sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Invasão Zumbi -- Um deleite para quem busca adrenalina

Seria INVASÃO ZUMBI uma mistura de "Madrugada dos Mortos" e "Guerra Mundial Z"? Essas são as suas principais influências, porém, o filme tem bastante autenticidade e merece ser visto até mesmo por quem não tem predileção por filmes que envolvam zumbis. Trata-se de um filme com zumbis, e não um filme de zumbis, razão pela qual seu público-alvo é elastecido. E mais: é uma ficção de ação, e não um terror, nem mesmo um thriller. Assim, quaisquer pré-conceitos com os filmes que tenham zumbis podem ser flexibilizados com este exemplar coreano - afinal, se o Brasil recebe um filme coreano (evidentemente, a do Sul) em seus cinemas, algo especial ele deve ter.

Na trama, um jovem pai recém-divorciado - melhor evitar os nomes complicados como Sung-kyung e Young-suk -, reconhecendo a própria desídia paterna ao priorizar sempre o trabalho em detrimento da família, acata o pedido da filha de uma viagem para Busan - é isso que justifica o nome em inglês, "Train to Busan", muito melhor que o brasileiro reducionista e genérico "Invasão Zumbi". Durante a viagem, pai e filha precisam lidar com uma espécie de vírus que se espalha lá dentro e que transforma as pessoas em zumbis. Também durante a viagem, conhecem outras pessoas que têm o mesmo desafio a enfrentar, sem saber como chegarão ao destino, tampouco se Busan está ou não infectada.

Se tem zumbis, é um filme de zumbis, certo? Errado! Conforme anunciado no introito, eles estão lá, todavia, não é esse o foco do filme, funcionando mais como motor narrativo do que núcleo temático. Aliás, não se sabe sequer em que consiste a condição das pessoas afetadas - do ponto de vista biológico, é claro. Zumbi é a palavra genérica e versátil encontrada para explicar um estado que alia racionalidade diminuta, incapacidade de fala, aparência de fraqueza (pele bastante clara, em especial) e necessidade de atacar os não infectados através de uma mordida infecciosa - dentre outras mais, reveladas com o desenrolar da narrativa. Não se sabe, por exemplo, se existiria uma cura para retorno ao estado sadio, ou se os zumbis estariam efetivamente mortos. Tampouco é conhecida a origem da epidemia (a origem remota, pois a origem no trem é conhecida). Conforme se percebe, o estado de saúde das pessoas infectadas (causa, origem, cura etc.) é ignorado porque não é relevante. O que é relevante é um estudo sobre o ser humano e sua resposta em situações extremas - de maneira mais específica, o roteiro gravita em torno de caracteres humanos como solidariedade, egolatria e sacrifício, valores questionados também em situações comuns.

Em outras palavras, os zumbis estão lá para justificar a ação, para mover a trama, enquanto que o que o filme realmente aponta o dedo é a natureza humana (se preferir, natureza do ser humano). Isso se faz presente logo nas primeiras cenas, em que fica claro que o pai dá mais atenção para o trabalho do que para a filha. De tudo isso se conclui que, apesar do contexto aparentemente raso, há muito conteúdo reflexivo no longa, o que não é comum no "cinema zumbi" - exemplo recente é o desprezível "Como Sobreviver a um Ataque Zumbi". É a comprovação de que olhar crítico pode conviver com a ação: "Train to Busan" é dotado de uma ação enérgica e de uma adrenalina fulgural. Aqui o mérito reside com o diretor Sang-Ho Yeon, que é hábil para moldar a progressão dos ataques (a ação/tensão é crescente) e corajoso ao adotar alguns takes longos que não são comuns em ficções tão sobrenaturais.

