sábado, 31 de outubro de 2015

Ponte dos espiões -- No mínimo ótimo

Fruto de uma parceria promissora no papel, "Ponte dos espiões" é um dos raros filmes que consegue superar as já elevadas expectativas. Não há como esperar um produto inferior ao muito bom, e, de fato, o filme é, no mínimo, ótimo.

É evidente que qualquer "film by" Steven Spielberg é pré-candidato a inúmeras premiações. A bem da verdade, a direção não é genial porque pouco há de original em "Ponte dos espiões". Quiçá seja um filme tradicional, até porque tem muitos elementos tradicionais, tais como a visão romântica dos EUA, a demonização dos países comunistas e um recorte temporal bastante preciso. Por outro lado, o renomeado diretor conduz bem o produto (exceção à elipse para o novo chamamento do protagonista para trabalhar no caso após o primeiro fracasso), pois, sabendo que pouco pode inovar, é singelo no que lhe cabe executar. Spielberg sabe que "menos é mais", e só essa sabedoria é suficiente para indicar a qualidade do seu trabalho. Sobre a montagem, se destaca apenas uma cena em que aparece um juiz na corte para, em seguida, em outro local, crianças se levantarem e cantarem o hino estadunidense, uma analogia entre a corte e a escola, seguindo a regra em que há uma única autoridade a que todos que lá estão se subordinam.

Em "Ponte dos espiões", sem dúvida, o maior destaque positivo é o roteiro, simplesmente genial. De tão dotado de virtudes, torna-se difícil mencionar todas. A narrativa é extremamente inteligente - se fosse possível resumir o filme com uma palavra, inteligente seria ela -, com argumentos sagazes e conflitos excelentes. Há um brilhantismo ímpar ao criar premissas das quais saem consequências preciosas. Da premissa pela qual todos têm direito a um defensor capacitado - verdade jurídica universal em Estados democráticos - sai a consequência de que isso não necessariamente significa um julgamento justo, pois pré-conceitos podem conduzir a um pré-julgamento inevitável (isto é, um bom advogado pode garantir as aparências de uma defesa, ficando apenas nas aparências quando o réu está previamente condenado por quem irá julgá-lo). Da premissa segundo a qual o sigilo do advogado é inviolável surge a vontade da sua violação por parte de terceiros (do governo, é claro). Da premissa principal do protagonista, qual seja, o abraço dado à causa, resulta toda a narrativa, pois o protagonista tem seus princípios e ideais e a eles é fiel do início ao fim. Soma-se a tudo isso uma acidez em críticas pontuais (que até surpreendem), em especial a ausência de senso de humanidade da sociedade estadunidense da época, que abunda no protagonista. O povo (e mesmo o juiz!) quer a morte do espião russo, mas sequer tem a certeza de que ele realmente é um espião. Piedade não há, restando ao advogado apresentar argumentos convincentes para salvar (a vida de) seu cliente. Como se não bastasse tudo isso, há momentos de alívio (levemente, mas também agradavelmente) cômico, uma verdadeira jogada de mestre - segundo especulam, contribuição dos irmãos Cohen. É bem verdade que a exaltação à nobreza estadunidense também está presente, como o não abandono dos seus ideias e, em especial, o fato de não torturarem um representante do "inimigo" (ao contrário do que este faz). Se o filme tem pouca ação, isso não significa que não há tensão: sem ser chato ou monótono, é o texto que reluz, pois, ao menos nas ideias, é uma obra-prima.

É Tom Hanks (grande parceiro de Spielberg) que vive o inteligentíssimo protagonista. Apesar de premiado, Hanks é um ator de qualidade duvidosa, em especial pela baixa versatilidade (baixa, mas não nula). Desta vez, inegavelmente, a interpretação é muito boa: se é verdade que ele teve sorte ao atuar como uma personagem fascinante - James Donovan é um dos (cada vez mais) raros protagonistas que toma as rédeas da narrativa mesmo quando a situação em que se encontra tende a impedir, além, é claro, do apego aos seus valores -, não é menos verdade que Hanks foge do lugar-comum ao seguir o mestre Spielberg com o "menos é mais". A dramaticidade aparece nos momentos certos, e a indicação do ator a mais prêmios não será surpresa - provavelmente não os vencerá porque lhe falta ser memorável ("Ponte dos espiões" é memorável, James Donovan não). Por sua vez, Mark Rylance se destaca ao exibir a melhor atuação vista na tela. Um Oscar não será surpresa, pois o Rudolf Abel de Rylance é um coadjuvante sensacional: contido sem ser insosso; dúbio sem ser confuso (nem enigmático); inteligente sem ser arrogante; e provocador (em especial com o reiterado questionamento retórico "isso ajudaria?") sem ser irritante. Hanks sozinho é ótimo, Hanks com Rylance é fantástico. Mais uma vez, mérito do roteiro, sem olvidar a competência dos atores.

