terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Projeto Flórida -- Encanto e Realidade Às Sombras da Disney


É com muita honra que o Recanto do Cinéfilo recebe um texto do amigo e colega Gustavo Scholl Ventura, que nos brinda pela primeira vez aqui com a sua participação como crítico convidado.

O Gustavo escreveu a crítica de PROJETO FLÓRIDA, filme que estreará na próxima quinta-feira e que tem uma indicação ao Oscar (Melhor Ator Coadjuvante - Willem Dafoe). Aqui vai!

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Alguns filmes têm o poder de causar empatia por personagens de moral duvidosa. Através do uso de recursos cinematográficos, o diretor brinca com o espectador e testa seus limites: até onde torcer pelo sucesso de quem parece ser o vilão da história? “Projeto Flórida” é um desses filmes, mas que não navega em águas rasas. O diretor Sean Baker (“Tangerine”) entrega uma obra sensível e reflexiva a respeito da condição humana, através de um bom roteiro e grandes atuações.

Moonee (Brooklyn Prince) é uma criança de seis anos que mora num hotel barato próximo ao Walt Disney World junto com sua mãe, Halley (BriaVinaite). Durante um verão, Moonee brinca com seus amigos rebeldes, aprontando sem se importar com as consequências, enquanto sua mãe luta para ter onde dormir por mais uma noite.

Não há dúvidas que Brooklyn Prince é a estrela desse longa, e não é para menos. Ela se mostrou uma atriz sólida durante todo o filme, sendo poucas cenas onde ela não está na tela. Uma criança rebelde que pode, dentre muitas explicações, ter tido uma má educação ou mesmo ter sido influenciada pelo lugar onde vive. O fato é que Moonee encarna uma complexidade diferente, que abraça um entendimento puro do mundo, ainda que por olhos distorcidos devido à sua condição socioeconômica. Baker fez um ótimo trabalho nesse aspecto, ao gastar muito tempo mostrando Moonee tomando sorvete, caminhando na chuva ou simplesmente com alguns brinquedos e seus amigos. Por mais diferente que uma educação familiar como a dela possa ser, ela ainda é uma criança e enxerga o mundo assim.

“Sabe porque essa é minha árvore favorita? Porque ela caiu e continua crescendo” Moonee

O trabalho de câmeras é muito bom, ora priorizando uma câmera estática e aberta para sugerir o tamanho do mundo e da complexidade externa comparada às crianças, ora utilizando trackingshots na altura delas, diminuindo o escopo de todo o seu universo. Já a direção de fotografia de Alexis Zabe se revelou muito interessante. Experiente, mas tendo trabalhado a maior parte de sua carreira em curtas, Alexis trabalhou as cores e sua significação dentro do hotel e fora dele. Sob a perspectiva de Moonee, o roxo se torna o ambiente aconchegante, onde há segurança, enquanto o laranja (da loja de frutas) e o azul indicam todo o mundo ao redor do seu hotel e sua imensidão. A vivacidade das cores, que saltam à tela e realçam até características climáticas da Flórida, é o elemento que não só coloca o espectador no ponto de vista das crianças, mas também o transporta para suas próprias memórias afetivas da infância através do lúdico.

Há um excesso de repetições, ou seja, Baker quer transmitir a sensação de rotina ou sucessões. Os helicópteros, os problemas de Bobby (Willem Dafoe), a rotina no hotel... O “um dia após o outro” é agonizante para uma Halley sem dinheiro e com uma filha para criar, mas para as crianças é motivo de alegria. O diretor traça esse contraste a partir das continuidades da trama, enfatizando a rotina como o que separa de fato a mentalidade dos adultos e das crianças.

Dafoe entrega uma atuação excelente: discreta, mas muito convincente. São os detalhes em sua expressão e suas atitudes para com Halley que ao longo do filme revelam Bobby como um personagem complexo. A maneira como ele trata as crianças se mostra inicialmente de alguém controlador ou, como Moonee o chama, um “estraga prazer”. Porém, sutil e progressivamente se percebe um personagem que não é tão simples. Méritos do roteiro de Baker e coescrito por Chris Bergoch, seu também parceiro de “Tangerine”, mas também de uma precisa atuação de Dafoe, que eleva o filme em muitos momentos.

O público pode se questionar diversas vezes durante o longa a distorção do caráter de Halley, o que claramente reflete na educação de Moonee. O papel da maternidade nos padrões convencionais é totalmente descartado, dando lugar a um ambiente de drogas e palavrões (e progressivamente a história descama mais condutas duvidosas da mãe). Talvez seria o caso de “o homem é bom por natureza, mas a sociedade o corrompe”, de Jean-Jacques Rousseau? Devido ao uso dos recursos cinematográficos de Baker, pode-se dizer que existe uma força externa que, de certa forma, subjuga os personagens já marginalizados. Existe um quê de "O Cortiço", de Aluísio Azevedo, nesse longa. As relações sociais e econômicas e principalmente a pobreza são trabalhadas de modo a não definir contornos padrões para o resto da sociedade, seguindo uma espécie de lógica própria. A princípio, julgar Halley por suas atitudes pode parecer correto, todavia o aprofundamento em sua relação de amor verdadeiro para com Moonee fisga o espectador que se afogava nas convicções padronizadas sobre uma relação tradicional de mãe e filha.

O desfecho é excelente, pois trabalha com consequências e até mesmo justiça. A brilhante atuação de Brooklyn converge para uma sequência final quase mágica, onde entra a pouco presente trilha sonora. O uso de jumpcuts criam a sensação de que, pela primeira vez, o tempo é importante para Moonee. Emocionante, muitas vezes duro e com os dois pés fincados na realidade, “Projeto Flórida” se sobressai por mostrar problemas comuns e  por ser capaz de fazer o espectador se importar na integralidade com cada detalhe da trama. Uma obra reflexiva, bela e, sobretudo, real.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Estreias da semana -- 22/02/2018


A semana tem um filme indicado ao Oscar de Melhor Filme, que tem sua crítica disponível aqui no Recanto, além de um filme que pode ser promissor.


PEQUENA GRANDE VIDA
Comédia dramática com Matt Damon, Kristen Wiig e Christoph Waltz no elenco.
Sinopse: Na cidade de Omaha, as pessoa descobrem a possibilidade de reduzir de tamanho para uma versão minúscula, a fim de terem menos gastos vivendo em pequenas comunidades que se espalham pelo mundo. Um homem aceita passar por esse processo.


A GRANDE JOGADA
Drama dirigido por Aaron Sorkin e com Jessica Chastain, Idris Elba e Kevin Costner no elenco.
Sinopse: Após perder a chance de participar dos Jogos Olímpicos, a esquiadora Molly Bloom decide tirar um ano de folga dos estudos e ir trabalhar como garçonete em Los Angeles. Através de circunstâncias curiosas, ela acaba se tornando milionária e famosa por organizar os mais exclusivos jogos de pôquer da região.


PAULISTAS
Documentário brasileiro dirigido por Daniel Nolasco.
Sinopse: O documentário mostra as transformações de Paulistas, região rural de Goiás, através do olhar dos irmãos Samuel, Vinícius e Rafael, que voltam ao lugar onde nasceram no período de férias.


TRAMA FANTASMA
Indicado em 6 categorias do Oscar, incluindo Melhor Filme, minha crítica já foi publicada e pode ser lida clicando aqui.


MINHA AMIGA DO PARQUE
Drama coproduzido entre Argentina e Uruguai.
Sinopse: Liz é uma mãe de primeira viagem que está cuidando sozinha do filho enquanto o marido viaja à trabalho. Sozinha e se sentindo um pouco perdida, ela começa a frequentar um grupo de mães e pais e acaba conhecendo Rosa, com quem constrói uma forte amizade.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Trama Fantasma -- Roteiro mal construído

A doutrina que versa sobre análise narratológica costuma distinguir os seguintes conceitos: tema, assunto e mensagem. Partindo dessas três categorias teóricas, é possível concluir que TRAMA FANTASMA é um filme frívolo do ponto de vista do seu roteiro mal construído.

O longa se passa na década de 1950, período em que Reynolds Woodcock é um estilista de sucesso, tendo sua irmã Cyril como seu braço direito. Reynolds escolhe a dedo as mulheres que vão inspirar seus trabalhos, porém sua nova musa, Alma, abala toda a sua rotina.