É interessante também perceber que são vários os ataques durante o dia (a existência de luz torna explícita a violência), o que permite ao espectador visualizar com bastante nitidez o que está acontecendo. Não são raras as fitas que preferem uma fotografia escura (inclusive com montagem acelerada) para facilitar a elaboração do produto, mesmo que isso reduza a experiência do público. O cenário principal colabora com os planos fechados das filmagens, pois o trem reduz o campo ao mesmo tempo em que eleva (ainda mais) a nitidez. Em "Invasão Zumbi", tudo é muito bem visto, o que permite elogios pela coragem, mas também exige que se reconheça que a precariedade decepcionante da maquiagem e os efeitos visuais básicos (para dizer o mínimo). Entretanto, isso se justifica pelo baixo orçamento (até porque não é um hollywoodiano), claramente impactante onde o dinheiro pode ser um diferencial. Não é o caso da formidável edição de som, cirúrgica nos momentos mais cruciais e fazendo a diferença inclusive em momentos nos quais o ataque não é completamente visto - trata-se de um raro caso de sutura sonora, em que o espectador preenche parcela da cena a partir tanto do que vê e ouve quanto pelo que não vê e ouve. Funciona como um recurso de imersão do público, aquilatando o trabalho como um todo.

Sim, momentos trash também estão lá, como a risível descoberta de um ponto fraco dos zumbis. No entanto, a ação é tão alucinante que o filme sul-coreano é um deleite para quem busca adrenalina. O drama é unidimensional, as personagens são exploradas de maneira breve... para a sua proposta, porém, "Invasão Zumbi" acerta em quase tudo.

Minha Mãe é uma Peça 2 -- Talento único

Em "Vai que Cola - O Filme", Paulo Gustavo - em tese, sua personagem - ouve que é melhor atriz do que ator (razão pela qual se veste de mulher em determinado momento do filme). É difícil afirmar que essa já é uma verdade (embora aparentemente seja), todavia, como dona Hermínia, o comediante é espetacular. O talento de Paulo Gustavo para (inspirado na própria mãe) interpretar a inigualável dona Hermínia é sem precedentes. Não é nem o caso de papel que nasceu para o artista, é muito mais que isso, é um conforto, um nirvana artístico. Paulo Gustavo não atua como dona Hermínia, Paulo Gustavo é a dona Hermínia. Portanto, MINHA MÃE É UMA PEÇA 2 pode receber o perdão pelos pecados narrativos: nada que o ator não faça o espectador esquecer.

Explica-se. O primeiro filme serviu para o público conhecer o contexto do projeto: uma mãe superprotetora e de humor instável, uma filha "aborrecente" - levemente preguiçosa e suavemente comilona -, um filho gay que ainda não saiu do armário e um pai divorciado e pouco presente. Respectivamente, dona Hermínia (Paulo Gustavo), Marcelina (Mariana Xavier), Juliano (Rodrigo Pandolfo) e Carlos Alberto (Herson Capri). Para a continuação, todos eles voltam com novidades: Hermínia agora está rica e bem-sucedida com um programa de televisão para falar sobre o que mais entende (a maternidade, é claro); Juliano se descobre bissexual; Marcelina procura um emprego em outra cidade para ganhar independência; e Carlos Alberto, carente, não está mais com a Soraya (Ingrid Guimarães, que participa apenas do primeiro filme). Além disso, o primogênito Garib (Bruno Bebianno), que pouco aparece no longa antecessor, resolve visitar a mãe levando seu filho arteiro. Como se não bastasse, Lucia Helena (Patricya Travassos), a irmã que mora em Nova Iorque, também visita Hermínia. É de onde começa a confusão.

A própria dona Hermínia reconhece que "mãe é coisa que rende" - como discordar? Paulo Gustavo admite se inspirar na própria mãe (que faz uma participação especial no final da película, assim como no primeiro volume), provavelmente com algum exagero, para encarnar, em uma só personagem, todas as caracaterísticas comuns das mães. Isto é, o ator reúne todos os estereótipos maternos, concedendo exageros fundamentados na necessidade humorística. Assim, o plot não foge muito da repetição do que já foi visto outrora: proteção materna exacerbada, gritos, broncas, verdades desconfortáveis, ciúme de mãe e assim por diante. É extremamente provável que alguma mãe em algum momento se identifique com alguma situação, ainda que não admita - na mesma linha de raciocínio, filhos identificarão as suas mães. Trata-se da inteligência do roteiro ao criar situações tais, mas muito mais de Paulo Gustavo, que encarna a personagem com tanta naturalidade (e comicidade ímpar) que parece uma personalidade alternativa habitando o mesmo corpo. Não é um homem se vestindo de mulher, mas um ator trabalhando como poucos no cinema nacional.