A montagem deixa a desejar pela lentidão, e a elipse da nova tarefa de Donovan é mal feita. Além disso, de forma geral, os efeitos sonoros são absurdamente modestos: ainda que se leve em consideração a preocupação de não permitir que imagens e sons ofusquem a inteligência da narrativa, edição e mixagem (esta mais) de som se tornam quase imperceptíveis. A edição de som se salva apenas em razão de alguns detalhes da natureza (chuva e neve, respeitados também pela direção em todos os momentos) e por colocar "Unforgettable" instrumental como mensagem subliminar para apontar a importância de todo e qualquer ser humano em uma das cenas. Aliás, os detalhes foram o diferencial, chegando ao nível de retratar a fragilidade de saúde de Donovan diante do clima pouco amigável da Alemanha. No visual, o design de produção é impecável, pois, dentro do pouco que a história exigia, conseguiu reproduzir bem a tensão da Guerra Fria, além do ambiente sombrio da Alemanha. Note-se que não foram usados efeitos visuais mirabolantes, vez que dispensáveis, prova que uma boa história (bem conduzida) basta por si mesma.

Como nem tudo são flores, o espectador acaba vendo algumas cenas piegas, com sentimentalismo familiar e afetivo (Abel e Donovan não são amigos) superficial e nada convincente e um desfecho previsível. Contudo, nem esses poucos elementos negativos conseguem macular a nova obra de Spielberg, que, se não é a melhor, no mínimo, pode ser considerada como um ótimo filme.

Sicario: terra de ninguém -- Bom que flerta com o razoável

Soa estranho que um filme com artistas consagrados e história razoavelmente comercial não consiga chamar a atenção do público em geral. Não obstante, "Sicario: terra de ninguém" é um bom filme - aquele "bom" apenas bom, longe do "ótimo", longe do "ruim", que flerta com o "razoável".

O grande trunfo é o elenco, a começar pela excelente Emily Blunt, que não dá o melhor de si porque o roteiro não permite. A atriz consegue variar facilmente entre essência frívola ("O diabo veste Prada"), aventureira ("Os agentes do destino") e corajosa ("No limite do amanhã") com maestria ímpar. Em "Sicario", ela vive Kate, uma policial cuja função no filme é exclusivamente apontar um limite moral para as demais personagens. A característica marcante da policial é seu senso moral, com um quê de ingenuidade e muito de dedicação, nada mais. É pouco para uma atriz do seu gabarito. Contudo, Blunt "tira água de pedra". Diversamente, o também excelente Benicio Del Toro interpreta Alejandro, cuja função na narrativa é a álea. Isto é, Alejandro serve como fator surpresa, pois é impossível saber o que ele pensa, o que planeja e qual o seu desfecho, exceto no terceiro ato do filme, em que ele ganha maior importância - lamentavelmente, em detrimento de Kate, a protagonista. Quem teve sorte foi Josh Brolin, pois Matt é a encarnação da máxima maquiavelina pela qual os fins justificam os meios. Sem dúvida, Matt é a personagem mais fascinante e rica: não é light como Kate, nem hot como Alejandro. Em termos de temperamento, Matt é fiel ao seu objetivo, que aos poucos é revelado. A imprevisibilidade não reside na sua personalidade como no caso de Alejandro: Matt é imprevisível porque pouco se sabe o que almeja. Não que esse não seja o caso de Alejandro, mas, enquanto Matt é, aparentemente, um policial sem limite, mas que tem algum norte (sua missão como policial), sobre Alejandro quase nada se sabe (de onde veio e para onde vai, literalmente). Matt se contrapõe a Alejandro, mas a dupla, em tese, é afinada. Já em relação a Kate, há uma evidente contraposição: Kate é dedicada, ética e profissional; Matt é desleixado a ponto de ir a uma reunião de trabalho com chinelos do tipo "Havaianas". Daniel Kaluuya merece menção ao cumprir bem um papel de Sancho Pança que lhe foi incumbido.

Se o elenco é o ponto forte, o roteiro é o ponto fraco. A premissa é muito boa, pois uma história sobre o duelo polícia versus tráfico sempre tem potencial. O caminho que a narrativa toma é o correto, mas acaba se perdendo ao abandonar sua protagonista e fazer com que Alejandro se torne a estrela. O resultado é ruim porque o itinerário até então regular se torna exageradamente imprevisível e, principalmente, se perde. O grupo tem uma missão, quando cresce até chegar ao auge da missão, abandona sua linearidade e se aproxima do inverossímil. A história é infiel consigo mesma, ficando tola. Alejandro não dá conta da expectativa que é gerada em cima do enigma feito em si. O terceiro ato não é apenas confuso, é frustrante.

