terça-feira, 10 de novembro de 2015

007 contra Spectre -- Copo meio vazio

O copo pode ser encarado como meio cheio ou meio vazio, a depender do observador. Retomar um molde tradicional é uma justa homenagem a um sucesso merecido. Mas não inovar e reiterar clichês pouco ou nada acrescenta ao cinema, resultando em uma obra ordinária. A dúvida que fica sobre "007 contra Spectre" é se o copo está meio cheio ou meio vazio.

O filme faz uma clara opção cronológica ao continuar de onde "Skyfall" parou, fazendo um link entre vários precedentes na história de Bond, desde "Cassino Royale" (ou mesmo antes). Isso mostra que o roteiro não foi feito de improviso, ao revés, trata-se de um roteiro bastante premeditado, que obtém êxito ao conectar toda a saga sem cometer equívocos ou soar incoerente - de tão insignificante, merecem ignorância as cenas em que há tentativa de alívio cômico. Isso merece atenção porque não é fácil ligar tantos precedentes como se o universo fosse um só. Em "Spectre", tudo que aconteceu antes passa a fazer sentido diante de um todo, nada ocorreu por acaso, levando Bond a enfrentar essa organização criminosa. Não que isso signifique brilhantismo, mas aponta inegável competência ao pensar o todo e dividí-lo em partes para criar uma saga harmônica. Com inteligência, quem dá o start é a M de Judi Dench, que tem relevância, mesmo morta. Ademais, ao retomar episódios pretéritos, o roteiro elabora também uma homenagem ao histórico de Bond e de suas aventuras, tanto no que se refere à sua vida pessoal - cada vez mais explorada, ao contrário do que antes acontecia - quanto (principalmente) ao seu trabalho e os desafios que enfrentou. Para um fã da franquia 007, é aprazível vislumbrar que a ficção da tela é uma história contínua, sem rupturas bruscas, apesar do passar de tantos anos. No entanto, o grande pecado de "Spectre" foi justamente homenagear o pretérito em detrimento de uma possível e salutar inovação, como "Skyfall" consegue fazer de forma solaçosa. Em outras palavras, no novo filme, todos os clichês e a carga enorme de previsibilidade são retomados com ênfase, não havendo preocupação alguma em renovação. O brilhantismo do anterior foi justamente trazer novos elementos - por exemplo, ao eliminar o estereótipo de Bond Girl (e sugerir a M de Judi Dench para o papel), ao tornar a luta do protagonista mais pessoal do que de costume e ao sugerir uma falência institucional do MI6 (retomada agora, mas de forma escancaradamente frágil) -, vontade que o novo filme não teve. Se antes havia o elemento surpresa e a tensão em razão da surpresa, agora, tudo está dentro do script mecânico visto por gerações, o que resulta, reitera-se, numa obra ordinária, ou seja, comum.

Nem mesmo a ótima direção de Sam Mendes consegue salvar "Spectre" de seu roteiro tedioso. O diretor foi inteligente ao montar uma ótima cena inicial, comparável à também ótima de "Skyfall" (também dirigido por Mendes): a do anterior teve mais adrenalina, a do atual, mais rigor técnico. Este rigor técnico atinge seu auge no plano-sequência em que 007 sai de um quarto em direção a um ponto estratégico em que pode atuar como atirador, de modo que a câmera varia de posições sem corte algum (daí o plano-sequência): de frente para Bond, por cima do espião e nas suas costas (para o espectador enfim visualizar seu objetivo na cena). Não que seja o maior plano-sequência da história do cinema (título que talvez fique, por exemplo, com uma cena de "O iluminado"), mas foi a novidade que Mendes pode trazer ante o pobre roteiro. E a ótima cena inicial não se reduz ao plano-sequência, pois há um antes e um depois: antes, ao criar um ambiente de curiosidade, beleza e tensão, pois Bond está nas festividades do "Día de Muertos" na Cidade do México - curiosidade para saber qual seu objetivo (apesar da máscara, é óbvio quem aparece), beleza pela estética diferenciada, típica da festividade, e tensão porque certamente uma cena de ação ocorrerá -; e depois no confronto do protagonista com um vilão inicial, que já o introduz, mesmo que sem querer, ao vilão principal. A fotografia acertou nessa primeira cena (a tradicional cena anterior à animação com a música-tema), mas errou ao usar o rack focus (mudança no foco do que vemos na tela) sem critério algum. Em termos de design de produção, acertado foi apenas o figurino, que pode ser tradicional sem ser clichê, com direito ao quase esquecido smoking branco que Bond usava antigamente, belos vestidos da(s) Bond Girl(s) e mesmo elegantes óculos de sol.