A direção de Paul Thomas Anderson é muito boa, prestando atenção em cada detalhe e na criação da atmosfera de desconforto que prevalece na maior parte da duração da película. A direção de arte é esplendorosa, com maravilhosos figurinos, o que não surpreende, em se tratando de um filme que tem um estilista como uma das personagens principais. Porém, como o elenco é quase exclusivamente feminino, os vestidos são realmente deslumbrantes, enquanto as roupas masculinas são mais ordinárias, ainda que belas. A trilha sonora é boa, com músicas instrumentais que conseguem acompanhar bem o ritmo dado por Anderson. Chama a atenção a fotografia estupenda no trabalho de iluminação: quando Reynolds faz um vestido para Alma, por exemplo, há um foco central de luz, com sombras às margens do campo, dando realismo ao plano.

O elenco conta com um trio muito afinado: Daniel Day-Lewis como Reynolds, Vicky Krieps como Alma e Lesley Manville como Cyril. Elogiar Day-Lewis é dispensável: o ator vai bem em qualquer papel, mesmo que se trate, como nesse caso, de uma personagem sem grandes encantos dramáticos. Krieps, por outro lado, tem um papel mais desafiador, já que Alma é uma personagem que demanda sentimentos intensos e peculiares, como desespero, insegurança, insatisfação, insistência e perspicácia. Cyril é detalhista como seu irmão (a ponto de conseguir definir especificamente os odores de uma pessoa), todavia sua participação é diminuta, tornando a interpretação de Manville mais unidimensional, ainda que de boa qualidade - isto é, sempre séria e fria, não se rebaixando perante ninguém. A grande importância de Cyril é o fato de manipular muito a vida de Reynolds, o que afeta bastante a sua personalidade e põe em xeque a construção da personagem no roteiro.

É verdade que a discussão fica explícita, pois embora o próprio Reynolds afirme para Alma que é forte, ela diz que ele apenas finge ser forte. O fundamento do estilista é que são as expectativas e as decepções sobre as pessoas que causam mágoas, o que é coerente com o seu discurso. Entretanto, em vários momentos fica claro que ele é marionete da irmã, o que pulveriza a sua personalidade e o descredibiliza por completo. Ainda que isso não aconteça sempre, ocorre em momentos-chave: logo no início, quando ele acata uma sugestão dela de se deslocar enquanto ela resolve um problema para ele; e mais adiante, quando o discurso de Cyril é no sentido de que ele não é capaz de enfrentá-la e de que ela é quem tem a palavra final, fazendo-o se calar. Usando a terminologia de Greimas, embora Reynolds seja sujeito e receptor (interpretando Alma como objeto no esquema actancial), é Cyril quem realmente importa, já que transita como actante em mais funções (notadamente doadora, adjuvante e opositora). Porém, como o roteiro renega a Cyril espaço secundário, a trama se torna pouco confiável, afinal, se ela quisesse, poderia mudar toda aquela situação.

Vale dizer, o roteiro se equivoca ao atribuir tamanho poder decisório a uma personagem que deveria ser secundária. Se a função de Reynolds é de sujeito e receptor, ele é quem deveria deter maior poder decisório; se, por outro lado, Cyril tem maior margem para condicioná-lo, precisaria ganhar maior espaço, maior desenvolvimento de personalidade e um arco dramático próprio. Em síntese, não faz sentido que uma coadjuvante de somenos importância no texto tenha tamanha interferência virtual, sob pena de instabilidade do próprio texto. A ideia segundo a qual "se ela quiser, ela acaba com tudo isso agora mesmo" tem a possibilidade de ficar perene na mente do espectador. E pior: em uma das cenas essa premissa é quebrada, em inaceitável incoerência <<SPOILER ALERT: (se ela não aceita discutir com Reynolds e se ele se sujeita a ela, a cena do médico é um paradoxo do script FIM DO SPOILER)>>.

O roteiro também é falho por apresentar um assunto frívolo e uma mensagem vazia, apesar do tema interessante. Os autores de narratologia ensinam que tema é uma ideia genérica sobre a qual a história versa, consistindo em um substantivo abstrato, enquanto assunto é o tema de maneira concreta, ou seja, seu desenvolvimento na narrativa, expressado por um substantivo (ou expressão substantiva) concreto(a). A mensagem é um conceito mais simples, resumida em geral por uma frase que sintetiza o que se extrai da história. Nada impede que a narrativa tenha mais de um tema, mais de um assunto e mais de uma mensagem. No caso de "Trama Fantasma", o tema é o relacionamento interpessoal; o assunto é a interação entre Reynolds e Alma; a mensagem fica aqui omitida para evitar um spoiler referente ao desfecho. O tema não é ruim, mas é mal abordado por um assunto sem transcendência social nenhuma (ou, com mais critério, ideologicamente retrógrado) e com uma mensagem niilista. Reynolds é um estilista, vive em um mundo de futilidade, cercado de pessoas ricas e nobres e trata as pessoas - em especial as mulheres de sua vida - como objetos. Não obstante, Alma se despe do amor próprio e pateticamente se humilha, pleiteando por atenção e afeto.

O filme inteiro consiste na rejeição de Reynolds para com o afeto demandado por Alma (ao menos da forma que ela deseja), de um lado, e na demanda desta pelo carinho daquele, de outro - e, enquanto isso, ela aprende a admirá-lo como o grande estilista que ele é, responsável pelos vestidos de mulheres muito especiais (as mais ricas e as que detêm título de nobreza). A ênfase no endeusamento dele enquanto profissional é tamanha que os dois fazem questão de recuperar o vestido de uma cliente que, na visão deles, não mereceria usá-lo, havendo também uma cena em que uma mulher qualquer aparece dizendo que sonha em um dia usar a sua marca. O problema não é ser um filme sobre moda - até porque esse não é o tema e sim um dos assuntos -, mas forçar uma conexão entre esse assunto e o tema, que, no fundo, acaba sendo exposto de uma maneira deveras rasa - prova disso é a insatisfatória mensagem do longa.

Cabe reiterar que a estética do filme é praticamente irrepreensível: seu problema reside no roteiro. Também é recomendável mencionar que esse é um ponto de vista,  amparado em semiótica e narratologia, mas não uma verdade absoluta, já que crítica cinematográfica não é ciência exata. Logo, não se trata de uma recomendação para o leitor não assistir ao filme. A ideia, ao contrário, é propor um olhar mais apurado sobre a produção. Nesse sentido, pode-se concluir que o script de "Trama Fantasma" é realmente mal construído.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Cinquenta Tons de Liberdade -- Finalmente acabou

Mais uma franquia chega ao fim. A despeito da enxurrada de críticas negativas que recebeu, a obra de E. L. James conseguiu encerrar sua trilogia cinematográfica, o que nem todas as franquias conseguem (vide a saga "Divergente"). Ou seja, houve êxito com um público nos dois primeiros capítulos, o que provavelmente se repetirá com CINQUENTA TONS DE LIBERDADE, episódio final.

Relativo sucesso de público, fracasso de crítica, com diversas nomeações ao Framboesa de Ouro, "Cinquenta Tons" tem um perfil específico de espectador que lhe tem sido fiel, da literatura à sétima arte. Mesmo não tendo bilheterias tão expressivas, os filmes conseguiram se dar razoavelmente bem na proposta de soft porn com pseudo-drama de fundo, enredo questionável e texto oco (e essa proposta já foi bastante aprofundada nas críticas dos longas anteriores). O terceiro filme eleva o primeiro e o último elemento, reduzindo os demais.

É difícil elaborar a sinopse de uma película de narrativa vazia. Basicamente, Anastasia e Christian enfim se casam, pois estão prontos para viver uma vida feliz a dois. Porém, traumas do passado - o ex-chefe dela, Jack Hyde, e a ex-abusadora (?) dele, Elena - ainda os atormentam.

Ainda que previsível, nem tudo é ruim nesse longa. Por exemplo, o clímax dramático é bastante plausível, pois, hipoteticamente, vários casais poderiam passar (e efetivamente passam) por algo semelhante. Igualmente, a cena com a arquiteta é realista, explorando a ideia de relacionamento afetivo enquanto propriedade: embora Anastasia não seja ciumenta, não vê problema algum em deixar claro que Christian é seu. O longa até parece tentar demonstrar alguma substância, como quando o casal conversa por mensagem de celular mesmo estando um ao lado do outro - todavia, nesse caso não se trata de uma crítica ao uso excessivo dos celulares, já que a cena é esparsa, o caso é, na verdade, de uma piada mal elaborada. Nos minutos finais, a sequência em que toca "Love Me Like You Do" (cantada pela Ellie Goulding) é ótima - mas apenas pela música, é claro. Afinal, o nível ótimo jamais é alcançado por mérito do filme em si.