Fica difícil afirmar que apenas a atuação torna o filme bom, já que o roteiro não o é. Difícil, mas não impossível, pois "Sicario" acerta nos detalhes. Efeitos sonoros competentes e design de produção nota 8. Se a montagem se equivoca na inconstância do ritmo, a direção acerta ao utilizar todos os movimentos de câmera pertinentes para cada plano. Em especial a prevalência da dualidade de planos gerais com travelling e planos conjuntos e com panorâmica. Isso sem contar o zoom nos planos abertos e mesmo nos médios. Denis Villeneuve fez o que pode com a obra que tinha em mãos, seu azar foi o roteiro fajuto, apesar de um pano de fundo interessante, qual seja, a guerra ao narcotráfico. E o conjunto se torna bom.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Peter Pan -- Chega de Pan

Nada se cria, tudo se copia. É com base nessa máxima que resolveram fazer mais um - sim, mais um - "Peter Pan" (no original, apenas "Pan" no título). A grande mudança em relação aos demais é explorar as origens da personagem e da própria Terra do Nunca, proposta que até seria interessante, não fossem tantos os filmes sobre essa mesma diegese fantasiosa.

Não obstante, o filme conta com alguns acertos. O primeiro foi a direção de Joe Wright, que se mostrou hábil ao criar um ambiente fantasioso e colorido, com um quê de carnavalesco. Isso sem contar a transição, pois a obra passa por alguns ambientes distintos: o primeiro, mais rápido, é a Londres no início da 2ª Guerra; o segundo, introduzindo Peter, é também a Londres da 2ª Guerra, especificamente o orfanato em que Peter reside; o terceiro, introduzindo a Terra do Nunca, é a área em que o vilão Barba Negra é soberano (lembrando um pouco os domínios de Immortan Joe, de "Mad Max: estrada da fúria"); por fim, um quarto ambiente que é a verdadeira Terra do Nunca, onde Peter encontra os indígenas e vislumbra a beleza do local. Em termos de design de produção, a transição do sombrio para o alegre - ainda que eventualmente obscuro no meio do caminho, como na cena das sereias - é feita de forma natural, nada forçado. A estética é a ideal. Até mesmo a trilha sonora é compatível com essa transição, incluindo Nirvana e Ramones (e melhor: absolutamente coerente com a cena!) na apresentação do Barba Negra, para depois músicas no estilo de aventura, como é o filme. Uma aventura fantasiosa e empolgante, que acerta em muitos aspectos técnicos, notadamente visuais e sonoros - sem brilhantismo, mas com competência. Mas não todos.

O roteiro parte da premissa de uma boa ideia e termina na boa ideia. Talvez a montagem irregular tenha cooperado para a quebra de ritmo, variando entre a ação e a monotonia com rapidez exagerada. Mas fato é que a narrativa se sustenta unicamente por apresentar a realidade fantástica de Peter e da Terra do Nunca, sem surpresas e, o que é pior, sem profundidade alguma. Ainda mais grave é a ausência de exploração da clássica ideia pela qual Peter é conhecido: criança que não queria crescer. A dramaticidade da personagem existe muito mais em razão da sua condição de órfão do que por outros fatores. Assim, o protagonista acaba ficando vazio, um herói com propósito ególatra que pouco consegue se sustentar. O único aspecto positivo é a constante dúvida de Peter sobre si mesmo e suas capacidades. Foi inteligente inserir um herói bravo, porém inseguro sobre si, elemento da sua personalidade que foi melhor explorado. Mas é pouco. Nem mesmo a boa interpretação do promissor Levi Miller consegue salvar um Peter reduzido à busca da mãe e à própria insegurança. Ainda assim, Miller sabe variar entre a aventura e o drama quando exigido - caso contrário, com um ator ruim, o filme poderia ter sido um fracasso.

Seguindo na atuação, como previsto, é Hugh Jackman quem mais brilha. Em uma interpretação diferenciada daquela que já conhecemos (nem parece o mesmo ator de Wolverine), Jackman, em atuação farsesca, dá vida a um vilão que sabe a medida certa da sua vilania. A aparição inicial impressiona ante à grandiosidade da personagem, que escraviza as crianças com um discurso de alienação, e os elementos externos também colaboram, como a trilha sonora - em especial "Smells like teen spirits" (Nirvana) - e a filmagem que aumenta o pirata - maior profundidade de plano e angulação de baixo para cima. Barba Negra faz uma entrada triunfal, cabendo a um supermaquiado Jackman conduzir o déspota da Terra do Nunca. Ele é, sem dúvida, um grande ator. As cenas com Miller são as mais fascinantes, elevam a narrativa a outro patamar. Só não se pode afirmar que a dupla carrega o filme nas costas (afinal, a história em si é fajuta e muito mal conduzida) porque o visual é ótimo.

