sábado, 14 de novembro de 2015

Aliança do crime -- Filme medroso

Existem filmes arrojados, usando como norte o famoso ditado popular "quem não arrisca, não petisca". Evidentemente, arriscar significa dar maior margem para o erro, ou seja, é uma coragem de resultado duvidoso. Isso porque o produto pode ir do oito ao oitenta, do genial ao fracasso. Não é por razão diferente que a imensa maioria prefere transitar dentro de uma zona de conforto, sem grandes avanços e ousadia zero. São filmes medrosos, como "Aliança do crime", filme bastante aguardado mas que deixa a desejar.

Não se pode negar que fazer um filme sobre máfia não é fácil, ainda mais em se tratando de um subgênero que tem representantes clássicos, como "O poderoso chefão" e "Os bons companheiros", cujo brilhantismo causa influência até em outros gêneros (ainda hoje). Mais complexo ainda quando se trata de história real e razoavelmente conhecida pelo público, o que, em tese, obsta inovações relevantes.

Mas isso tudo não é desculpa, pois falta a "Aliança do crime" a coragem necessária no cinema. Vale dizer, o filme é medroso simplesmente porque não quer arriscar e faz o "feijão-com-arroz" para ter como resultado uma obra de qualidade, mas distante do memorável. Indo além: nem mesmo o pesado marketing e o elenco estelar conseguiram dar um quê a mais - na verdade, o marketing acaba sendo prejudicial, pois gera expectativa gigantesca em torno de um objeto ordinário.

O medo começa na direção: Scott Cooper, diretor que está se habituando com grandes nomes (Christian Bale, Jeff Bridges) e histórias sérias, influenciado pelos clássicos e com receio de arriscar demais, mostra-se discreto no seu trabalho, o que acaba sendo fundamental e refletindo nos demais setores (tamanha a importância da direção em um longa-metragem). Poucos planos gerais, alguns planos abertos, movimentos óbvios de zoom in e zoom out e evasão a movimentos de câmera um pouco mais complexos (como panorâmica e travelling). Os ângulos de filmagem são básicos, sem ousadia alguma, como faz qualquer principiante (como Cooper). Dada a sua importância, a análise sonora merece algumas palavras, na menor quantidade possível em razão da limitação vista (ouvida) em "Aliança do crime": edição de som tediosa e vulgar, com uma obviedade absurda, uma discrição lamentável e escolhas minimalistas; e mixagem de som limitada justamente por causa da edição fajuta. Por outro lado, o design de produção já está em outro patamar, pois sai do óbvio ao (i) dar aos mafiosos um figurino sombrio sem soar bizarro e (ii) reproduzir a Boston das décadas de 70 e 80 de forma verossímil e com tons discretos - mérito para a fotografia, com e sem luz nos momentos corretos. Como a história não permitia um design fantasioso, a opção por um realismo historicamente condicionado foi um evidente acerto, pois permite ao espectador adentrar na diegese com facilidade. Torna-se, pois, um visual pitoresco.

O grande destaque, em especial em relação ao público em geral, refere-se ao elenco, afinal, "Aliança do crime" conta com grandes nomes. Protagonista, o grande mafioso James (Jimmy) "Whitey" Bulger é interpretado por Johnny Depp, que finalmente volta a fazer um filme sério e consegue se desvencilhar de Jack Sparrow. Depois de fracassos recentes retumbantes como "Mortdecai: a arte da trapaça","Transcendence: a revolução" e "O cavaleiro solitário", Depp enfim participa de um filme que, no mínimo, lhe concede respeito artístico - afinal, seu renome já não mais permite ao ator abraçar projetos quaisquer como esses pretéritos. E isso não é resultado apenas de se tratar de uma história real, uma personagem real, mas sim reflexo da sábia decisão de acolher um projeto virtualmente aprazível, além de uma dedicação para mudar e fazer algo realmente diferente. Depois de Jack Sparrow, Depp dificilmente conseguia atuar sem os trejeitos e maneirismos desta personagem, prejudicando, por exemplo, Willy Wonka. Inegavelmente, a pesada maquiagem coopera para o esquecimento do que o ator viveu antes, mas não é diretamente responsável (ou ao menos não o único elemento responsável). Isso porque Depp faz uma interpretação simplista e contida (raro, em se tratando de quem ele é), mas sem recair nas expressões de paisagem como em "A janela secreta" e em "O turista". São as poucas nuances que o ator dá a Bulger que permite o trânsito entre um pai dedicado (à sua maneira, é claro), um marido carinhoso e um bandido crescentemente inescrupuloso. Mais que isso, é a interpretação de Depp que permite ao espectador ficar sempre de sobreaviso, pois é veloz a alteração entre a calmaria e a raiva em Bulger. Um dos grandes trunfos de "Aliança do crime", aliás, é esse: Jimmy pode soar sempre pacato e pacífico, mas sua (em regra) racionalidade é um trampolim para a ira instantânea, representada por gestos e atitudes, raramente na face. Se não houve um desenvolvimento maior da personagem, foi porque o roteiro não permitiu um aprofundamento psicológico - por exemplo, no que se refere à relação dele com seus familiares -, não é culpa de Depp, que fez a sua parte.