A direção de James Foley é fraca, como, aliás, já tinha sido em "Cinquenta Tons Mais Escuros". O trabalho limitado fica evidente logo no prólogo, que é a cena de casamento de Ana e Christian, uma cena artificial e equivocadamente rápida, sem elaboração, parecendo apenas cumprir protocolo. Ora, se a ideia era mostrar que eles estão casados, seria melhor colocá-los já na lua-de-mel, para, em seguida, a secretária dele fazer a menção (que efetivamente faz) de atrapalhar esse período (referindo-se expressamente à lua-de-mel). Outro equívoco foi deixar o ator responsável pelas falas de Christian (dizer que ele interpreta o papel seria exagero) com barba visível, para indicar que ele está brabo, em um momento em que aparece furioso no trabalho de Ana. Trata-se de uma estratégia pífia e já abandonada pelos diretores, chegando a ser risível uma abordagem dessas - pior ainda, deixando isso claro para o público. As poucas cenas de ação e tensão não funcionam, como em uma cena de fuga em alta velocidade, cuja adrenalina é artificial e o CGI nas janelas do carro é amador. Sequer a trilha sonora de Danny Elfman tem o mesmo encanto, quando comparada à do primeiro filme. Outro problema técnico é a montagem mal feita, como ocorre em uma sequência que alterna entre o quarto vermelho e o trabalho dela, estragando ainda mais duas cenas que já eram de baixa qualidade. Antes disso, a elipse para o quarto vermelho é tão brusca que deixa inegável que o filme todo é pretexto para as cenas de soft porn, essas sim prioritárias.

E não poderia ser diferente em se tratando de um roteiro pavoroso como esse. Tudo começa com o nome, já que o que Anastasia exerce não é liberdade: como ela mesma diz, ela desafia Christian simplesmente porque pode, como faz na praia, provocando-o, ou seja, isso não é exercício da liberdade pela própria vontade, mas vontade de provocar o marido. Posteriormente, ela faz algo diferente do que ele orienta, ali sim por vontade própria. No entanto, enquanto ela oscila em relação à liberdade (na prática, quase sempre fazendo o que ele quer, como ao adotar o patronímico Grey), ele faz o que quer e quando quer (como ao entrar na sala dela enquanto ela está em uma reunião). A liberdade é válida apenas para ele? Ideologicamente, a ideia transmitida é a de que a mulher deve ser submissa em todos os sentidos? Quase sempre, o que ela faz é mediante a aprovação dele (trabalhar, inclusive), sem reciprocidade. O nome certo do filme deveria ser "Cinquenta Tons de Submissão".

Além dessas premissas, a construção do roteiro também é ruim, com um vilão unidimensional, bem como inverossimilhanças e conveniências inaceitáveis. Como pode um casal falar sobre filhos apenas depois do casamento? Como pode um homem de negócios ter tanto tempo livre para abandonar as obrigações do trabalho e se dedicar exclusivamente à esposa? Coincidentemente, justo quando os seguranças são despistados pelo casal é que aparece um vilão para perseguir os dois. Pior, Ana quer ser encontrada pelo vilão: em um dia, com o marido, é perseguida; no dia seguinte, sem ele, sai à noite, sem avisá-lo, voltando tarde para casa. Em total desconhecimento do conceito de Arma de Chekov, alguns elementos são inseridos sem propósito narrativo, não agregando à trama. Por exemplo, quando Ana está abalada e conversa com a amiga por telefone, em tese, isso deveria ser utilizado novamente de alguma forma - é o que um bom roteirista faria, não foi esse o caso de "Cinquenta Tons de Liberdade". Da mesma forma, a subtrama do casal formado pelo irmão de Christian e a amiga de Ana é inútil, já que mal desenvolvida, com uma solução totalmente apressada, como se tivesse virado um problema - na prática, é um subplot com começo, meio e fim apartado do plot, cuja abordagem en passant é insatisfatória. Provavelmente sua inserção existe para preencher a ausência de texto, já que a proporção do longa é de dois minutos de pseudo-narrativa para cinco de sexo - tanto é assim que o primeiro acontecimento efetivo (o aparecimento do vilão) demora muito para se deflagrar. É um filme de uma hora e quarenta e seis minutos que poderia ser feito em quinze, sem prejuízo algum no produto final, pois não há quase nada para ser contado, logo, não se justifica uma produção inteira (salvo pelas cenas de sexo). É um filme pornográfico que não se assume enquanto tal, faltando-lhe apenas que as relações sexuais sejam explícitas (embora exista nudez).

A incapacidade do elenco não poderia ser deixada de lado. É verdade que Dakota Johnson melhorou quando comparada consigo mesma no primeiro longa: era uma atriz péssima, agora é uma atriz fraca. Afinal, não é possível qualificar como boa uma atriz que não consegue sequer demonstrar surpresa (quando Christian revela ter sido vítima de sabotagem). Mas ao menos ela é uma atriz: Jamie Dornan não pode ao menos ser considerado ator, pois seria uma afronta à profissão. Quando Christian esboça uma reação ciumenta na praia, ainda no início da película, duas conclusões são possíveis: ele não é tão ciumento assim ou o homem responsável pelas falas da personagem não sabe interpretar. Como poderia ser chamado de ator um homem incapaz de demonstrar raiva, uma das emoções mais elementares do ser humano!? As brigas entre Christian e Ana são sempre artificiais porque a fúria que ele apresenta não é nada convincente - e nem é preciso lembrar que o papel não é muito desafiador. Os coadjuvantes são tão irrelevantes que tiveram a felicidade de ter pouco tempo de tela.

"Cinquenta Tons de Liberdade" encerra a franquia talvez um nível abaixo dos seus antecessores, aumentando o sexo e reduzindo o texto. Se os principais envolvidos têm algum talento, é para a erotização desmotivada e eventualmente sem sentido. A equipe está a um passo da pornografia: se assumir enquanto tal seria, inclusive, muito mais digno.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Pantera Negra -- Apresenta pouco, mas representa muito

Provavelmente por faltar ousadia, PANTERA NEGRA é, em síntese, mais um filme comum de super-herói, com a única diferença da representatividade. Em razão desse fator, não é possível afirmar que o longa é desnecessário.

Dando seguimento ao Universo Cinematográfico Marvel (MCU), o filme se passa após os eventos de "Capitão América: Guerra Civil", mais especificamente após a morte de T'Chaka, rei de Wakanda, deixando o trono para seu filho T'Challa. Retornando para a terra natal na companhia da general Okoye e da espiã Nakia, T'Challa será coroado como novo rei. Juntos, os três precisarão encontrar Ulysses Klaue, que tem uma dívida histórica com a nação.

O filme não é desnecessário, mas é um filme tardio: até então, a Marvel tinha produzido 385734731 filmes com super-heróis homens e de padrão físico europeu, todavia nenhum foi protagonizado por uma mulher e/ou uma pessoa negra. Agora, finalmente um menino negro pode se identificar com um super-herói: é a questão da representatividade, já mencionada. Há quem sustente ser isso irrelevante: quase com certeza esse discurso tem como emissor uma pessoa de pele branca, o que significa que teve a oportunidade de, na sua infância, se enxergar como Superman ou Mulher-Maravilha, por exemplo (sim, são exemplos da DC - até porque a Marvel ainda não fez um filme de super-heroína -, mas a ideia continua válida). Hoje, é socialmente benéfico que exista uma variedade maior de super-heróis.