Os coadjuvantes são competentes, o que não é pouco. Garrett Hedlund não é um primor, mas está distante de ser ruim. O ator compreendeu que a proposta era de um Gancho (ainda não capitão e ainda não vilão, embora um pouco misterioso) surpreendentemente heroico (pois arredio e aparentemente egoísta no início) e, principalmente, galanteador. Para essa proposta, Hedlund dá conta - e sobra capacidade. Porém, seria difícil imaginá-lo como o Capitão Gancho, grande vilão que conhecemos.  Em outras palavras, o ator se dá bem ao interpretar um herói coadjuvante que alterna entre momentos de coragem (e consequente heroísmo) e de galanteio, mas não se pode saber se ele daria conta ao Gancho clássico, vilão implacável. Difícil não prever um fracasso em uma eventual continuação colocando Hedlund como o conhecido Capitão Gancho. Por sua vez, Rooney Mara interpreta uma coadjuvante opaca.

A bem da verdade, a grande falha reside no roteiro. O elenco é ótimo, a direção é muito boa, tem bons efeitos especiais - um 3D razoável -, mas peca mesmo na história. Uma narrativa inconstante e que não consegue empolgar em momento algum. Se a premissa não é ruim, a condução certamente o é. Para uma aventura, nesse sentido, deixa a desejar, pois não consegue fazer o espectador realmente torcer pela "vitória do bem contra o mal". O trunfo fica exclusivamente na tela, não passando para o espectador. O que lá se encontra é belo, mas não mexe com quem assiste - no máximo, fica com pena do garoto órfão. Se a ideia é fazer uma franquia (ou, no mínimo, uma trilogia), "Peter Pan" deixa a desejar como impulso inicial e não promete continuar com qualidade. Mais: considerando que tudo se copia, seria um alento não continuar nessa história batida.

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

A colina escarlate -- Simplesmente magnífico

O ser humano gosta de rótulos. São dadas categorias para pessoas, relacionamentos, músicas, enfim, das questões mais intrínsecas aos indivíduos e, portanto, subjetivas e mesmo íntimas, até questões externas aos sujeitos e objetivas. Homens gostam de classificações. No cinema não é diferente, havendo um rol de gêneros, já consagrado - ação, aventura, comédia, drama etc. - e cada vez mais surgindo subgêneros, mais controversos. O problema é que essa obsessão humana pelos rótulos nem sempre se mostra apta para o enquadramento da realidade. Especificamente no cinema, embora a maioria dos filmes se encaixe sem dificuldade nos gêneros (e subgêneros) existentes, a sétima arte se mostra tão fluida e plural que as categorias podem ser insuficientes. É nesse contexto que se torna tarefa árdua classificar "A colina escarlate". Existe um romance, mas não chega a ser central. Pelo clima de mistério, seria um suspense. Mas existem elementos sobrenaturais, então seria terror (ou horror). Por outro lado, não chega a assustar ou amedrontar. O "aclamado diretor" Guillermo del Toro classificou sua obra como "um romance gótico". Independentemente da etiqueta, trata-se de um filme magnífico.

Magnífico, mas não perfeito. O roteiro, escrito pelo próprio del Toro em parceria com Matthew Robbins, é eficaz em criar um clima de suspense e o mistério por trás da história. Por outro lado - e aqui vai um leve spoiler -, quando se descobre que tudo o que está por trás não é tão cabuloso, resta uma leve decepção. Vale dizer, no fim das contas, o mistério não é tão elaborado, muito menos assustador. A intenção não era assustar - e não assusta -, mas intrigar. Esse objetivo foi cumprido.

"A colina escarlate" se passa no século XIX e narra a história de Edith (Mia Wasikowska), jovem escritora que se casa com Thomas (Tom Hiddleston), mudando-se do "novo mundo" (EUA) para o "velho" (Europa, especificamente Allerdale Hall, na Inglaterra) para morar com o marido e a cunhada Lucille (Jessica Chastain) em uma casa afastada no topo de uma colina. O "escarlate" do título - e isso não é spoiler - vem da argila avermelhada (escarlate) assentada embaixo da colina. Não encaro a colina como uma personagem à parte, mas é sim um elemento relevante. Por sinal, a referência à cor vermelha já indica um caminho macabro (não propriamente fúnebre, pois mais assustador do que triste).