O resto do elenco, no geral, vai bem. Ninguém do elenco destoa substancialmente, mas fato é que dona Hermínia naturalmente recebe os holofotes - e dá conta do recado. Uma ressalva precisa ser feita quanto a Samantha Schmütz, que vive personagem descartável e que reflete uma visão preconceituosa (justificada pela liberdade artística na necessidade humorística). Por outro lado, Suely Franco retrata com delicadeza a Tia Zélia, reduzindo a comicidade da película em prol da existência de um núcleo dramático sensível. A tristeza está lá, e na medida certa. No mais, Patricya Travassos é a atriz de expressão singular de sempre, com um jeito irritante que todo papel seu possui. Não obstante, é inegável que o roteiro dá espaço para todos, girando em torno da protagonista, exercerem talento humorístico a partir de um texto com boas ideias cômicas - novamente, graças a Paulo Gustavo, em coautoria com Fil Braz. A fita tem cenas que não são tão engraçadas, mas também possui cenas hilárias, como a que Hermínia conhece o novo apartamento de Marcelina. Como comédia, a função é muito bem cumprida.

Porém, como narrativa, o script é uma negação. O filme funciona quase como uma sequência de esquetes com um tênue fio condutor, de função meramente cronológica. Talvez tenha sido uma montagem mal feita - exemplo claro é a participação de Fátima Bernardes, absurdamente dispensável por não acrescentar absolutamente nada -, fato é que as cenas parecem soltas como se houvesse um recorte de episódios aleatórios da vida das personagens, sem existir uma narrativa bem elaborada, com clímax, evolução e estrutura. A princípio, isso não afeta a graça do filme, mas é desconfortável recordar que são piadas soltas em um longa-metragem sem narrativa. Mesmo a boa dose de realidade no texto (como a sinceridade infantil na avaliação da maquiagem da tia Zélia) ou a inteligente inversão dos padrões sociais quanto à sexualidade (a cabeça de dona Hermínia quanto ao tema é tão peculiar quanto ela própria) tornam-se virtudes acinzentadas diante de uma precariedade na elaboração do desenvolvimento do enredo. Há uma excelente ideia para o argumento, destrinchada de maneira amadora.

O final deixa claro o caminho para um terceiro episódio. Se houver, pode ter um roteiro pobre como "Minha Mãe é uma Peça 2", mas será divertido e engraçado tanto quanto este, pois Paulo Gustavo tem um talento único para ser engraçado como dona Hermínia, valendo o segundo e um possível terceiro filme.

Neruda -- Seria bom se não fosse chato


É provável que Pablo Larraín ainda não seja um diretor conhecido pelo grande público brasileiro. Contudo, seu filme “Jackie”, que ainda não estreou no Brasil, deve figurar em algumas categorias no Oscar (ao menos uma indicação de melhor atriz para Natalie Portman), tornando seu nome mais famoso. “Neruda”, por sua vez, tentou concorrer a melhor filme estrangeiro. Não seguiu na disputa (pela indicação) porque, de fato, não atingiu o nível desejável.

Embora o título indique tratar-se de uma cinebiografia de Pablo Neruda, na verdade, o argumento é bastante inusitado ao manter-se em um recorte bem específico. Conhecido no mundo todo e cada vez mais engajado na política chilena, como comunista opositor ao regime vigente, o poeta passa a ser perseguido político, a ponto de o presidente designar um policial específico para efetuar a sua captura – que, porém, se torna um infindável jogo.

O primeiro problema do roteiro é que o argumento serve de pretexto para uma subversão narrativa, aliando o recorte histórico real (e suas implicações políticas, paulatinamente deixadas em segundo plano) a um lirismo poético confuso. Há um nítido exagero, que prejudica a função pedagógica ao aquilatar em demasia o viés poético da película. Muito embora o explosivo e sensacional prólogo flerte com uma intensidade empolgante, cada vez mais a obra assume que abraça a arte em seu sentido puro em detrimento da faceta histórica do enredo – o que, inclusive, danifica a narrativa, que se torna rocambolesca e nada envolvente. Resultado? O filme é chato!