A representatividade se refere tanto ao super-herói negro quanto às coadjuvantes femininas, cuja personalidade forte refuta ao máximo a ultrapassada ideia da donzela indefesa da ficção. As mulheres de Wakanda são bravas guerreiras, cuja autonomia se refere tanto no plano das ideias quanto no das ações. Shuri, irmã de T'Challa, é a responsável pela tecnologia do país, sendo um verdadeiro gênio na tecnologia high tech. Letitia Wright, intérprete da personagem, é eficaz ao dar todo o viés cômico a ela, em especial pelo paradoxo inteligência precoce - mentalidade pueril. Isto é, apesar de Shuri ser muito inteligente, ela continua tendo uma criança em seu interior. É um prato cheio para piadinhas infantis e óbvias - afinal, se não tivesse piadas infantis, não seria um filme Marvel -, como quando ela filma o irmão golpeando o traje. Outro suporte de T'Challa é Nakia, por quem ele é apaixonado. É um papel aquém do talento de Lupita Nyong'o, mas demonstra que ela não foi esquecida após o Oscar. O problema acaba sendo o romance entre T'Challa e Nakia, desenvolvido pavorosamente. Se ela é sua ex-namorada, por que ele "congela" quando a vê? E por que ela é tão relutante em se entregar a ele? Várias especulações podem ser feitas, o que não muda o fato que a película falha ao não explicar o histórico do casal. Das personagens femininas, a general Okoye é a mais interessante: inteligente, racional, corajosa e exímia lutadora, ela é fundamental em diversos momentos. Danai Gurira é uma atriz ainda pouco conhecida, mas, considerando esse trabalho, seu talento é imenso. Cabe a ela atuar nos momentos mais sérios, já que a personagem é mais séria, contudo os momentos mais leves também existem e a atriz se dá igualmente bem. A decepção fica com a Rainha-mãe vivida por Angela Bassett, irrelevante e um pouco frígida (ao menos para uma recém-viúva).

Embora seja plurilocal, grande parte dos acontecimentos do longa ocorre em Wakanda, país cuja mística prometida no MCU foi explorada verticalmente. A ideia de patriotismo recebe muita ênfase, pois logo no início uma traição é censurada. É também nesse raciocínio que duas personagens apresentam o debate ideológico da diferença entre salvar o país e servir o país: no primeiro caso, regras preestabelecidas se tornam inócuas ante um objetivo maior que é o bem da nação; no segundo, há que se obedecer cegamente a ordem instaurada, ainda que haja uma discordância íntima. Isso faz sentido, em se tratando de um filme com forte viés político, no qual até mesmo o vilão consegue proferir um brevíssimo discurso sobre colonialismo. É também o vilão que defende de maneira aguerrida a ideia segundo a qual a solução para o fim da opressão seria municiar os oprimidos - evidentemente, uma ideia deveras ingênua. A matéria tem relação com outra, um pouco mais aprofundada, referente à ajuda aos refugiados, temática bastante contemporânea em política internacional. As personagens ficam divididas: algumas acreditam que Wakanda deveria "se abrir para o mundo", ou seja, compartilhar sua tecnologia e seus conhecimentos, outras são contrárias - e uma das personagens oscila (W'Kabi incoerentemente muda de opinião). Trata-se, enfim, de um debate raso sobre (neo)globalização e fraternidade internacional, o que é novidade no MCU. Melhor que seja raso do que ausente: a maioria dos filmes do MCU tinha enfoque no individual.

A exibição de Wakanda é um traço marcante da direção de Ryan Coogler, que vem crescendo na carreira, mas ainda tem em "Fruitvale Station" sua melhor produção. "Pantera Negra" tem um subuniverso diegético bem completo em relação a Wakanda ("subuniverso" porque inserido no MCU), com  uma identidade marcante, envolvendo, por exemplo, idioma próprio. Um dos melhores atributos do longa é certamente seu rico design de produção, envolvendo maquiagem e figurinos criativos - cuja criatividade, aliás, é plausível e não se desloca das raízes africanas -, bem como interessantes adereços (colares, alargadores etc.). Também a trilha sonora tem suas veias nos ritmos africanos, com batidas de tambor bem típicas, sem deixar de lado músicas mais contemporâneas e coerentes com a película, como algumas de hip hop. O 3D é bom (merecem atenção os planos em que a nave aparece nas cataratas, dando uma noção realista de profundidade) e o visual é belo, como os planos abertos e gerais exibindo a beleza natural do local. Contudo, o exagero de CGI dá uma artificialidade decepcionante à película, que parece ter sido filmada inteira em chroma key (as cenas no plano ancestral, por exemplo, são vergonhosas para um filme desse calibre). Outro problema é que Coogler prioriza planos fechados nas lutas, prejudicando a ação e a visibilidade dos golpes.

Do ponto de vista narratológico, o roteiro é bastante previsível, mas bem encaixado, sem excessos substanciais ou furos gritantes (até Everett Ross, papel reprisado por Martin Freeman, tem uma função). Outra novidade é que finalmente aparecem vilões mais razoáveis no MCU (ainda que muito inferiores a Loki, que é soberano nessa área): Andy Serkis faz de Ulysses Klaue um vilão mais padrão, dentro da proposta; o Erik Killmonger de Michael B. Jordan é um antagonista coerente, uma máquina de vingança cujo ímpeto leva à irracionalidade (Chadwick Boseman é também satisfatório). O plot, como não poderia deixar de ser, prioriza T'Challa, mas abre espaço para o arco dramático de Erik e, em determinado momento, permite que Nakia assuma a condução da narrativa, sem nenhuma queda de nível. Por outro lado, o texto é inverossímil em diversas partes, ainda que considerada a suspensão da descrença. Exemplos não faltam: em Wakanda tudo é mais evoluído (Okoye chega a afirmar que armas de fogo são primitivas, como se lanças fossem armas progressistas), contudo a diplomacia é desconhecida para o local, em que se respeitam rituais violentos, em detrimento de uma lógica monárquica autêntica (se eles são tão evoluídos, não seria melhor a disputa pelo poder de uma forma menos rústica?), e onde a vingança é priorizada em relação a um julgamento justo; o vilão, durante uma fuga, pede para um de seus capangas colocar uma música no rádio, como se essa fosse sua preocupação prioritária; e, como já mencionado, W'Kabi, total e repentinamente, muda seu ponto de vista sobre a contribuição de Wakanda na ordem mundial. <<SPOILER ALERT: nesse último caso, a solução óbvia para a inverossimilhança é que W'Kabi se sentia em dívida (uma dívida de gratidão) com Erik, o que fez com que ele adotasse o posicionamento do antagonista. Contudo, isso poderia torná-lo neutro ou mesmo favorável, mas não teria o condão de mudá-lo tanto, tornando-o defensor ferrenho do entendimento oposto ao anterior (do qual também era defensor ferrenho). Ou seja, não faz sentido. FIM DO SPOILER>> Algumas inverossimilhanças existem a pretexto das piadas (como quando o vilão exige uma música para a cena), o que é ainda pior, pois, a prioridade deveria ser um texto consistente.

As duas cenas pós-créditos elucidam um pouco o que é "Pantera Negra" enquanto filme. A primeira é continuação do desfecho - que, ressalte-se, é bom -, portanto acaba por ser redundante, com a diferença que é mais explícita. A segunda é um pouco melhor, mas sem muita relevância. São cenas que pouco agregam e que nem precisam ser vistas, faltando ousadia para anunciar algo mais chamativo (como ocorre em "Thor: Ragnarok"). Apesar de politicamente engajado, o longa não tem potencial para fazer história pelo que apresenta, mas sim pelo que representa.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Lady Bird - A Hora de Voar -- Singelo e Preciso


Hoje o Recanto do Cinéfilo tem a honra de publicar um texto do amigo e colega Robinson Samulak Alves, que nos brinda mais uma vez aqui com a sua participação como crítico convidadoDessa vez, com a crítica de LADY BIRD - A HORA DE VOAR, filme que estreia hoje nos cinemas e que foi indicado em 5 categorias do Oscar (Filme, Direção, Atriz, Atriz Coadjuvante e Roteiro Original). Aqui vai!
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Abordar a realidade não é tarefa fácil no cinema. O filme precisa ser cativante o suficiente para conquistar o público, mas não pode se distanciar do real. Não há como se apegar na ficção. Assim, o roteiro tem que tocar em pontos importantes e a direção tem que contar a história de forma atrativa. “Lady Bird” é um exemplo bem sucedido de como unir os dois elementos, apesar de não oferecer nada genuinamente novo.

O longa acompanha a jovem Christine “Lady Bird” McPherson (Saoirse Ronan). No limiar entre a adolescência e a vida adulta, e cansada da vida em Sacramento, sonha em estudar numa grande universidade. Isso, porém, só intensifica os conflitos com sua mãe, Marion (Laurie Metcalf). Conforme o tempo passa e o momento decisivo se aproxima, a jovem lida com tudo o que pode acontecer com uma garota de 17 anos.

Há uma sensibilidade poética que acompanha a obra e a (de)limita. Greta Gerwig sabe o que quer e não faz rodeios. Ao mesmo tempo, a diretora consegue manter a execução do filme sem pressa, desenvolve as personagens, cada uma no seu tempo, pois sabe que depende disso para transmitir o realismo necessário. Assim, resta ao público se deixar levar através das camadas (e são muitas) do filme. E aqui, a forma como isso acontece é a verdadeira chave do sucesso.