Se o roteiro acaba sendo simplório, é o designer de produção Thomas E. Sanders que se mostra genial - além da direção de del Toro, responsável pelo todo, evidentemente. O filme é visualmente sensacional, mérito do diretor que já é conhecido por construir universos fantásticos de beleza ímpar - vide o já clássico "O labirinto do fauno" -, mas também de Sanders, que, da fotografia ao figurino, faz um trabalho impecável em relação à proposta. No figurino, enquanto Lucille, figura assustadora e de personalidade sombria, usa um vestuário de cores que remetem à sua imagem lúgubre (como preto e vermelho), Edith inicia se vestindo de dourado, evocando a sua riqueza, mas absorve o preto da cunhada. Nas cenas mais fantásticas, o branco remete à sua pureza. O filme é repleto de referências, inclusive literárias (e expressas, de Jane Austen a Mary Shelley). Tudo tem uma razão de ser, e é na estética que a obra chega ao ápice do seu significado. Começando com a argila escarlate. A própria casa em que Edith reside é uma metáfora inteligente: é uma mansão enorme, mas decadente ao (gradual e literalmente) afundar na argila, além de apresentar um buraco no teto, simbolizando que a casa não é um lar acolhedor para a protagonista. Os fantasmas também não são pretos à toa. São incontáveis os simbolismos e as referências da obra, que até se inicia nessa esteira: a animação da Universal Studios é também em tons de vermelho. O design de produção, em síntese, é brilhante.

Corrobora para o fascínio no olhar a direção de Guillermo del Toro, novamente soberba. Se del Toro não foi tão genial no roteiro, em todo o resto ele acertou. Na mudança de cenas, ele não usa apenas o método comum de mesclar imagens gradualmente (a imagem pretérita vai sumindo enquanto aparece a imagem futura), que não seria original. Quando a modificação é grande (locais ou momentos distantes), del Toro foca em um elemento da tela e vai fechando a imagem (o frame) em movimento circular, focando em algum elemento, que normalmente remete ao que vai acontecer em seguida. A técnica era mais comum em filmes antigos, é como se a tela se apagasse (ficasse preta) de fora para dentro, destacando uma esfera da imagem presente como foco. Já quando a modificação é menor, del Toro, pomposo, seleciona um elemento presente na tela, da imagem presente, e, em movimento travelling de câmera, esse elemento, que está no canto da tela, aparece como divisória para a imagem seguinte, como se tudo fosse (embora claramente não seja) um mesmo cenário. Confuso? Dito de outra forma: quando a narrativa dá um salto, a câmera se fecha das bordas para o centro, focando em algo até fechar e depois reabrir para a cena seguinte; quando a narrativa se altera, mas de uma forma não tão longa, a câmera se move para o frame seguinte, como se os dois fossem vizinhos. Simplesmente esplêndido!

De forma geral, a atuação não fica muito aquém da estética. Embora Wasikowska interprete a protagonista, são os coadjuvantes (de luxo, diga-se de passagem) que brilham mais. Não que a atriz esteja mal no papel, até porque Edith tem muitas virtudes: é uma mulher de personalidade (a começar por não escolher o marido óbvio, o Dr. Alan de Charlie Hunnam, que surpreende ao fazer uma participação que foge do clichê do príncipe encantado), perspicaz (principalmente por ter coragem de investigar o mistério que a ronda) e determinada (ao escrever e querer publicar seu livro). Edith é uma ótima personagem, mas falta a Wasikowska o carisma do parceiro de cena Tom Hiddleston, que é o melhor na tela. O ator que vive o Loki da Marvel esbanja talento ao mostrar que vai muito além do vilão dos quadrinhos. Ele já tinha chamado a atenção como coadjuvante em "Cavalo de Guerra", e foi em "Thor" e "Os Vingadores" que ele ganhou os holofotes. Em "A colina escarlate", Hiddleston interpreta tão bem seu Thomas que concede a ele a dubiedade que a personagem representa. Isto é, não se sabe quais as reais intenções de Thomas e se ele realmente ama Edith. Apenas um ator com o seu talento consegue variar a atuação nos momentos de romance (inclusive em cenas com teor sensual e sexual), mistério e mesmo ação. Jessica Chastain não teve a felicidade de Hiddleston com o papel, pois Lucille é transparente em seu amargor. Mas a atriz também vai bem, principalmente por ser fiel à personagem do começo ao fim, à medida em que esta se revela.