Verdade seja dita: se o roteiro erra (narração voice over geralmente é indicativo de preguiça) no desenvolvimento (por exemplo, como o policial arranja tantas pistas do paradeiro de Neruda?), acerta na conclusão e, principalmente, em seu lado cômico. Não que o filme se torne uma comédia, mas as pitadas de ironia e sarcasmo são bastante aprazíveis. Saem desses momentos conclusões inteligentes, como a cena em que o policial Peluchonneau (Gael García Bernal, contido, mas eficiente) admite que o chefe do seu chefe (o presidente chileno) é o presidente dos EUA, ou a divertida cena da rádio. O zênite consiste no retrato ácido da bipolarização política radical, uma lamentável demonização do posicionamento alheio que gera intolerância e, em última análise, vítimas – fato inegavelmente ainda contemporâneo e presente até mesmo na realidade brasileira. O longa tem seus bons momentos, que acabam sendo espasmos dentro de um marasmo que conduz o público ao tédio.

A opção de Larraín pela estética noir em nada contribui para tornar o filme dinâmico – ainda que fique belo. A insistência na fotografia chiaroscuro (exceto quando o cenário é a magnífica Cordilheira dos Andes) e, mais ainda, na perenidade de um dispensável uso de contraluz, gera um visual incômodo e cansativo. Cenários noturnos, narração e ângulos baixos de filmagem são elementos do subgênero noir, todavia, seu uso deve ser cuidadoso, sob pena de causar bocejos na sala de cinema – a solução seria uma narrativa instigante, o que não ocorre.


Há que se reconhecer virtudes da fita. Luis Gnecco faz excelente interpretação de Neruda, a direção de arte é irrepreensível e a trilha sonora é soberba (talvez o que o filme tem de melhor). Contudo, nada disso adianta se o espectador não se sente seduzido pelo plot. Ao revés, a sensação que fica é de que, se não fosse chato – ou ao menos se fosse mais curto –, o filme seria bom.

Capitão Fantástico -- Vocação para filme cult

Se existem filmes com vocação para serem rotulados de “cult”, “Capitão Fantástico” é um grande exemplo. Lamentavelmente, esse termo recebe uma carga axiológica negativa, quando o fato de ser cult não o torna monótono ou tedioso, apenas afastando-o do cinema mainstream que prevalece. Uma pena: todos deveriam assistir a esse filme.

No enredo, Ben (Viggo Mortensen) cria seus seis filhos longe da civilização, no meio de uma floresta. Apesar de não terem ensino formal por não freqüentarem a escola, o pai é exigente com tudo que ensina, que varia entre habilidades para sobrevivência (luta, caça, escalada etc.) e aprendizado intelectual (por leituras complexas de, por exemplo, literatura, filosofia e física). Tudo muda quando eles saem da floresta e reencontram os familiares em razão de um evento trágico.

Se fosse possível resumir o filme em uma curta expressão, seria “choque cultural”. De maneira inteligente, o longa não começa com o abismo intradiegético: consciente da sua diegese heterodoxa, primeiro integra o espectador naquela realidade, para depois contrapô-la internamente, com outras personagens. Em outras palavras, antes de escancarar um abismo – de um lado, a vida de Ben e seus filhos na floresta; de outro, a vida dos demais familiares em meio à civilização –, o diretor e roteirista Matt Ross prepara o público em relação às idiossincrasias das personagens principais.

Não por outra razão, o prólogo consiste numa encantadora contemplação da natureza (bem ao estilo “Na Natureza Selvagem”, referência clara), seguida de uma explicação visual dos hábitos da família (mais uma vez, com inteligência, evitando o didatismo exacerbado da narração). Qual a razão de ir ao mercado quando se pode caçar e plantar os alimentos? Ben é um crítico voraz a tudo que esteja relacionado à civilização (escolas, hospitais, cristianismo, alimentos industrializados, refrigerantes etc.), o que impacta na criação dos filhos, que não jogam videogame (este lhes causa asco, em sua maioria), mas aprendem sobre Noam Chomsky. Não são crianças quaisquer que conseguiriam rotular os avós como “capitalistas fascistas” entendendo o significado da expressão.