Saoirse Ronan é tão dona de sua personagem, quanto Lady Bird é de Christine. A atriz transmite dúvidas, mas tenta se mostrar segura, afinal é uma jovem prestes a completar dezoito anos. É o limiar entre a segurança do ninho (afinal ela é a Lady Bird) e a incerteza do futuro. É o momento em que se abandona o carinho dos pais para receber tapas da sociedade. Mas assim como qualquer pessoa nesta condição, a insegurança de Christine é ofuscada pela sua arrogância juvenil.

E enquanto a protagonista é revelada (sempre aos poucos, insisto), outras personagens cruzam sua vida. Os primeiros relacionamentos - e a frustração do primeiro eterno amor que chega ao fim precocemente - que passam a assumir cada vez mais relevância na vida da garota, disposta a negar a si mesma para se sentir parte de algo maior. Mas, enquanto ela vive a efemeridade que sua classe social não lhe permite, seu desenvolvimento atinge novos patamares.

Mais interessante é a sutileza adotada pelo roteiro para não planificar a própria história. Os pais de Christine (pois apesar deles a aceitarem como Lady Bird, este foi o nome por eles escolhido, e o roteiro é objetivo nesse sentido) configuram um interessante espectro de desenvolvimento. Larry (Tracy Letts) é gentil e carinhoso, sabe que pode estar prejudicando a filha pelos excessos (de carinho, não material), mas se vê impotente em diversos níveis. Todavia, Marion vem no sentido contrário: também sente que pode estar prejudicando sua filha, mas pelo excessivo rigor. Não há maldade em nenhum em seus atos (embora alguns soem de forma cruel), mas ela sabe dos limites da família e se mostra a única verdadeiramente decidida a enfrentar as consequências pela família.

Talvez falte apenas um pouco mais de originalidade no roteiro, que se mantém sempre tão constante que, embora não incomode por entregar mais do mesmo, torna-se suscetível ao esquecimento - algo condenável num meio tão disputado de atenção e que clama pela novidade.

Em tempos difíceis, filmes como “Lady Bird” são sempre bem vindos. É difícil não se identificar com alguma das personagens neste conto poético da vida banal. É um breve respiro de sanidade e leveza, mas é forte o suficiente para causar um mínimo de incômodo. Se não fosse, não seria tão real.

Mudbound - Lágrimas Sobre o Mississippi -- Cinema com Rapadura

Indicado ao Oscar em 3 categorias (Atriz Coadjuvante, Canção Original e Fotografia), MUDBOUND - LÁGRIMAS SOBRE O MISSISSIPPI estreia hoje nos cinemas brasileiros. Minha crítica, publicada no Cinema com Rapadura, já pode ser lida: basta clicar aqui.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Eu, Tonya -- Multidimensional, mas efêmero

O marido foi o responsável? Ou foi ela mesma? Ela sabia o que seria feito? Embora EU, TONYA não seja exatamente um filme que se proponha a solucionar uma investigação mal resolvida (pelo menos não parece ser esse o seu objetivo prioritário), sua grande virtude é a multidimensionalidade, algo um tanto raro nas cinebiografias.

A protagonista do longa é a patinadora artística Tonya Harding, que precocemente demonstra potencial para o esporte do gelo, o que faz com que sua mãe a leve para iniciar aulas desde os quatro anos. O longa acompanha então o que ela alcança e o que sofre na carreira, o que aguenta com a violenta mãe e o que aceita se submeter com o insano marido [o que não é spoiler, já que tudo isso é anunciado nos primeiros minutos].

Na esteira da hibridização dos gêneros, o filme acaba sendo um docudrama cômico: possui um tom documentarista ao se basear em fatos reais, inclusive simulando depoimentos dados por envolvidos (na verdade, são os atores, além disso, o recurso tem mais uma utilidade, que ainda será mencionada); o fio condutor da trama é inegavelmente dramático, pois a vida de Tonya é constituída de altos e baixos tanto na carreira quanto no relacionamento afetivo; existe, ainda, um alívio cômico, que é o sarcasmo ácido da mãe da protagonista, uma personagem deveras singular.

Provavelmente, de todas as personagens do longa, a mais fascinante é LaVona Harding, mãe de Tonya. Sua conduta pode não ser elogiável (e de fato não é), todavia, é a que tem a personalidade mais intrigante. Se é proibido fumar no gelo, LaVona fuma "discretamente", ou seja, continua fumando. Se ouve um não, insiste até convencer a outra pessoa do contrário. Se existem crianças no recinto, isso não a impede de falar palavras de baixo calão, pois ela é quem é e como é não importa o local ou a companhia. Se o relacionamento com a filha é conturbado é porque esta é frágil em demasia, pois LaVona considera tê-la preparado para ser a melhor. Realmente, a cobrança começou desde muito cedo, ensinando que colega é inimiga. Seus métodos heterodoxos é que eram problemáticos: se Tonya perdia uma competição era por falta de esforço, isto é, uma vergonha. Sua cobrança era absurda, física e psicologicamente torturante e sem nenhum afeto: era uma mãe que enxergava a filha como máquina, não como um ser humano. Era exigente em excesso porque investia em Tonya, o que fazia com que ela se visse legítima a exigir o retorno, que precisava ser certo. Em última análise, é o arquétipo da mãe (ou pai) que cobra nada menos que excelência dos filhos nos quais investem. A mãe (ou pai) que faz isso não vai se identificar e vai pensar que o filme monta uma hipérbole - contudo, não deixa de ser uma crítica velada à criação dos filhos, muitas vezes tão fiel à máxima maquiavelina que se torna desumana. A interpretação soberba de Allison Janney torna claro o limite entre o papel de uma mãe cruelmente rígida e a inverossimilhança: se fosse além, a atriz recairia no segundo caso. Mas não, Janney acerta o tom, transmitindo a presunção de LaVona com maestria, fazendo com que seu sarcasmo seja sempre realista.

Apesar de ser a protagonista, Tonya não chama tanto a atenção, pelo fato de ser mais comum (isto é, não é tão "singular", como dito, quanto a sua mãe). Quando criança, é vivida pela pequena Mckenna Grace, que já tinha mostrado seu carisma em "Um Laço de Amor". Sua Tonya é um prodígio, apaixonada pela patinação artística no gelo, que só fala isso, segundo a mãe. Estranhamente, isso não chega a aparecer no filme, o que passa a impressão de que é a mãe que força a filha a se dedicar (ao menos naquela medida) ao esporte. Tanto é assim que, para seu futuro, ela não planeja ser apenas patinadora profissional - ou seja, não é a obsessão que LaVona fala. (seria uma falha do roteiro?). De todo modo, é a versão adulta da protagonista que realmente interessa, mais pela atriz que a interpreta do que pela personalidade da personagem. Isso porque a personalidade de Tonya é comum, de uma mulher que admite não ser muito feminina (a ponto de mexer no motor de um carro e limpar as mãos na própria calça), que convive com a violência desde criança e também suporta agressões desde criança e que (principalmente) revela uma enorme carência afetiva. Quando criança e na adolescência, é agredida (física e verbalmente) pela mãe; quando cresce, passa pelo mesmo com aquele que se torna seu marido, Jeff (porém, muitas vezes revidando). A diferença é que, com Jeff, ela viveu bons momentos. A atriz que dá vida à protagonista é Margot Robbie, certamente no melhor papel da sua carreira, o que não é difícil, já que, até agora, ela não fez nenhum trabalho que mereça grande reconhecimento. Entre atuações ruins (como em "Golpe Duplo") e no máximo medíocres (como em "O Lobo de Wall Street") - sua Arlequina de "Esquadrão Suicida" é um overacting fácil para qualquer atriz bem caracterizada -, Robbie está muito bem no papel de Tonya, mas talvez superestimada por alguns, que a colocam no mesmo nível de Sally Hawkins e Frances McDormand, destaques maiores da temporada. A cena em que a atriz se maquia em frente ao espelho forçando um sorriso enquanto sua emoção é a tristeza é prova da sua boa interpretação, fato que não se pode negar, o que não significa, por outro lado, que foi a melhor atriz da temporada, porque não foi.

