tensão) e simplória (as melhores músicas se repetem tanto que se tornam odiosas). Isso sem contar a terrível canção que sujeitaram Juliette Binoche a cantar. O outro erro, crucial, foi o roteiro, que é pouco criativo, mecânico, raso e desprezivelmente ideológico sobre religião. De positivo no roteiro merece destaque a comédia inserida em cenas pontuais (como a esposa e a amante de um dos mineradores e o próprio jeito de Mario Sepúlveda), e apenas isso. É pouco criativo porque não sai do previsível no gênero, tornando-se simplório e mecânico. Tirando a cena fantasiosa já mencionada, tudo fica na cartilha básica dos "filmes-tragédia", sem nenhuma cena memorável. Pior, o roteiro é raso, vez que poderia ter explorado muito mais o aspecto psicológico dos mineradores - são poucas as cenas de conflito, mesmo quando uma das personagens anuncia que isso vai acontecer, porque é o lógico (exceto se considerarmos o astronauta de "Perdido em Marte", de humor inexplicavelmente e, portanto, inverossímil, inabalável), e o medo de tratar de política impediu um aprofundamento da temática. A história podia mais, merecia mais. Por fim, há uma tentativa subliminar de doutrinação religiosa: ao invés de valorizar os envolvidos - tanto quem estava fora e obrou para salvar o grupo quanto quem estava dentro e teve de se manter esperançoso em relação à salvação, apesar das incontáveis adversidades -, houve uma manifesta preferência por destacar a fé e a crença deísta como muleta e quiçá justificativa para o desfecho. Há muitas referências à religião cristã e ao deísmo, de forma injustificadamente repetitiva, o que, por óbvio, leva à conclusão de um intento ideológico-doutrinário - evidentemente desnecessário. São erros que apenas não fazem de "Os 33" um filme ruim porque a história é boa. E é a história real que salva a obra de arte diante de tantas tentativas de sabotar o produto final.

terça-feira, 3 de novembro de 2015

O último caçador de bruxas -- Um filme dispensável

Não é nada fácil criar um universo fantástico convincente no cinema. Não raras vezes, os estúdios preferem apostar numa adaptação de livro que num roteiro original, tamanho o risco presente nesse caso. No entanto, na maioria das vezes - e nas duas hipóteses -, o resultado é pífio e descartável. "O último caçador de bruxas" não é exceção.

Em termos de elenco, o principal nome é Vin Diesel, o que, evidentemente, é o primeiro - ainda que inafastável, pois ele é também o produtor - equívoco grave. É fato notório que Diesel é um péssimo ator, conseguindo reproduzir apenas um (e um único) papel, nos moldes do seu batido Dominic Toretto. Kaulder, protagonista de "O último caçador de bruxas", nada mais é que um Toretto mais experiente - ou nem tanto, pois sequer a sabedoria de alguém de mais de 800 anos conseguiu ser reproduzida. Se Diesel, em razão do seu porte, finge ser um ator nas cenas de ação, é nas de drama que ele comprova sua incapacidade. Não se pode olvidar que o roteiro não dá brecha para um aprofundamento da personalidade de Kaulder, mas as poucas cenas um pouco mais complexas (em especial no que se refere à perda da família e os malefícios do não envelhecimento) escancaram que foi colocado um "canastra" para carregar o filme nas costas. E caberia a ele carregar o filme nas costas porque o elenco de apoio tem espaço minúsculo: Michael Cane sujou seu currículo ao abraçar o projeto, para sua sorte, em poucas cenas, o que evidentemente não lhe exigiu dedicação (fato visível); Elijah Wood faz uma personagem nada convincente (culpa do roteiro); Rose Leslie é a única que se salva como Chloe, a bruxa "boazinha". O clichê da paixão entre o grosseiro protagonista e a quase anti-heroína Chloe não foi adotado, o que não é um fator positivo, pois a união (talvez fosse melhor falar em aliança) dos dois soa artificial demais.  De uma gananciosa e ególatra, Chloe se transforma em bruxa altruísta e corajosa. Bom se fosse assim com todas as pessoas, não? Leslie mostra talento, tem asas para voar, mas a gaiola em que se encontra é a de um roteiro fajuto.

Com franqueza, não é exagero afirmar que, em "O último caçador de bruxas", não se salva nenhum elemento cinematográfico, pois não há nada de eficazmente positivo a ser destacado. Tentar pescar algo mais interessante seria perda de tempo, pois a obra serve como pretexto para tentar criar uma nova franquia para enriquecer ainda mais Vin Diesel, mediante uma narrativa absurdamente rasa e efeitos desnecessários. Trata-se, pois, de um filme dispensável, vez que tudo é ruim, da atuação ao roteiro, da direção (caótica, a considerar o resultado) ao design de produção (originalidade zero), dos efeitos visuais (locais sombrios e muito computador) aos sonoros (exageradamente básicos). Como nada é tão ruim que não possa piorar, há quem vislumbre a concretização do objetivo inicial, qual seja, o de criar uma nova franquia. Será um atentado à sétima arte.

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Ruth & Alex -- Mais que um romance light e sem ambição

Existem alguns nomes no cinema que são considerados medalhões, artistas que, quando citados, são, em tese, garantia de qualidade. Na prática, isso nem sempre ocorre, pois são cada vez mais raros os atores seletivos. Alguns deles, inclusive, abraçam projetos inofensivos, que ficam em um limbo do "nem bom, nem ruim, muito pelo contrário". Provavelmente é neste limbo que reside "Ruth & Alex" (no original, "5 flights up", nome alterado também em outros países), drama levemente cômico que conta a história de um casal da terceira idade que decide, após muitos anos, mudar de residência. Visto por alguns como "típico filme no estilo 'Sessão da tarde", talvez não seja bem assim. A rigor, vale mais que muitos blockbusters que muito arrecadam sem muito representar cinematograficamente. Encarado com seriedade e atenção, "Ruth & Alex" pode ser mais que um romance light e sem ambição.