Verifica-se um embate cultural tanto em relação às crianças quanto aos adultos. O que é melhor para criar os filhos: falar sempre a verdade (sobre tudo) ou evitar tanta transparência? A melhor parte é que o filme faz o público pensar, sem o intento de doutrinar – até porque não existe uma forma correta de viver a vida e de criar os filhos. Viggo Mortensen dá vigor ao papel que interpreta, contribuindo para a função questionadora de Ben. Se o plot seguisse o ritmo clássico, o avô (Frank Langella em mais um coadjuvante de luxo) seria o vilão, mas o texto prefere transcender os arquétipos, sendo, sem dúvida, um roteiro repleto de camadas.

O repetido mantra da preferência da prática em detrimento do mero discurso também é comprovação da riqueza do script, que, contudo, peca bastante no desfecho, que é uma solução deveras fácil para a complexa situação em que as personagens se encontram. Mesmo na direção existem virtudes – como as contagiantes cenas musicais, com auge em “Sweet Child O’Mine” – ao mesmo tempo em que se verificam alguns equívocos – como a prevalência de tomadas curtas, reduzindo o realismo. Chega a ser desconfortável a quase exclusividade de planos fechados e closes, opção para aproximar as personagens do espectador, mas que prejudica bastante a visualização do contexto e da própria mise en scène.


Como comédia dramática, “Capitão Fantástico” vai satisfazer grande parcela do público, ao menos em razão da sua originalidade (algumas cenas são inesquecíveis, de tão inusitadas). Como contribuição para a sétima arte, deverá ser muito lembrado por sua vocação como filme cult – nesse caso, na melhor acepção do termo.

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

O Nascimento de uma Nação -- Cinema com Rapadura

Dirigido, roteirizado e protagonizado por Nate Parker, O NASCIMENTO DE UMA NAÇÃO é um longa que não chega a impressionar, mas que possui relevância incontestável na sétima arte graças à temática abordada. Clique aqui e leia a crítica.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Rogue One - Uma História Star Wars -- Todos ficam satisfeitos

Seria ROGUE ONE - UMA HISTÓRIA STAR WARS um prequel do episódio IV ("Star Wars Episódio IV: Uma Nova Esperança", lançado em 1977)? Seria um fanservice, inclusive no intento de manter a cinessérie fresca na memória (lançando filmes anualmente)? Um caça-níqueis? Provavelmente, um pouco de cada.

Na trama, Jyn Erso (Felicity Jones) foi afastada de seu pai, Galen Erso (Mads Mikkelsen) ainda criança, pois Galen foi forçado pelo diretor Krennic (Ben Mendelsohn) a construir a arma mais poderosa do Império, a Estrela da Morte. Quando adulta, Jyn é resgatada pela Aliança Rebelde após ter sido prisioneira, com a condição de ajudar em uma missão que envolve seu pai e Saw Gerrera (Forest Whitaker), que o criou. Juntamente com o capitão Cassian Andor (Diego Luna) e o androide K-2SO, Jyn aceita a tarefa e inicia uma empreitada que acaba sendo maior que a prevista.

De início, o argumento é bastante próximo de "Uma Nova Esperança", porém, em um contexto menor, pois sem jedis e, principalmente, sem o grande nome da trilogia antiga, Luke Skywalker. Sem Luke e sem os jedis, mas com a opressão do Império e com a Estrela da Morte. Assim, "Rogue One" acaba tendo começo, meio e fim - afinal, não se assume como episódio, seria, pois, um recorte de fatos do gigantesco universo Star Wars (SW). Em razão da sua estrutura enclausurada, recebe benefícios tanto quanto desvantagens. De um lado, independe do pleno conhecimento da diegese de SW (embora seja aconselhável algum conhecimento, em especial no que se refere à trilogia antiga), consistindo, em termos cinematográficos, na obra mais hermética. No entanto, torna-se um alienígena naquele "planeta" (o planeta SW), fadado a um possível esquecimento no agrupamento da cinessérie - inclusive porque não alcança o nível memorável como os episódios IV e V (e mesmo o VII, pela exumação). Pior: sem surpresas. A tarefa proposta, vale dizer, o desafio das personagens, já é plenamente conhecido, o que reduz o impacto do plot. O destino do Império e da Estrela da Morte já é conhecido, caso contrário, não haveria episódio IV. Qual a expectativa de uma narrativa cujo desfecho já é público? Essa é uma armadilha criada pelo próprio roteiro contra si mesmo, e que não tem solução no script.