Ainda sobre a tema inicial, diante de uma ação preliminar tão bem executada, difícil não criar boa expectativa, a qual resta frustrada em razão da uma continuação fraca de imagens (animação) e sons ("Writing's on the wall", de Sam Smith). A animação simplória (quase grosseira), aliada à insossa música-tema, geram uma sonolência que já faz a propaganda do tédio que segue por mais duas horas. Sam Smith canta bem, mas não chega aos pés da magnífica Adele - tanto o intérprete quanto (principalmente) a canção. E à animação segue a mesmice batida de um 007 que mata, pilota, bebe, flerta, apanha, investiga e viaja (não necessariamente nessa ordem). Para não dizer que os efeitos sonoros são ruins, a edição de som é preguiçosa, contudo, a mixagem de som é boa, em especial por mesclar a trilha com os sons inerentes às cenas de ação. Com uma edição melhor (em especial a trilha sonora), a mixagem teria sido ótima.

Bastante parecido com "Missão impossível: nação secreta" (espião que atua de forma extra-oficial, ajuda dos amigos em quem confia, tratativas administrativas do superior,, em 2015, Ethan Hunt superou James Bond com folga. A culpa não pode ser atribuída a Daniel Craig, que, embora não reúna todos os atributos de Pierce Brosnan, ao interpretar um Bond mais grosseiro e ébrio habitual, consegue convencer na atuação. Isto é, Craig convence, sendo auxiliado com competência pelo bom elenco de apoio. De todos os coadjuvantes, é evidente que Léa Seydoux representa o maior destaque. A francesa brilha não pela construção da personagem, que se torna inverossímil em razão da exagerada plasticidade, mas pelo talento magistral da atriz. A Seydoux não pode ser atribuído o triste fato de interpretar uma Bond Girl em moldes tradicionais (e não se pode dizer que ajudar concretamente 007 na empreitada é novidade, que o diga a Jinx de Halle Berry em "Um novo dia para morrer", por exemplo): enigmática, frágil (pero no mucho), inteligente e, é claro, belíssima. Não bastasse o perfil clássico de Madeleine Swann, a personagem poderia ter sido mais interessante se não fosse tão volúvel, sendo a ela conferida uma plasticidade decepcionante e, por via de consequência, previsível. Swaan dá a entender que é repleta de personalidade, mas cede ao espaçoso Bond com enorme facilidade - o que não significa irrelevância, ao revés, a personagem é fundamental na narrativa. Diversamente  de Andrew Scott, responsável por uma subtrama descartável, presente apenas para dar mais espaço a Ralph Fiennes, este ótimo, mais uma vez. C (Scott) existe apenas para ampliar a participação de M (Fiennes), mas podia ser retirado do filme, sem prejuízo. Os outros coadjuvantes reiterados (já vistos em "Skyfall"), Q e Moneypenny - respectivamente, Ben Wishaw e Naomie Harris - mais uma vez dão um charme artístico à narrativa: Q, de competência inigualável, tem opinião própria e conhece as limitações burocráticas inerentes ao MI6, o que não lhe impede de ser fiel a Bond; Moneypenny, mais passional, é preocupada com o destino do protagonista e, mesmo à distância, o auxilia. Em "Skyfall", ela apareceu mais; em "Spectre", foi ele quem teve destaque. Monica Belucci faz uma Bond Girl (ou Bond Madam) ainda mais clássica que Seydoux, e bastante discreta no longa, ainda que relevante no seu momento. Christoph Waltz tem vários fãs, em especial graças aos trabalhos em dupla com o diretor Quentin Tarantino. Contudo, o ator é capaz de fazer apenas um único papel, logo, é tecnicamente limitado. Waltz não é ruim, mas é mecânico, pois seus vilões (sempre vilões) são todos iguais, com alguns pequenos detalhes diferentes. Sempre um homem polido, sagaz, racional, calmo e inescrupuloso, com episódicos momentos de maior emoção. Sam Mendes acerta ao insistir no mistério quanto à personagem que Waltz interpreta, mas a obviedade do roteiro é mais forte. Quando a sombra permite que ele apareça, vemos o mesmo malvado de outros filmes, uma atuação que não é ruim, mas não surpreende em nada (e fica muito aquém do inesquecível Silva de Javier Bardem, que, inutilmente, tentaram desta vez reduzir). Compatível com o filme, que também não quer surpreender. Em síntese, o elenco, no geral, é afinado e de qualidade.

Enxergando a franquia 007 como um todo sem considerar "Skyfall", o copo estaria meio cheio - quiçá razoavelmente cheio. Entretanto, o vigésimo terceiro filme provou que é possível ir muito além das obviedades, dos clichês, da previsibilidade e do modelo mecânico da saga do espião britânico. "Skyfall" é superior porque provou que é possível inovar com James Bond, enfrentou caminhos até então pouco ou não traçados, é uma verdadeira obra-prima memorável (tautologia proposital com escopo de dar ênfase). "Spectre" é muito superior a, por exemplo, "Quantum of Solace" (um dos piores de todos os tempos), e é comparável à maioria (inclusive "Cassino Royale"), mas há um abismo em relação ao antecessor imediato. O copo está meio vazio porque há um exemplo concreto da possibilidade de transbordar esse mesmo copo. É possível ser soberbo com 007, sem desrespeitar o que já foi feito, mas entrando para a história ao ampliar os horizontes. "Spectre" não conseguiu.

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