É com muita honra que o Recanto do Cinéfilo recebe um texto do amigo e colega Gustavo Scholl Ventura, que nos brinda pela primeira vez aqui com a sua participação como crítico convidado.
O Gustavo escreveu a crítica de PROJETO FLÓRIDA, filme que estreará na próxima quinta-feira e que tem uma indicação ao Oscar (Melhor Ator Coadjuvante - Willem Dafoe). Aqui vai!
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Alguns filmes têm o poder de
causar empatia por personagens de moral duvidosa. Através do uso de recursos
cinematográficos, o diretor brinca com o espectador e testa seus limites: até
onde torcer pelo sucesso de quem parece ser o vilão da história? “Projeto Flórida” é um desses filmes,
mas que não navega em águas rasas. O diretor Sean Baker (“Tangerine”)
entrega uma obra sensível e reflexiva a respeito da condição humana, através de
um bom roteiro e grandes atuações.
Moonee (Brooklyn Prince) é uma criança de seis anos que mora num hotel
barato próximo ao Walt Disney World junto com sua mãe, Halley (BriaVinaite). Durante um verão, Moonee
brinca com seus amigos rebeldes, aprontando sem se importar com as
consequências, enquanto sua mãe luta para ter onde dormir por mais uma noite.
Não há dúvidas que Brooklyn
Prince é a estrela desse longa, e não é para menos. Ela se mostrou uma atriz
sólida durante todo o filme, sendo poucas cenas onde ela não está na tela. Uma
criança rebelde que pode, dentre muitas explicações, ter tido uma má educação
ou mesmo ter sido influenciada pelo lugar onde vive. O fato é que Moonee
encarna uma complexidade diferente, que abraça um entendimento puro do mundo,
ainda que por olhos distorcidos devido à sua condição socioeconômica. Baker fez
um ótimo trabalho nesse aspecto, ao gastar muito tempo mostrando Moonee tomando sorvete, caminhando na chuva ou simplesmente com alguns brinquedos e seus
amigos. Por mais diferente que uma educação familiar como a dela possa ser, ela
ainda é uma criança e enxerga o mundo assim.
“Sabe
porque essa é minha árvore favorita? Porque ela caiu e continua crescendo”
Moonee
O trabalho de câmeras é
muito bom, ora priorizando uma câmera estática e aberta para sugerir o tamanho
do mundo e da complexidade externa comparada às crianças, ora utilizando trackingshots na altura delas,
diminuindo o escopo de todo o seu universo. Já a direção de fotografia de Alexis Zabe se
revelou muito interessante. Experiente, mas tendo trabalhado a maior parte de
sua carreira em curtas, Alexis trabalhou as cores e sua significação dentro do
hotel e fora dele. Sob a perspectiva de Moonee, o roxo se torna o ambiente
aconchegante, onde há segurança, enquanto o laranja (da loja de frutas) e o
azul indicam todo o mundo ao redor do seu hotel e sua imensidão. A vivacidade
das cores, que saltam à tela e realçam até características climáticas da
Flórida, é o elemento que não só coloca o espectador no ponto de vista das
crianças, mas também o transporta para suas próprias memórias afetivas da
infância através do lúdico.
Há um excesso de repetições,
ou seja, Baker quer transmitir a sensação de rotina ou sucessões. Os helicópteros,
os problemas de Bobby (Willem Dafoe),
a rotina no hotel... O “um dia após o outro” é agonizante para uma Halley sem
dinheiro e com uma filha para criar, mas para as crianças é motivo de alegria.
O diretor traça esse contraste a partir das continuidades da trama, enfatizando
a rotina como o que separa de fato a mentalidade dos adultos e das crianças.
Dafoe entrega uma atuação
excelente: discreta, mas muito convincente. São os detalhes em sua expressão e
suas atitudes para com Halley que ao longo do filme revelam Bobby como um
personagem complexo. A maneira como ele trata as crianças se mostra
inicialmente de alguém controlador ou, como Moonee o chama, um “estraga prazer”. Porém, sutil e progressivamente se percebe um personagem que
não é tão simples. Méritos do roteiro de Baker e coescrito por Chris Bergoch, seu também parceiro de “Tangerine”, mas também de uma precisa
atuação de Dafoe, que eleva o filme em muitos momentos.
O público pode se questionar
diversas vezes durante o longa a distorção do caráter de Halley, o que claramente
reflete na educação de Moonee. O papel da maternidade nos padrões convencionais
é totalmente descartado, dando lugar a um ambiente de drogas e palavrões (e
progressivamente a história descama mais condutas duvidosas da mãe). Talvez
seria o caso de “o homem é bom por natureza, mas a sociedade o corrompe”, de
Jean-Jacques Rousseau? Devido ao uso dos recursos cinematográficos de Baker, pode-se
dizer que existe uma força externa que, de certa forma, subjuga os personagens
já marginalizados. Existe um quê de "O Cortiço", de Aluísio Azevedo, nesse
longa. As relações sociais e econômicas e principalmente a pobreza são
trabalhadas de modo a não definir contornos padrões para o resto da sociedade,
seguindo uma espécie de lógica própria. A princípio, julgar Halley por suas
atitudes pode parecer correto, todavia o aprofundamento em sua relação de amor verdadeiro
para com Moonee fisga o espectador que se afogava nas convicções padronizadas
sobre uma relação tradicional de mãe e filha.
O desfecho é excelente, pois
trabalha com consequências e até mesmo justiça. A brilhante atuação de Brooklyn
converge para uma sequência final quase mágica, onde entra a pouco presente trilha sonora. O uso de jumpcuts
criam a sensação de que, pela primeira vez, o tempo é importante para Moonee.
Emocionante, muitas vezes duro e com os dois pés fincados na realidade,
“Projeto Flórida” se sobressai por mostrar problemas comuns e por ser capaz de
fazer o espectador se importar na integralidade com cada detalhe da trama. Uma
obra reflexiva, bela e, sobretudo, real.