Não obstante, o plot é bastante fiel ao universo SW e suas idiossincrasias. Provavelmente fornece easter eggs que apenas os fãs mais devotos conseguem identificar - embora o espectador já iniciado pesque eventuais referências, como "templo kyber" e, claro, a "força" (no sentido que só tem lá). E vai além, com novas criaturas, como Bur Gullet (a cena é dispensável, mas incrementa a mitologia SW). Ainda no que tange à fidelidade, o filme conta com participações especiais nostálgicas, algumas delas que fazem toda a diferença emocional, mesmo que descartáveis dentro da narrativa. {SPOILER ALERT a partir daqui: quando Darth Vader aparece, os fãs deliram e o espectador não fã deve reconhecer que a sua presença imponente causa impacto retumbante. Com efeito, Darth Vader é um dos maiores vilões da sétima arte, quando ele aparece - inclusive com entrada triunfal -, a expectativa aumenta (em relação ao que ele fará) e ele não decepciona. Os momentos com "Lorde Vader" são sensacionais, talvez maiores que o filme inteiro: apesar de serem curtas as suas cenas, fazem valer o ingresso . Existem também outras participações nostálgicas, que não serão mencionadas, para preservar a surpresa. FIM DO SPOILER}. De maneira inteligente, a utilização de androides como alívio cômico é reiterada, desta vez, K-2SO tem o diferencial de ser um tanto insubordinado.

Nesse sentido, de forma ampla, o longa é falho na construção das personagens. Diferentemente do que ocorre com Luke, Leia e Han, o público não se vê impelido a torcer por Jyn, Cassian e K-2SO. Provavelmente seja isso que justifique a exumação das participações especiais nostálgicas mencionadas, pois as novas personagens não têm carisma por si sós. A culpa não é de Felicity Jones (Jyn), Diego Luna (Cassian), Mads Mikkelsen (coitado, Galen quase nem teve tempo de tela!) ou de ninguém do elenco. O elenco é razoável e faz um trabalho competente, porém, o espectador não se envolve com as personagens porque a proposta do enredo é uma tarefa que se sobrepõe às pessoas, isto é, mais importante, no texto, que questionar quem é Cassian, é questionar qual a sua função na Aliança Rebelde. Aliás, a motivação das personagens é superficial, mais uma vez diametralmente oposto ao que acontece na trilogia original. Quanto aos coadjuvantes, enquanto Donnie Yen vive um interessantíssimo Chirrut Imwe, Forest Whitaker faz um dos seus piores trabalhos da profícua carreira. Seu overacting é constrangedor e a caracterização não basta para o papel. Ben Mendelsohn atua como o vilão, o diretor Orson Krennic, que não está à altura de SW. Um ator que ainda precisa convencer e, principalmente, mostrar que seus vilões conseguem ter mais de uma expressão maléfica na face. No caso de Krennic, todavia, falta substância no script. Como se percebe, para um universo maniqueísta como é o de SW, falhar na construção do antagonismo é equívoco primário que quase prejudica a obra como um todo.


E por que não prejudica? Porque a direção de Gareth Edwards é excelente - mas não perfeita, conforme se verá. Seu grande acerto reside nos magníficos efeitos digitais, que são de uma qualidade digna da representatividade de SW nessa seara. Com efeito, o design de produção é novamente fenomenal, merecendo destaque a exibição inteligente da atmosfera dos diferentes planetas - árida onde há uma minoria oprimida pelo Império, mas com uma exuberante natureza onde seria a "residência" deste. Porém, algumas falhas também merecem menção. Edwards desconhece a linguagem 3D, por insistir na pouca profundidade de campo - mesmo o 3D ativo não é digno de elogios. Apesar do seu domínio do CGI, a reconstrução digital de personagens é artificial e desnecessária - exemplo claro é do falecido Peter Cushing (é fascinante que a tecnologia permita que um ator falecido participe de um filme, mas a artificialidade foi prejudicial). Ainda do ponto de vista estético, o design de som é razoavelmente fiel ao original, mas a trilha sonora de John Williams é insubstituível e faz muita falta.