"A colina escarlate", ainda que seja classificada como terror, não tem o objetivo de propriamente assustar. Não amedronta, não faz o espectador pular da poltrona em praticamente nenhum momento (sequer com a referência a "Nosferatu" no início). Não assusta, mas encanta - isso significa que o filme é válido também para o espectador que não aprecia histórias com fantasmas. Como metalinguagem, a própria protagonista explica a diferença entre história de fantasmas e história com fantasmas (seu livro está na segunda categoria, assim como o filme): os fantasmas estão lá, "são reais", como ela mesma diz, mas não é em torno deles que a narrativa gira. São apenas um algo a mais, não o nucleo.

Guillermo del Toro é um dos melhores diretores no quesito criação de universos fantásticos, e, mais uma vez, o mexicano merece aplausos. O que apresenta é uma obra sofisticada, complexa e de altíssimo grau de refinamento artístico. Suas sutilezas são tão memoráveis que não é possível classificar (esse sim um rótulo possível e justo) a obra como algo menos que magnífica. No aspecto técnico-estético, "A colina escarlate" perde para apenas um filme de 2015 (até agora): o inigualável "Mad Max: estrada da fúria". São dois filmes excelentes. Este, primoroso; aquele, simplesmente magnífico.

domingo, 11 de outubro de 2015

A travessia -- Aplausos ao artista

São inúmeros os filmes que tratam sobre a realização de um sonho. Incontáveis os que criam um clima de tensão. Também vários que unem a tensão ao objetivo do protagonista. "A travessia" é mais um exemplar de qualidade: narra a história real (já retratada no documentário "O equilibrista", vencedor do Oscar) de um equilibrista que atravessou as Torres Gêmeas (WTC) se equilibrando em um cabo.

Considerando tratar-se de uma história real e a opção de o próprio protagonista narrar a sua história, o final é sabido. O que interessa, portanto, é a travessia em si. A primeira parte, mais suave, é uma introdução à história, relatando como o protagonista se uniu aos seus "cúmplices" (termo usado por ele mesmo), além de apresentar o espectador às personagens. Nessa primeira parte, a narração é mais presente e há pouca utilização de cores, para ressaltar a referência ao pretérito. A ideia é aproximar o espectador em especial ao protagonista e ao seu objetivo. O segundo ato, muito mais (in)tenso, retrata toda a preparação para concretizar a façanha. E há, é claro, um grand finale, com a travessia em si - que gera surpresas para quem não conhece detalhadamente a história (como era o meu caso).

Philippe Petit é um protagonista muito carismático, boa parte graças à interpretação do já carismático Joseph Gordon-Levitt. Se o bom humor de Petit é real (se sua natureza realmente é essa) não se sabe, mas a dramaticidade cede espaço para a tensão do desafio, e não à psique do inabalável herói. Petit é uma pessoa determinada, talvez até de uma forma obsessiva, mas não deixa de ser exemplo da máxima "quem acredita sempre alcança". Gordon-Levitt é ótimo e visivelmente dedicado ao papel, embora o sotaque deixe a desejar. Vale dizer, o ator, cuja primeira língua é o inglês estadunidense, vive um francês (cuja primeira língua é o francês) que fala um inglês em nível intermediário e com sotaque. Ele teria de disfarçar sua facilidade com a língua-mãe (inglês) e fingir que domina o francês, além de "afrancesar" a primeira. Para quem conhece ambas, o resultado não é convincente, pois a pronúncia no inglês é muito mais aberta que no francês, e Gordon-Levitt não se desprende dessa característica. É até interessante a insistência na variação do idioma (ora um, ora outro), mas a ressalva é necessária. Evidente e justamente, os holofotes ficam com ele, havendo um único coadjuvante que merece menção: Ben Kingsley. O veterano e versátil ator interpreta Papa Rudy, mentor de Petit. Kingsley, como sempre de forma genial, sutilmente expõe a dubiedade da personagem, que varia entre um equilibrista experiente, brabo e impaciente e um tutor paternalista e preocupado. Não apenas essencial na história, Rudy/Kingsley é uma estrela que faz Petit/Gordon-Levitt brilhar ainda mais. O resto do elenco é minimamente necessário como engrenagem.

Roteiro e montagem são competentes - o primeiro não é original, mas, partindo da premissa da qual parte, não poderia ser; a segunda, inclusive, teve a sabedoria de não cortar o ápice da obra, a travessia em si, gerando a tensão compatível com a proeza. É o momento com ação, e não narração. Sábio também foi o diretor Robert Zemeckis, com um ótimo 3D e um excelente trabalho de câmeras (quase como numa montanha-russa em algumas cenas). Visualmente, o filme impressiona não tanto pela fotografia, que não se destaca, mas pela identificação cinematográfica primária (o que vemos com a câmera), pois a inserção do espectador na diegese (universo do filme) é inegável. A tensão não fica só na tela. Isso sem contar a visualização de algumas metáforas, como a do caixão e a das nuvens. A mixagem de som é simplória, exceto quando toca "Für Elise", de Beethoven.