Aparentemente, o objetivo era colocar toda a luz em Johnny Depp, apenas amparado pelos coadjuvantes, todos eles com um histórico notório - alguns mais, outros menos. Todavia, não avisaram Joel Edgerton que o protagonismo deveria ser exclusivo daquele, de modo que Edgerton, sem dificuldade, é o melhor ator em cena. Jimmy é o protagonista, é em torno dele que a história gira, do começo ao fim, mas Connely é, sem dúvida, engrenagem fundamental para a narrativa, e seu intérprete foi capaz de representar um policial dúbio. A ambiguidade de Connely reside no fato de que ele mesmo se convence estar guiado por um objetivo nobre, norteado por um interesse maior (a aniquilação da máfia - exceto Bulger) que justifica todas as suas ações, inclusive as mais questionáveis. No entanto, o envolvimento com o(s) mafioso(s), Bulger em especial, se torna tão próximo que Jimmy Bulger e John Connoly se tornam um só, duas faces de uma mesma moeda. O policial é o que de concreto Maquiavel considera a justificativa dos meios através dos fins, pois suas públicas boas intenções são cada vez mais dúbias, não se podendo afirmar se haveria má-fé e finalidade de ajudar o amigo de infância ou ingenuidade e real crença em fazer o bem. Em suma, não se sabe se Connely é apenas um ingênuo com boas intenções, um corrupto travestido de policial cujo objetivo é apenas engrandecer o poderio de um mafioso com quem mantém uma relação de amizade, ou ainda um tolo que enxerga uma oportunidade para se destacar nas aparências crendo estar imune nas suas ações por força da sua condição de policial - e é a ótima interpretação de Edgerton que dá a incerteza sobre o que norteia Connely e se o desenrolar dos acontecimentos fazem jus à sua conduta e às suas intenções. Dos demais coadjuvantes, duas observações de relevo. A primeira se refere a dois atores de talento imensurável que estão no elenco apenas para catapultar o filme à fama: não seria necessária a presença de Benedict Cumberbatch para interpretar o Senador Bill Bulger - no entanto, nas raras cenas em que aparece, o ator é, como sempre, excelente, em especial ao contracenar com Edgerton -; da mesma forma, é artisticamente inexplicável a presença de um Kevin Bacon para atuar tão pouco, ambos foram desperdiçados. Ademais, dois atores que ainda estão se firmando são convincentes em seus papéis respectivos: Peter Sarsgaard vive um bandido de pouca experiência e muita imprudência, sempre com seriedade; e Corey Stoll atua como um fascinante promotor obstinado no dever e de profissionalismo invejável. Para não cometer uma injustiça, Dakota Johnson também está no elenco e não é desprezível como em "Cinquenta tons de cinza": ao contrário, ela mostrou que, quiçá, um dia será uma atriz apenas fraca. Em síntese, os coadjuvantes cumprem muito bem seus papéis, em especial Joel Edgerton, que vai muito além dos demais.

Novamente para evitar uma injustiça, merece ser mencionada a montagem, que é o único aspecto técnico em que há alguma ousadia em "Aliança do crime". Isoladamente considerada, a montagem é razoável e vai de encontro com a obviedade dos demais elementos, em especial na pontuação, que se reduz a fade in e fade out, sem nenhum efeito diferenciado, o que é um claro erro diante de um filme que reproduz a passagem de tantos anos. São muitas as elipses, e um plano geral com o ano escrito para situar o espectador é demasiadamente básico. Provavelmente para não causar desconforto decorrente de tantas elipses, a montagem insere diversas cenas em que os mafiosos subordinados a Bulger testemunham de modo a entregar o chefe ("delação premiada"), através de flashforwards irritantes e descartáveis. Explicando melhor: o filme tem uma clara linha do tempo, isto é, há uma diacronia evidente, que é cortada por cenas em flashforward com diversos narradores diferentes para atenuar as incessantes elipses, inevitáveis numa representação de tantos anos. Até mesmo a primeira cena é um surpreendente flashforward, levando a presumir que aquele seria o narrador, quando, na verdade, são vários narradores em cenas pontuais, gradual e inexplicavelmente abandonadas - talvez tenham percebido o equívoco. Porém, essa opção da montagem (e da direção, é claro) foi um erro manifesto, pois não traz vantagem alguma, tira o foco do espectador, concede uma visão subjetiva meramente parcial (pois se reduz a apenas alguns minutos, afinal, o narrador se altera) e, o que é pior, infla o filme com cenas descartáveis e desnecessárias, com "cortes" nada sutis que chegam a incomodar. Se essas cenas fossem retiradas, não fariam falta alguma, apenas cansariam menos o espectador. Aqui sim foi assumido um pequeno risco, que resultou em um grande erro.

No geral, "Aliança do crime" é um projeto medroso porque não tenta fazer nada muito diferente do que já foi feito, exceto na montagem/direção, no erro acima mencionado. O produto final não é ruim, serve como um bom entretenimento, mas, se o objetivo era (e aparentemente era mesmo) entrar para a história do cinema e receber diversas premiações (o que ainda é possível, mas improvável e, caso se concretize, não merecidas), falhou no intento. Há algum lucro imaterial para o elenco (notadamente Johnny Depp e Joel Edgerton), mas não um legado cinematográfico para os cinéfilos. O medo não permitiu.

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