As outras personagens não chamam a atenção. Sebastian Stan, mais conhecido como Soldado Invernal, atua como Jeff, marido de Tonya, encarando bem a insanidade que o papel exige em razão do incompreensível amor nutrido por ela. O que eles têm é uma relação complexa que só faz sentido para eles. Como suposto alívio cômico, Paul Walter Hauser interpreta Shawn, o guarda-costas de Tonya, que serve para o papel do pateta clichê que as dramédias adoram. Ao que parece, o retrato no longa foi fidedigno (quando comparado ao Shawn da vida real, que aparece durante os créditos finais), o que não muda o fato que faz um humor estúpido e ultrapassado.

Como já dito, Margot Robbie chegou, no máximo, ao nível medíocre na carreira, encontrando em "Eu, Tonya" a oportunidade para subir vários degraus. Ironicamente, algo semelhante ocorre com Craig Gillespie: o diretor faz desse longa o melhor da sua carreira (que já conta com dez anos). Seu primeiro filme foi "Em Pé de Guerra", com um elenco qualificado (Billy Bob Thornton, Seann William Scott e Susan Sarandon), mas cujo resultado final foi sofrível. Seguiram-se a ele obras ruins até chegar ao frágil "Horas Decisivas", que era o melhor até 2016. Nesse sentido, o que Gillespie faz em 2017 é notável, transformando uma cinebiografia simples em um filme que consegue, à sua maneira, chamar a atenção. Mesmo as cenas no gelo são bem filmadas, com um visual belo e sem abuso de slow motion (apenas em um momento histórico).

O uso variado, na película, de recursos de linguagem cinematográfica, a tornam um fenômeno formidável e muito mais dinâmico. Já foi mencionado que as personagens aparecem nos minutos iniciais, como se fossem entrevistadas (ou dando depoimentos), simulando um documentário. A ideia é dar à trama pontos de vista diferentes, de modo que Tonya, Jeff, LaVona, Diane (professora de Tonya, interpretada por Julianne Nicholson) e até mesmo um repórter, ou seja, colocando pessoas que participaram dos fatos com maior ou menor proximidade (em especial o do clímax, que teve cobertura midiática). É assim que as personagens aparecem sozinhas falando diretamente para a câmera, o que não deixa de ser uma quebra da quarta parede. O mais impressionante é que o longa tem a ousadia de mesclar narração voice over com quebra da quarta parede pela mesma personagem: enquanto a ação ocorre, ouve-se a  voz (narração voice over) de uma personagem envolvida (relatando algo), personagem que, repentinamente, para de participar da cena, com o fim de falar diretamente com o público, olhando para a câmera (quebra da quarta parede). Em determinado momento, as técnicas se cruzam: uma personagem aparece dando um depoimento, volta para a cena comum, com narração voice over, que é cortada para uma quebra da quarta parede por uma das personagens. Não é um recurso completamente novo, mas está longe de ser usual, é subversivo e controverso. Ou seja, é positivo na sétima arte. Chega a ser ironizado pelo próprio filme, como quando Tonya corta o depoimento alheio ou quando LaVona reclama que seu arco dramático é esquecido pelo roteiro.

Além do que já foi mencionado, há um design de produção acertado na película, o que não é fácil quando se trata de uma época não tão distante. A maquiagem também é boa, em especial para envelhecer os artistas, sem soar artificial em demasia (exceto no pescoço da versão envelhecida de Tonya, com rugas escancaradamente falsas colocadas em Robbie). A trilha sonora é quase uma personagem a mais, constantemente dialogando com os acontecimentos. Por exemplo: quando LaVona aparece pela primeira vez, toca "Devil Woman", de Cliff Richard; no primeiro beijo entre Tonya e Jeff, toca "Romeo and Juliet", de Dire Straits; e quando o casal tem uma de suas brigas mais brutas, a música é "How Can You Mend a Broken Heart", de Chris Stills. Isso sem deixar de lado sons instrumentais de Peter Nashel (como "A Fair Shot" e "Tonya Suite") e músicas como "The Passenger", de Siouxsie & The Banshees (um pop-rock), "Barracuda", da banda Heart (um rock mais pesado), "Dream a Little Dream of Me", de Doris Day feat. Paul Weston (um clássico do jazz que faz um trocadilho simbólico no plot) e "Sleeping Bag", de ZZ Top (música bem agitada para Tonya se apresentar).

A única ressalva relevante em relação à obra é que lhe falta transbordar a própria história. Ainda que trate sobre criação dos filhos e de violência doméstica, considerando a dedicação extraordinária da patinadora (a verdadeira) ao esporte, há que se honrar essa dedicação, concluindo-se que o mote temático da película é uma crítica ao american dream. Desenvolver essa ideia demandaria revelações do enredo e potenciais spoilers, logo, melhor não prosseguir. Basta dizer que, a despeito da multidimensionalidade mencionada no primeiro capítulo, isto é, apesar da boa execução técnica, o filme é um entretenimento fatalmente efêmero, não tendo o condão de deixar o espectador refletindo sobre nada que é lá retratado. Diverte, mas morre quando acaba a sua duração.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

O Sacrifício do Cervo Sagrado -- Menos provocativa

Faltam cineastas como Yórgos Lánthimos na indústria cinematográfica. Poucos têm a sua sagacidade e a sua audácia para tratar de temas complexos e que a sociedade, em geral, não quer enfrentar. O SACRIFÍCIO DO CERVO SAGRADO tem a marca do aclamado diretor grego, mas, no roteiro, Lánthimos deixou a desejar.

No longa, Steven é um cardiologista conceituado, casado com a oftalmologista Anna, com quem tem dois filhos, Kim e Bob. Há algum tempo, Steven mantém contato com Martin, um adolescente cujo pai morreu em uma cirurgia conduzida por ele. Os dois desenvolvem uma relação quase paternal, aumentando gradualmente a proximidade. Porém, algo estranho parece estar prestes a acontecer, o que faz com que Steven tente afastar Martin do convívio da sua família - em um momento, contudo, que pode ser tardio.

É na direção que o longa tem suas maiores virtudes. A mise en scène de Lánthimos é sempre bem pensada e sugestiva: por exemplo, na companhia de Steven, caminhando, o adolescente toma um sorvete, enquanto o médico fuma um cigarro, o que aponta Martin como um adolescente comum, ainda mais próximo da infância que da idade adulta, contudo, na casa de Steven, na companhia de seus filhos (e sem seu "padrinho"), o jovem é quem fuma um cigarro, adotando uma postura muito diferente. Na mesma cena, o texto explicita o seu corpo enquanto um corpo de homem jovem, deixando claro que Martin é bem maduro. Pode parecer que o objetivo é seduzir Kim, filha de Steven - e isso tem fundamento -, mas, na verdade, serve como ponto de virada para afastar a visão angelical de Martin: o garoto é verdadeiramente macabro! A interpretação levemente enigmática de Barry Keoghan, transmitindo uma falsa indiferença, é fundamental para gerar a desconfiança em relação àquele que se confirma como antagonista.

E na verdade é previsível que algo ruim vai acontecer e que Martin não é o bom garoto que parece: só não se sabe o que acontecerá, tampouco as proporções. Com o andar da narrativa, o público fica com a sensação de que algo errado está acontecendo e que alguma tragédia vai acontecer para Steven em razão de Martin, só não sabendo os pormenores. E isso não é erro narrativo, mas uma inteligente criação de atmosfera. Mesmo quando Steven dá um presente para Martin, por exemplo, algo parece errado. A filmagem em planos gerais e abertos nos momentos iniciais induz que eles não estão tão próximos quanto pode parecer. Entretanto, é certamente a trilha sonora que dita o tom da película: ela nunca é agradável, mas combina perfeitamente com o filme e seu ritmo. Quando acontece o principal plot point, nesse sentido, ela fica bizarra e incômoda, assim como a própria narrativa. Na mencionada cena do presente, a música passa uma sensação de suspense e tensão, não de alegria.

Nicole Kidman e Colin Farrell vivem, respectivamente, Anna e Steven, um casal cuja paixão vai esfriando, embora inicie com conteúdo muito mais carnal que afetivo. Lánthimos deve ter orientado o elenco a interpretar seus papéis de maneira fria, pois, à exceção da dupla que interpreta (muito bem, diga-se de passagem) os filhos do casal, todos atuam dessa forma. Kidman mantém Anna como uma mulher passiva, prova disso é que demora para agir em relação aos fatos que agitam a trama. Porém, quando ela age, a personagem ganha um objetivo, aparecendo mais e sua personalidade ganha contornos mais completos. O equívoco é que, enquanto mãe, ela parece fria demais na primeira metade do longa. Farrel repete a parceria com Lánthimos, que deu certo em "O Lagosta" (que é muito superior, tendo em comum, além do protagonista, o realismo fantástico ao fundo), desta vez com uma falta de entusiasmo em relação a tudo, raras vezes apresentando emoções mais fortes - como ao se irritar quando o filho se recusa a se alimentar. O diretor expõe essa ideia ao filmar planos longos em que Steven caminha nos corredores do hospital, acompanhando-o de costas com a câmera, por cima (no alto) e com certa distância, reafirmando justamente o distanciamento da personagem. Contudo, quando o ator é filmado em primeiro plano, com semblante sério, é visível que está refletindo - ou seja, ele não fica despido de emoções.