Mesmo com todas as ressalvas, "Rogue One" tem o mérito de ser o primeiro filme SW com conteúdo voltado a um público adulto. Os dois elementos centrais da criação de George Lucas, star e wars, estão em peso no novo longa, tornando-o um pouco inadequado ao público infantil - em especial pelo segundo, pois tem um contexto bélico bastante intenso e perene na fita. Não que seja despido de leveza, existem momentos mais leves e levemente cômicos, mas a guerra se faz presente de maneira constante. O outro lado da moeda é que há sequências de batalhas muito longas: os efeitos digitais, reitera-se, são de primeiro nível, mas alguns momentos chegam a cansar, de tão alongados. É evidente que Edwars se empolgou com a liberdade que teve ao fazer um SW um pouco diferente, pois teve maior espaço, por exemplo, que J. J. Abrams no episódio VII. Porém, ele poderia ter sido mais sucinto. Outra evidência do teor maduro da obra é o retrato das guerras em países árabes - seria Jedha a síria de SW? Expor de forma nua cidadãos comuns combatendo soldados e, ainda mais impressionante, uma criança chorando em meio aos tiros, diverge muito do que até hoje se viu nos sete episódios - ainda mais considerando que a detentora dos direitos é a Disney.

Em síntese, ROGUE ONE - UMA HISTÓRIA STAR WARS se assenta em um paradigma mais realista e trágico que os filmes predecessores, sem abandonar suas premissas básicas. A narrativa deixa bastante a desejar, porém, na tarefa de ser um SW diferente o longa tem êxito, sendo um bom filme para quem não é fã desse universo e um ótimo filme para quem é fã. Melhor retificar o primeiro parágrafo: não se trata de um caça-níqueis, visto que honra a grandiosidade e o legado do que George Lucas idealizou. O lucro imenso é consequência, não o objetivo primário. É assim que todos ficam satisfeitos.

Michelle e Obama -- Cinema com Rapadura

Clique aqui e confira no Cinema com Rapadura a minha crítica de MICHELLE E OBAMA, um filme bem ao estilo da trilogia "Before", de Richard Linklater, mas consideravelmente inferior. Narra o primeiro encontro do casal Michelle Robinson (nome de solteira) e Barack Obama, recebendo 7 como nota.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Fallen -- Cinema com Rapadura

"Crepúsculo" não é aquele primor de franquia voltada ao público adolescente. Não obstante, recebeu um herdeiro que consegue ser inferior: FALLEN. Clique aqui para ler a crítica deste filme, um dos piores de 2016.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Jack Reacher: Sem Retorno -- Cinema com Rapadura

Não são raras as sequências inferiores em relação aos seus antecessores. JACK REACHER: SEM RETORNO não foge dessa regra. Clique aqui e confira a minha crítica.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Rainha de Katwe -- Ketchup

Sexta-feira, fim de expediente. Diante de tantas opções, nada como um delicioso hambúrguer. Pão de hambúrguer, carne bovina - quiçá duas ou mesmo três fatias -, queijo, molho, bacon, tomate. Para beber, refrigerante. Como acompanhamento, batatas fritas temperadas ao gosto do freguês no ketchup. Um tempero banal, mas que encanta crianças africanas em RAINHA DE KATWE, filme Disney sobre uma enxadrista ugandense, Phiona.

Phiona é uma jovem órfã de pai cuja vida em uma região pobre de Uganda lhe é difícil em vários aspectos: sem acesso à educação, é analfabeta; com moradia precária, dorme praticamente no chão; na escassez de recursos, precisa ajudar a mãe a aumentar a renda familiar para o sustento, o que também limita sua alimentação. Graças a Robert Katende, que faz trabalho voluntário, o mundo de Phiona adquire novas perspectivas dentro do xadrez. Graças ao seu talento, a jovem pode ter uma vida diferente da pobreza que parece inafastável. Sim, mais um filme de protagonista pobre e teoricamente sem futuro que encontra no esporte (no caso de "Rainha de Katwe", o xadrez) um caminho para melhorar a sua vida. Ou seja, um enredo extremamente clichê e conhecido. Não obstante, o colorido Disney alcança um brilho que poucos estúdios conseguem igualar.