Importante mencionar a supervalorização da cultura estadunidense praticamente em detrimento da francesa. O WTC é visto como um monumento ainda maior do que realmente foi. Não apenas no idioma, mas a cultura francesa é vista de forma rasa. Contudo, exigir isso de um filme hollywoodiano seria demais. Afinal, o homenageado já é francês.

"A travessia" não chega ao cinema como um marco, uma obra sensacional. É ótimo, mas não único. Impressiona graças ao feito único e histórico de Philippe Petit. E serve como uma homenagem a esse corajoso artista, que merece muitos aplausos. Sua façanha já está na história. O filme, por outro lado, dificilmente entrará. É um ótimo produto, todavia, despido da originalidade necessária para ser grande.

terça-feira, 6 de outubro de 2015

Perdido em Marte -- Competente, mas modesto

Embora a existência de um bom vilão costume ser recomendável, a regra não é absoluta, mais ainda se o carisma do protagonista for autossuficiente. É dessa premissa que partiu o roteiro (adaptado) de "Perdido em Marte", novo filme de Ridley Scott (diretor) - melhor que os últimos (e muito melhor que o desastre "Prometheus"), mas ainda distante da genialidade.

A construção do protagonista Mark Watney, interpretado de forma razoável pelo normalmente fraco Matt Damon, tem muitos pontos positivos: Watney é carismático, inteligente, persistente, corajoso e dotado de um bom humor ímpar. É justamente aí a primeira falha na sua personalidade: se Damon se dá bem no lado cômico (evidentemente, sem ridicularizar a personagem, até porque o objetivo de Scott não foi criar uma comédia), o lado dramático é inexistente, tornando Watney quase oco em termos de emoção. Ainda que a intenção seja enfatizar a veia cômica e bem humorada de Watney, ele, presumidamente humano, em algum momento deveria ter uma reação negativa às previsíveis - algumas bem previsíveis - adversidades que enfrenta. Nem mesmo a somatória entre a solidão em Marte e as adversidades enfrentadas são capazes de abalar o incrivelmente inabalável protagonista. Sem dúvida, seu psicológico é exemplar e sobre-humano (quem sabe ele não seja realmente marciano, como o título original indica). Mais simples e vergonhosa é a segunda falha: enquanto atores como Christian Bale moldam seus corpos para os papéis que fazem (emagrecendo e ganhando músculos sempre que necessário, ainda que em detrimento da própria saúde), Damon nesse quesito foi incapaz, claramente usando um dublê de corpo em cenas deploráveis que tentam ludibriar o espectador. Isso foi vergonhoso e basta para afastar qualquer um que defenda uma premiação ao ator pelo papel. Não obstante, o carisma de Damon conduz o filme do começo ao fim, dispensando um vilão - que poderia ser Jeff Daniels... mas não é. Tudo gira em torno de Mark Watney, fazendo jus ao título.

Se Damon ocupa todo o "espaço" de atuação, pouco resta aos coadjuvantes. Os únicos que conseguem um algo a mais que simplesmente ser uma engrenagem para mover a narrativa são Donald Glover (que não tem parentesco com o também ator Danny Glover), em aparição curta, mas chamativa, e Jessica Chastain, a melhor entre os coadjuvantes. Chastain interpreta Melissa Lewis, a comandante dos astronautas que foram a Marte (incluindo Watney, que é abandonado porque dado como morto pelos colegas após uma tempestade no Planeta Vermelho). Sua competência no papel fica visível em nuances da personalidade de Lewis, variando entre o despotismo necessário de uma líder, a responsabilidade inerente ao cargo de "chefia" e a preocupação normal em relação à situação de Watney (normal para pessoas normais, o que não inclui Watney). Kristen Wiig, Jeff Daniels, Michael Peña, Sebastian Stan, Kate Mara e Chiwetel Ejiofor estão no piloto automático, quiçá pela empolgação relativa a participar de um filme de astronautas. Sean Bean é desperdiçado com um papel pouco significativo.

E também se Damon ocupa todo o "espaço" de atuação, a ele não foi fornecida toda a tela. Ridley Scott faz um excelente trabalho de câmera, primeiro ao focar em Mark Watney sempre que necessário, com planos abertos, médios e primeiros. Mas são os planos gerais e conjuntos que fascinam, não apenas pelo ótimo (ainda que não essencial) 3D, mas por uma fotografia belíssima e muito viva, representando de modo eficaz o espaço e, é claro, Marte. Sem, contudo, superar o notável "Gravidade" de Alfonso Cuarón, melhor em todos os aspectos. De todo modo, a atmosfera criada pelos efeitos visuais - ao contrário dos inexpressivos efeitos sonoros - tem sua qualidade.