<< SPOILER ALERT!! Justica versus vingança, de novo? Esse assunto já foi retratado inúmeras vezes na sétima arte e é decepcionante que um cineasta criativo como Lánthimos recorra a um clichê como esse (ainda que em seus moldes heterodoxos). Não se trata de avaliar outros aspectos, mas exclusivamente o script, chegando a uma conclusão inevitável: o roteiro não é nada original. No cerne da trama, a película se apropria do plot de "A Escolha de Sofia", numa versão contemporânea, ao invés de histórica. Ou seja, no fundo, é uma cópia do clássico protagonizado por Meryl Streep, com viés mais sombrio e (bem) menos realista. FIM DO SPOILER >>

Com simbolismos bem pensados no visual, o diretor grego entrega uma produção que não pode ser qualificada como ruim. Na cena final (e isso não é spoiler), o plano-detalhe da batata frita, alimento do qual Martin gosta muito, recebendo ketchup em cima (alusão a sangue, violência etc. no cinema), tem-se um exemplo do apuro metafórico do longa. Trata-se de uma obra tensa, intensa, desconfortável e que chega a dar raiva. É perturbadora, mas um pouco vazia ao final, inclusive menos provocativa e menos ácida que outras da filmografia de Lánthimos. Não é o ponto alto de sua carreira.

Lady Bird - A Hora de Voar -- Cinema com Rapadura

Estreia essa semana nos cinemas brasileiros um aprazível conto feminino de passagem à vida adulta chamado LADY BIRD - A HORA DE VOAR. Confira, no Cinema com Rapadura, a minha crítica desse filme (clique aqui para ler), indicado em cinco categorias do Oscar, incluindo Melhor Filme.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Três Anúncios Para um Crime -- Oscar bait de qualidade

"Oscar bait" é a expressão utilizada para designar filmes idealizados para conseguir indicações no Oscar e, preferivelmente, vencer nas categorias indicadas, pois quem trabalha na indústria já sabe as características mais atrativas para a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood (lembrando que bait significa isca, em inglês). Um filme Oscar bait, em síntese, é um filme pensado para se dar bem na premiação mais badalada na indústria cinematográfica. O grande exemplo da temporada é TRÊS ANÚNCIOS PARA UM CRIME, indicado em sete categorias - Melhor Filme, Melhor Atriz (Frances McDormand), Melhor Ator Coadjuvante (Woody Harrelson e Sam Rockwell), Melhor Roteiro Original, Melhor Montagem e Melhor Trilha Sonora Original. E o filme é tudo isso?

Antes de falar do filme em si, prosseguindo nessa ótica de Oscar bait, há que se mencionar que o fato de o longa ser Oscar bait não é ontologicamente ruim, mas axiologicamente questionável. Em outras palavras, embora, em princípio, fazer um filme pensando em ganhar os principais prêmios da área não seja negativo em si mesmo - afinal, em tese, a Academia premia os filmes de qualidade, então, ao agradar a Academia, a produção deve ter qualidade (embora a teoria nem sempre corresponda à prática) -, não é exatamente elogiável, do ponto de vista artístico, produzir uma obra pensando em premiações. Em que pese não se poder afirmar peremptoriamente um escopo da arte, certamente receber prêmios não o é - isso pode ser consequência, não objetivo. É por isso que uma história sobre uma mulher valente e sofrida, que enfrenta o mundo sozinha, se preciso for, para fazer justiça após a morte da sua filha, é um truque barato para conseguir a reverência da Academia. Artisticamente, não é louvável ir pelo caminho que todos sabem que vai dar certo, sem inovações, sem subversões, sem se filiar a um gênero, sem polêmicas, sem riscos. Com um elenco afinadíssimo e um diretor minimamente competente, era óbvio que esse filme seria do agrado dos votantes do Oscar. E é por isso que se torna favorito na categoria de Melhor Filme, em especial no momento de empoderamento feminino - e nem é preciso dizer que as questões político-ideológicas preponderam sobre a qualidade em si na competição. O filme é bom, mas não é extraordinário, principalmente por não sair da zona de conforto da grande maioria, mesmo que seja um drama pesado (justamente o que a Academia adora!).

Pois bem. Passadas essas premissas, o longa é protagonizado por Mildred Hayes, uma mulher que, indignada com a negligência policial em relação ao homicídio hediondo de sua filha, aluga três outdoors em uma estrada pouco utilizada, para chamar a atenção sobre o caso. Nos outdoors, ela relata detalhes do caso e expõe o delegado Willoughby, enquanto responsável pela ineficaz investigação policial. O filme então prossegue narrando as repercussões da publicidade na cidade e, em especial, para Mildred, para o delegado e para Jason, policial  de conduta nada elogiável apadrinhado pelo delegado.

Cabe frisar: o filme é muito bom, com um argumento instigante e um plot que revela suas camadas aos poucos. Trata-se de um drama pesado, pois nada teria acontecido se não houvesse uma morte. Porém, existe a preocupação em colocar um alívio cômico, certamente um dos pontos altos da película, monopolizado por uma personagem: Jason Dixon, vivido brilhantemente por Sam Rockwell, tem uma personalidade bastante peculiar, com um humor curioso. É um papel difícil, pois a comicidade precisa ser verossímil mesmo nos momentos tensos, como quando Jason se expõe, revelando-se um verdadeiro poço de discriminação. É um pouco paradoxal um policial torturador de negros colocar "Chiquitita", do ABBA, em sua playlist, mas é assim que ele é. Rockwell dá um show de interpretação, sendo genuinamente engraçado, sem ser hilário, e ainda assim convincente. Sua interação com Sandy Martin, que faz a mãe de Jason, é uma atração à parte.

Nesse sentido, a grande força do roteiro indubitavelmente reside em suas personagens, em especial, é claro, na sua protagonista. Mildred Hayes é uma mulher sofrida, ela já tem cicatrizes, contudo, vai revelando ter mais do que se sabia, em um processo que não parece terminar. Implacável, não se deixa comover com discursos fáceis e óbvios (como o do padre em sua casa), tampouco com a vulnerabilidade alheia (no caso do anão James e do próprio Willoughby). Frances McDormand atua com ferocidade quase assustadora, pois Mildred reúne bravura e energia norteadas pela máxima maquiavelina. É uma interpretação que impressiona pela intrepidez, não tem suavidade simplesmente porque não deve ter. Sua música-tema deveria ser "Rock You Like a Hurricane", porque ela é o furacão em pessoa.

Com inteligência, o roteiro não esquece os coadjuvantes secundários - a expressão pode soar tautológica, mas não é: Mildred é a protagonista, Willoughby e Jason são coadjuvantes, mas existem outros coadjuvantes, de menor relevância, mas que têm seu espaço, ainda que o filme seja claramente dela. Além dos já mencionados, Red (Caleb Landry Jones) é uma das personagens interessantes da película: apesar de ser um dos perseguidos por Jason após os outdoors (já que é o dono da agência de publicidade responsável por eles), demonstra não ter medo do policial, da mesma forma que se vê, adiante, em uma situação irônica em relação a ele. Lucas Hedges é outro que faz uma participação pequena, mas não sem importância, fornecendo mais humanidade ao longa como o outro filho de Mildred.

O filme tem uma trilha sonora bem agradável, com viés country (referência aos westerns, o que também é feito na fotografia). Isso faz sentido, pois, figurativamente, a protagonista atuaria na posição de cowgirl solitária e destemida. No belíssimo prólogo, o que se ouve é uma música lírica em voz feminina, aparecendo os outdoors em meio a uma neblina. São outdoors velhos, meio destruídos e desgastados. Em seguida, de dia, com maior visibilidade, chega Mildred, sozinha: ela dá ré para vê-los bem, rói uma unha e reflete. Fica nítido que está tendo um insight, que é precisamente o argumento da película. O diretor Martin McDonagh é competente na escolha, por exemplo, do visual dos outdoors, utilizando cores que representam luto e sangue, bem como da sua apresentação ao espectador - ao invés de mostrá-los de uma só vez, o faz gradualmente, o que acaba fazendo parte da narrativa, revelando o enredo aos poucos. Ainda assim, no que se refere ao seu trabalho por excelência, o diretor conduz bem o elenco e o filme, mas nada que se compare aos outros grandes da temporada, salvo em um esplendoroso plano-sequência vivido por Red e Jason.

