FRAGMENTADO é o tipo de filme que depende de spoilers para receber uma análise justa. Considerando que é um filme de três atos de qualidades distintas, e que o terceiro ato trilha um caminho bem diverso dos anteriores, ignorá-lo seria uma visão deveras parcial.
Baseado numa história real, o protagonista do filme é Kevin (James McAvoy), que possui dentro de si, habitando o mesmo corpo, 23 personalidades completamente distintas, alternando entre elas com a força do pensamento, modificando também a composição físico-química de seu organismo. Assim, enquanto algumas personalidades precisam de injeção de insulina em razão de diabetes, outras, não; enquanto algumas precisam de óculos de grau, outras, não - e assim por diante. A isso se segue um relato - também com base real, no mesmo caso - de sequestro de três adolescentes que ele encontra em um estacionamento. Ou seja, em síntese, é um filme de rapto cujas vítimas tentam fugir enquanto conhecem melhor o autor do crime (e suas facetas). Não é original, mas pode render bons momentos.
E de fato rende, pois, do ponto de vista da forma, o longa é ótimo, o que não acontece com o conteúdo, conforme se verá. O grande responsável pela fita é M. Night Shyamalan, diretor e roteirista de "Fragmentado" (no original, "Split"). Shyamalan é responsável por obras-primas como "O Sexto Sentido", "Corpo Fechado" e "Sinais"; filmes bons/razoáveis como "A Vila" e "A Visita"; e lixos cinematográficos como "O Último Mestre do Ar" e "Depois da Terra". Alguns ficam no nível intermediário, como "Fim dos Tempos", que não é lixo, mas também não é bom. "Fragmentado" é mais que razoável, mas não chega perto de "obra-prima". Afinal, se "Split" é obra-prima, "O Sexto-Sentido" é o quê?
Considerando o desnível entre as obras, conclui-se que o diretor sabe fazer bons trabalhos, mas tem uma carreira sem solidez, razão pela qual ainda não se consolidou entre os grandes. Na virada do século, ele era prodígio, agora, inconstante. Não é nenhum gênio, portanto. Em "Split", a direção é muito boa e bastante eficiente. Tratando-se de um suspense (ou terror, a depender do ponto de vista), a atmosfera intrigante é bem montada, deixando o público com dúvidas e curioso em relação ao desfecho. O que Dennis quer? O que significa "a Fera está vindo"? Elas conseguirão se salvar? Logo no prólogo, a câmera se movimenta fora e dentro do carro, manipulando a visão do espectador para que veja apenas um vulto. O diretor de um filme nada mais é que um manipulador do público, logo, Shyamalan acerta nesse e em outros momentos. Infelizmente, o pesado marketing da película não apenas elevou as expectativas (atingidas pela maioria dos cinéfilos, não se pode negar) como também revelou partes ótimas do que apareceria, principalmente do primeiro ato, que é o melhor. O trailer revelou as melhores cenas. No segundo ato, a câmera de Shyamalan permanece ocultando propositalmente parcela do local onde as garotas ficam raptadas: é como se o espectador não pudesse ver muito mais que as vítimas conseguem, ampliando o suspense.
Nesse sentido, a direção de arte é inteligente ao criar um local labiríntico e repleto de detalhes. Cada frame mereceria uma pausa apenas para visualização do que está lá, em especial nos recintos de Kevin (e suas personalidades) onde ninguém mais tem acesso. Mesmo a pobreza dos quartos onde elas ficam é acertada. Também no consultório da dra. Fletcher há acerto: um local bastante impessoal, não muito acolhedor pela seriedade, e repleto de livros que mostram que a profissional estudou muito para estar onde está. A escadaria em formato de espiral no prédio é uma metáfora para a complexidade da mente humana. Seria injusto mencionar a fotografia, que também é ótima, em especial no interior do covil (?) a maior parte das cenas se passa.
Outro que merece elogios é James McAvoy, certamente o que o filme tem de melhor. O trabalho de interpretação de McAvoy é espetacular e digno dos maiores elogios. O ator usa de expressões faciais, entonação e dicção vocais, trejeitos e até timbre de voz para diferenciar as personalidades que habitam o corpo de Kevin. Ou seja, linguagem corporal, voz e expressões faciais são a base para fazer as personagens tão diferentes no mesmo corpo, de sorte que artifícios que ajudam (vestuário, em especial) são dispensáveis quando a narrativa avança. Em outras palavras, no início, o figurino é importante para diferenciar, por exemplo, Dennis de Patrícia, ou Barry de Dennis, porém, quando McAvoy já explorou bastante o conjunto de cada um (a maneira como podem ser reconhecidos para além do figurino), o vestuário é dispensado por circunstâncias do roteiro e, ainda assim, é facilmente possível distinguir Hedwig de Dennis, e assim por diante. Para viver Patricia, basta puxar o casaco sobre os ombros. É assim que McAvoy comprova a competência imensurável da sua atuação: sua face chega a ser suficiente para distinguir as personagens! É a cena em que Dennis revela ser ele, e não Barry, conversando com a dra. Fletcher. Há exagero e maneirismos, é verdade, todavia, revelam-se como um facilitador para a hercúlea tarefa que incumbe ao ator. Também o conteúdo das personalidades é fator diferenciador: Dennis tem fobia por sujeira (limpa a cadeira antes de se sentar, reclama da sujeira do banheiro, manda uma das meninas tirar a blusa porque está com migalhas etc.) e é perfeccionista (arruma objetos da casa da dra. Fletcher, fator este que faz com que ela desconfie não estar conversando com Barry).