Criando uma zona de conforto a partir do carisma do protagonista e belos planos, "Perdido em Marte" não é audacioso, nem sequer original (quase um mix entre "Náufrago", "Interestelar" e "Gravidade", dentre vários outros). Tudo se copia, e não souberam beber da clássica fonte de Daniel Defoe, Robinson Crusoé. Tiveram a feliz coincidência de tratar de um planeta que está na moda atualmente (basta conferir notícias dadas pela NASA). E a sagacidade de (1) dispensar a complexidade científica de "Interestelar", para não correr o risco de se tornar incompreensível e (2) evitar a dramaticidade de "Gravidade", impedindo que soasse minimamente piegas. O resultado é um bom produto: simplório, mas efetivo; competente, mas modesto.

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Vai que cola - o filme -- Ridículo, mas não ruim

Ser ridículo não necessariamente significa ser ruim. A palavra é polissêmica, vai desde o insignificante ao risível. Provavelmente "Vai que cola - o filme" merece todas as acepções desse termo.
Não se pode levar a sério um filme que não se leva a sério - e que justamente por isso começa a ser ridículo. Exemplo é o fato de o protagonista, Valdomiro (Paulo Gustavo) admitir que está em um filme (como na cena do trailer em que ele afirma ser desnecessária a quantidade de figurantes existentes). Isto é, o próprio filme se admite como filme, sem fingir ser "vida real". É dessa premissa que a obra parte, deixando claro ao espectador que não deve ser levado a sério.

Tanto não deve ser levado a sério que, além de tudo ser exageradamente estereotipado, existem piadas consigo mesmos. Novamente se sobressai Valdomiro, que tira sarro dos outros, mas também de si mesmo. Tudo se torna oportunidade para piada e gozação, mas sem apelações de caráter sexual. Há piadas sobre sexualidade, não sobre sexo, o que acaba sendo um diferencial, pois são incontáveis as comédias que "abusam do sexo" para arrancar risos. O ápice da sexualidade fica com Marcus Majella, que interpreta Ferdinando, um homossexual bastante afeminado. De uma forma grotesca, não se pode negar, mas que se torna mais inofensivo quando Ferdinando tenta seduzir Brito (Oscar Magrini).

Os holofotes ficam com Paulo Gustavo, como não podia deixar de ser. Ele é dotado de um carisma inigualável, de modo que é engraçado em tudo que faz (não apenas ao gozar de si mesmo). Contudo, Marcus Majella, Samanta Schmutz (Jéssica) e Cacau Protásio (Terezinha) também conseguem brilhar. Os demais têm reduzida importância - merecem destaque Fiorella Mattheis, absolutamente descartável; Catarina Abdalla, simplória demais; e Fernando Caruso, com duas subtramas (uma de suspense, outra de romance) que, mesmo no ápice, não empolgam. Para um filme - afinal, a base é uma série de televisão -, teria sido melhor reduzir as personagens e dar espaço maior para as mais relevantes. Mesmo Valdomiro merecia mais tempo, não apenas pelo ótimo Paulo Gustavo, mas para explorar melhor seu caráter duvidoso.

O retrato feito do Rio de Janeiro, de maneira bastante jocosa, provavelmente se torna mais interessante aos que lá residem. A contraposição entre os bairros - Leblon e Méier - é feita como se o abismo fosse ainda maior do que realmente é, justamente para seguir na mesma linha do ridículo. Aliás, a contraposição já citada sobre a sexualidade (Ferdinando versus Brito) também sugere um interessante abismo entre o homossexual assumido e o (talvez) enrustido (dúvida que persiste durante a trama). Uniu-se às contraposições algumas incoerências pessoais, como o coração mole de Valdomiro, que, em tese, não seria uma pessoa de conduta exemplar, e o vaivém emocional de Máicol (Emiliano D'Ávila), que é apaixonado por Jéssica (Schmultz), mas cede aos avanços de Velna (Mattheis). Diversamente, Terezinha (Protásio) e Jéssica são lineares: a primeira subsiste por si só, a segunda diverte com Klebber Toledo (que interpreta a si mesmo).

São tantas as subtramas e tantas as personagens que o resultado é uma salada minimamente agradável. Ridículo do começo ao fim, mas não chega a ser ruim, pois, em nenhum momento, é apelativo. Se não faz o espectador "chorar de tanto rir", também não é monótono - e nem confuso. Com humor leve e bem escrachado, embora muito inferior a "Minha mãe é uma peça" (como disse Ferdinando/Majella, Paulo Gustavo é melhor atriz do que ator), o filme acaba como uma diversão descompromissada e neutra.