Há algo de ruim em "Três Anúncios Para um Crime"? A resposta forçosamente é afirmativa. Apesar da salutar mensagem altruísta de que a solução dos problemas através do ódio não soluciona verdadeiramente nada e de que o ódio se multiplica, essa mensagem acaba sendo incoerente com o desfecho, que, pior ainda, é morno. Ou seja, ou o filme é contraditório, ou sugere que abraçar o ódio através da violência é algo positivo. Na primeira hipótese, há um grave problema de roteiro; na segunda, a mensagem não é das melhores. Pior: não é esse o calcanhar de Aquiles do longa. Existe nele um grave problema narratológico, que talvez tenha sido um erro do roteiro, talvez da montagem, talvez da direção - para determinar com certeza o setor responsável, apenas acompanhando os bastidores e detalhes da obra, como lendo o roteiro. Consiste na subtrama do delegado Willoughby, um arco dramático pessoal que não tem grande utilidade, exceto enquanto engrenagem narrativa (na verdade, só serve para movimentar Jason mais ao final), mas que atrapalha a narrativa principal. Em certo momento, o filme esquece a trama prioritária (de Mildred), enfocando em demasia no subplot do coadjuvante, que tem outro viés, é muito menos interessante, completamente previsível e lento. Isto é, o coadjuvante vira protagonista e a subtrama vira trama única. Quando o longa retorna para a trama principal e volta para a sua real protagonista é que o espectador pode perceber o quão descolada a película ficou de seu próprio núcleo, deixando seu público disperso e desconcentrado. Em síntese, é um problema de desvio de foco, praticamente criando um curta-metragem dentro do longa.

Muito embora exista quem enxergue "Três Anúncios Para o Crime" uma perfeição cinematográfica, talvez o filme não seja bem isso. É um Oscar bait de qualidade, mas que dificilmente entrará para a história da sétima arte.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

O que te Faz Mais Forte -- Só comove os corações frágeis

Existe algo especial em O QUE TE FAZ MAIS FORTE, algo que o torne diferenciado em relação aos demais dramas baseados em histórias reais? Certamente não. No máximo, a boa atuação do protagonista, o que não justifica uma obra inteira. Ou seja, é mais um filme descartável que arranca dinheiro dos desavisados e lágrimas dos emotivos.

O longa apresenta Jeff Bauman, um homem comum que se torna herói por sobreviver a um atentado terrorista, perdendo a maior parte das suas pernas, enquanto esperava seu amor, Erin, finalizar a Maratona de Boston. A relação de Jeff e Erin é o fio condutor da narrativa, revelando-se deveras frágil, a começar pelo fato de não explicar muito bem a razão de a moça ter terminado três vezes o namoro. Não obstante, ele continua apaixonado e dá várias demonstrações nesse sentido, tanto que a primeira pergunta que faz quando acorda após o evento é se ela está bem. O problema é que, mais adiante, ele acaba fazendo chantagem emocional com ela, o que descaracteriza a naturalidade do relacionamento - sem contar o heroísmo do protagonista.

Outra razão dessa fragilidade é que Tatiana Maslany se mostra uma péssima atriz, ao menos no papel de Erin. É verdade que a personagem não é fácil, pois é difícil expor sentimentos dúbios quando se está cedendo a uma chantagem da pessoa por quem sente tais sentimentos. Na reaproximação, fica a dúvida sobre o que ela sente, não por habilidade da atriz em ser enigmática (bom se fosse por isso!), mas por sua incapacidade dramática. Sua única possível desculpa é que, talvez, o diretor não a soubesse orientar, todavia, a ausência de emoção na cena do acidente comprova sua inabilidade, pois ela é ruim mesmo nas emoções mais intensas. Ironicamente, há um abismo em relação ao ator responsável por interpretar Jeff: ainda que não seja o melhor trabalho de Jake Gyllenhaal, ele já é facilmente considerado um dos melhores de sua geração, extraindo o máximo potencial da produção fajuta. Considerando que é o protagonista, o ator não tem muitas falas no script, pois a personalidade da personagem não é verborrágica, contudo, o que ele faz é utilizar muito as expressões faciais e o olhar para expor as emoções. Não é o melhor trabalho de Gyllenhaal não por falta de esforço seu, mas porque o filme é limitadíssimo, para dizer o mínimo, apesar do seu esforço.

Isso sem contar que, como personagem, Jeff tem seus predicados. Bem humorado a ponto de fazer piadas sobre as próprias pernas - ou melhor, a ausência delas -, é humano o suficiente para ficar bêbado com amigos em razão do estresse do cotidiano (talvez mais vezes do que deveria) e para ser apenas mais um cidadão estadunidense fanático por baseball - aliás, o patriotismo como subtexto, mesmo quando implícito, é marcante na obra (and God bless America). O roteiro fica interessante quando ele refuta a posição de herói que as pessoas imputam a ele, primeiro porque ele não entende a razão de ter se tornado a "força de Boston", segundo porque há um notório exagero (chegam a dizer que ele venceu os terroristas!), e terceiro porque ele simplesmente não quer essa responsabilidade. O ápice do plot reside no conflito entre o que a família quer para ele (em especial sua mãe) e o que ele quer (e precisa para si): o tema é excelente, mas muito mal trabalhado, salvo na cena em que mencionam uma famosa apresentadora. Se melhor abordada a matéria, renderia uma reflexão mais profunda, já que esse conflito pode existir em qualquer relação fraterna - afinal, não raro os pais desejam algo diferente para os filhos do que o que eles mesmos desejam para si. Na película, a mãe (excelente trabalho de Miranda Richardson, em nível equivalente ao de Gyllenhaal) está orgulhosa de seu filho herói, quer que ele seja exposto, como se fosse um objeto. Por outro lado, ele não quer ser colocado nessa situação simplesmente porque o faz lembrar o que aconteceu, o que se torna doloroso.

A despeito de uma ou outra boa ideia, o roteiro é muito ruim: o argumento é clichê, o desenvolvimento é mal conduzido e o desfecho é pavoroso - além de extremamente previsível, é claro. Nas cenas finais, várias premissas cuja precedência não era distante são abandonadas para dar ao longa um final que agradasse o público. Evidentemente, a história real é essa, não se questiona, aqui, a veracidade do conteúdo do desfecho, mas sim a forma repentina e incoerente pela qual ele é retratado.

A direção de David Gordon Green não é exceção à má qualidade geral do longa. Nos pequenos momentos, prevalecem acertos, como ao demonstrar os prejuízos de Jeff após o acidente (da dificuldade em levantar-se da cama até pegar o papel higiênico distante no banheiro) e a ótima cena em que aparece o chefe do protagonista, falando sobre o seguro deste para a sua família. A cena da troca de curativos é provavelmente a melhor da película: com pouca profundidade de campo, Jeff fica em primeiro plano, de modo que o foco fica sempre nele, fazendo expressão de dor, enquanto que, ao fundo, aparecem desfocadas as suas pernas e a equipe médica. No que é principal, o acidente, o diretor erra: a cena do acidente é mal filmada (começa da perspectiva de Jeff, de perto; depois vai para a perspectiva de Erin, que vê de longe, fingindo - já que a atriz é ruim - perplexidade) e os flashes do ocorrido não têm aparência de algo chocante, na verdade, soam como sensacionalistas, em especial pelo uso da trilha sonora. Tudo fica muito piegas, de modo que as imagens de noticiários mostrando o estouro parecem muito mais autênticas.

Ironicamente, o "herói do herói", aquele que salvou Jeff, é o mais subaproveitado (para dizer o mínimo) do filme, tendo poucos minutos, apesar de receber o rótulo mencionado. Com uma singela mensagem segundo a qual ajudar faz bem, já na fase de encerramento do longa, Carlos respalda tudo que a produção planejava: era um projeto rasteiro de comoção dos corações mais frágeis. O espectador atento e experiente não se deixa levar, sabendo que existem produções muito melhores.