O problema reside no roteiro, que contém várias falhas - e é aqui onde os spoilers começam a ser mais intensos. Primeiramente, pela perfídia com o público por fazer uma continuação de uma obra anterior sem anunciá-la como tal, certamente para ter maior bilheteria. Isso não é genial, mas sim desleal. Quem não viu "Kill Bill vol. 1" dificilmente assistirá a "Kill Bill vol. 2" (é um exemplo qualquer) nos cinemas sem ao menos ter visto o primeiro em casa. Porém, se Tarantino tivesse anunciado as obras sem título de continuação e sem marketing de continuação, quem não viu o primeiro e também quem não gostou dele tem mais chances de assistir ao segundo. Ou seja, é uma estratégia de malícia para aumentar a bilheteria. Sagaz, Shyamalan faz disso um plot twist, criando seu próprio universo cinematográfico expandido. Sim, sagaz, porém, desleal. E desleal com quem não viu "Corpo Fechado", pois fica sem entender o final.
Além disso, o plot padece do mesmo mal de "Rua Cloverfield, 10": tem um primeiro e um segundo ato razoavelmente realistas, recaindo em um surrealismo no terceiro que é uma afronta à inteligência humana e, mais uma vez, deslealdade com o público. Não há razão nenhuma para descambar para uma versão exageradamente fictícia, transformando Professor Xavier em Wolverine. Se a Fera fosse um pouco mais forte e mais selvagem, talvez fosse mais aceitável. Mas não, é um super-vilão que vai enfrentar o policial John McClane David Dunn em uma trilogia esquisita. Se a propaganda é de um suspense, fugir para uma ficção científica (?) de segundo escalão é uma afronta à inteligência do espectador. Pior ainda, é ofensivo com as pessoas que possuem T.D.I. (transtorno dissociativo de identidade), que NÃO possuem poderes irreais, mas padecem de uma DOENÇA séria. Francamente, qualquer pessoa com TDI veria a versão de Shyamalan um ultraje!
Mais: qual a razão para a insistência no abuso infantil? O que há de belo nisso? Novamente, a ofensa é clara: a violência contra criança é algo positivo (afinal, salva Casey) e torna a menina igual a Kevin. Ser sexualmente violado quando criança, na visão de "Fragmentado", é algo benéfico! Não é essa a mensagem que o filme passa? Então por que a Fera diz para Casey que "seu coração é puro"? Por que ele não a mata, como fez com as demais, se não por ela ser igual a ele? O abuso infantil é a causa de todos os males psicológicos então? O texto é claro: "os perturbados são os mais evoluídos". A não ser que evolução queira ali significar algo negativo (o que não consta nos dicionários), a conclusão é bastante óbvia. Alegar que essa é a visão de Kevin é um argumento desonesto, pois nada mais é que a mensagem que o filme passa, pois - salvo engano - Kevin está no filme. Em síntese, o filme diz: "parabéns, você foi abusada quando criança, então você é pura, teve algum sofrimento e está salva da morte". Aliás: por que a Fera mata as outras? Por que aquelas meninas? Que garantia tem que elas não sofreram? Quanta inconsistência! Realmente é dito que Dennis observou as garotas para que fossem as vítimas certas. E no caso de Casey? Ela apareceu sem ter sido prevista, ok. Então não deveria ser analisada se era a vítima ideal? Por que as cicatrizes eram garantia de que ela sofreu alguma violência humana? Melhor ainda: qual o sentido de matar as impuras? Maltratá-las não seria uma forma de purificar? Melhor que matar, torturá-las não geraria sofrimento para torná-las pura? Há também uma incoerência: se Dennis/Patrícia/Hedwig (e até Barry) queriam que o caso fosse reconhecido pela comunidade científica, e se a Fera era o argumento irrefutável, o que justifica essa mitologia imbecil de pureza? Como grand finale, a dra. Fletcher, ao invés de salvar a si mesma, prefere deixar um bilhete de salvação para as meninas que estavam trancadas. A psiquiatra comete suicídio? A Fera comeu a sua língua? Isso sem olvidar sua incompetência inigualável, pois, a rigor, ela poderia ter salvado as três se fosse mais racional.
O filme tem muito material bom, porém, é conclusão inafastável de que o roteiro é idiota, inverossímil, ofensivo e inconsistente. "Fragmentado" tem em McAvoy uma atuação inesquecível, em Shyamalan uma direção acertada, mas, no mesmo Shyamalan, um roteiro que se esforça para ser desastroso - no final, consegue.