O grande trunfo do filme não pode deixar de ser o elenco: o carisma inigualável de Morgan Freeman e Diane Keaton praticamente ofuscam todos os outros elementos técnicos, como se o ingresso se justificasse para ver os dois medalhões. Não estão na sua melhor forma, todavia, ainda assim, dão um banho de interpretação em relação à maioria que se expõe, mesmo em grandes projetos. Isso sem contar que o casal é um pouco inusitado.

Justamente por se tratar de um "casal inusitado" (não me recordo de nenhum filme com essa dupla, isso sem contar que Keaton, de 69 anos, costuma fazer papéis um pouco mais "jovens", ao contrário de Freeman, que tem hoje 78 e não é tão afim com os romances) é que o roteiro tem como carta na manga - o que não é central, mas se torna um diferencial - a sutil menção ao preconceito quanto a casais vistos pela sociedade como diferentes. A sutil crítica social cai bem em uma narrativa teoricamente despretenciosa, ocorrendo em vários momentos em relação ao casal principal e em outro específico com outro casal. Ruth e Alex expõem que, quando se casaram, há 40 anos atrás, o casamento entre uma branca e um afrodescendente era legalmente proibido em 30 Estados nos EUA. Hoje, eles encaram com normalidade e o público jovem talvez se assuste com tamanha imbecilidade legislativa. A mera representação deste preconceito e a singela homenagem aos corajosos amantes que desafiaram a discriminação da época já merece aplausos. Embora nos dias atuais uma lei como esta seja vista de forma risível, de tão idiota, lamentavelmente, não estamos muito distantes dessa realidade, afinal, há quem queira aplicar a mesma lógica (preconceituosa) aos casais homossexuais (no futuro, este preconceito também será risível). Esta é a outra crítica social presente em "Ruth & Alex", que não vou aprofundar para não gerar um little spoiler. Enfim, essa excrecência social que se chama preconceito não é nuclear no filme, mas é encarada da melhor forma possível, qual seja, com desprezo. Ruth, ainda jovem, chega a dizer para a sua mãe que, se a família não aceitar seu relacionamento com o amado Alex simplesmente por ele ser afrodescendente, ela se afastaria da família para ser feliz com ele. É assim que a sociedade evolui.

O que é realmente nuclear é a ideia de uma nova vida na terceira idade. Pode até parecer um tema simples, mas o tratamento dado aos idosos, por exemplo, é tão espinhoso quanto os preconceitos antes mencionados - talvez, apenas, menos nocivo, pois os idosos, de forma geral, ao menos são respeitados. Ruth e Alex são respeitados pelas outras pessoas, mas são inseguros em relação ao futuro que querem enfrentar. Ruth é otimista, mas, ao mesmo tempo, bastante medrosa, cabendo ao racional (porém levemente pessimista) Alex conceder-lhe a solidez de que necessita. As duas personagens são dotadas de alguma profundidade, que é transpassada apenas em momentos pontuais. Os flashbacks feitos com o casal auxiliam bastante para que o espectador os compreenda melhor, sendo possível perceber, inclusive, que ela era mais decidida quando jovem, e ele, mais ingênuo. Com vaivéns temporais, fica evidente que o casal tem uma bela história, repleta de dificuldades, prevalecendo o seu amor. Hoje, experientes, decidem tomar um novo rumo, respirar novos ares e, com isso, vender seu imóvel. Contam com Cynthia Nixon  intepretando uma corretora de imóveis que, apesar de parente de Ruth (sobrinha), não é lá muito gentil nem tampouco atenciosa. Novamente com leveza, o mercado imobiliário é visto com viés crítico: muitas pessoas interessadas em ver um imóvel, mas sem interesse real na aquisição; corretores que encaram seus clientes como produtos; a dificuldade do desprendimento do lar etc. Como plano de fundo, um possível terrorista nos arredores do imóvel, inserido, provavelmente, apenas para dificultar a venda (e alongar o filme, é claro). De todo modo, o mote do filme é o medo em relação ao novo, natural do ser humano - e, na terceira idade, não seria diferente -, que, apesar disso, se enfrentado, pode ter resultados saudáveis. Há inclusive uma metáfora para isso, concretizada na cadela do casal, que fica doente, surgindo a dúvida quanto ao seu destino (mostrando que é possível injetar ainda mais carisma em um filme com Keaton e Freeman).

"Ruth & Alex" pode até ser um romance comum no que tange à direção (Richard Loncraine) e efeitos (visuais e sonoros). Nenhum destaque espalhafatoso, nenhum ponto fora da curva do comum. Não é essa a pretensão. Em verdade, a obra não aspira grandes reflexões, afinal, tirando o tema principal, tudo é moldado en passant. Há suavidade até na reflexão feita por Alex, segundo a qual seu velho apartamento vale (financeiramente) mais que os quadros que pintou (ele é pintor profissional), a obra da sua vida. É isso mesmo, bens materiais impessoais têm valor maior que outros de conteúdo artístico e eventualmente privado (ou ao menos com significado pessoal). Há muito mais um gentil convite à reflexão que um amargor às fragilidades humanas. Se comparado com obras vazias e sem significado algum, "5 flights up" soa como profundo. É leve, sem dúvida. Mas muito mais denso que outros blockbusters sucessos de bilheteria.