Seja pelo roteiro bem elaborado, pela trilha sonora empolgante (as músicas de ritmo africano, além de coerentes com a diegese, alegram qualquer espectador) ou pelo retrato fidedigno da realidade, o filme executa bem a tarefa de entreter. Com isso se conclui que não se trata de uma película no estilo cult, conclusão acertada, o que não significa, por outro lado, frivolidade mainstream.

Mesmo sendo arquetípicas, as personagens encantam de alguma maneira, em especial pelo ótimo trabalho do competente elenco. Phiona é interpretada por uma joia recém descoberta, Madina Nalwanga, que transita com facilidade nas emoções da jovem. É fácil torcer por Phiona e Nalwanga é responsável por ajudar bastante na identificação cinematográfica secundária. Lupita Nyong'o é ganhadora do Oscar, o que a credencia na mesma medida que impõe responsabilidade (de atuar bem). Sua Harriet é uma mulher forte em uma Uganda "onde os fracos não têm vez". Suas filhas são o seu tesouro, o que justifica seu receio em relação ao xadrez e o enfrentamento dos homens que se envolvem com as suas filhas. Nada vale mais que a integridade e a felicidade da sua prole: Harriet é a encarnação do imensurável amor materno. Phiona aprendeu bem as lições da mãe sobre ter uma personalidade inabalável, o que não a permite se deixar magoar quando os colegas reclamam do seu cheiro. Taryn Kyaze não tem o mesmo espaço como filha mais velha, Night, o que é uma lástima, pois seu arco dramático pessoal é o mais denso e complexo. É com Night que o roteiro sugere prostituição e menciona a vulnerabilidade feminina. No primeiro caso, é uma questão de interpretação. No segundo, trata-se da visão machista e ultrapassada de que toda mulher carece de um homem que a proteja e seja o provedor. Com inteligência, o plot ironiza isso em vários momentos, como ao ter uma mulher como protagonista e criada por uma mãe viúva ainda jovem. O girl power é bem delineado e alinhado com a ideologia de empoderamento feminino como subtexto, ou seja, implícito. Harriet precisa cuidar sozinha das filhas, não é uma opção, é uma obrigação que ela abraça sem fugir nem lamentar. Uma coragem e uma independência que Phiona também tem. Na mesma esteira de pensamento, David Oyelowo também atua muito bem como Robert Katende, o coach que ensina Phiona no xadrez é que é um verdadeiro arauto de altruísmo. Seu arco dramático próprio é raso, quase lacunoso, o que não o impede de constituir um coadjuvante coerente.

Tratando-se de uma história real, o desenvolvimento das personalidades das personagens é eficaz e bem arquitetado. Reitera-se: as personagens encantam - e não é apenas em razão das atuações, embora elas sejam ótimas. Contudo, a narrativa é bastante convencional e previsível. Phiona, por exemplo, faz a caminhada padrão de ascensão, queda e retomada, com plot points que são igualmente previsíveis. Provavelmente é esse o grande "calcanhar de Aquiles" do longa.

Não se pode olvidar que Mira Nair é uma diretora de poucas habilidades cinematográficas. Com tomadas mal escolhidas e um plano holandês completamente deslocado, a linguagem do cinema é usada com ampla imperícia. No que Nair acerta, verifica-se apenas o básico: linguagem não-verbal para comunicação entre mãe e filha (na sequência da leitura à noite, que emociona pelo conteúdo, não pela forma), figurino dourado para representar a riqueza imaterial de Phiona e, pela enésima vez na sétima arte, uso da chuva como símbolo de tragédia e desgraça. No entanto, é visível a extrema pobreza dos moradores de Katwe, um local de periferia com muitas pessoas e poucas riquezas materiais, sem tecnologia e com moradores com conhecimento reduzidíssimo da vastidão do mundo em que se encontram. São pessoas para quem um mingau pode ser um manjar, para quem o chão pode ser mais atrativo para dormir que uma cama - afinal, é isso que conhecem. De todo modo, o abismo socioeconômico tem um retrato verossímil e comovente.

A menção do ketchup é apenas um dos vários exemplos pelos quais RAINHA DE KATWE é uma experiência que pouco inova, mas muito emociona. Não é uma fita que entra no rol dos melhores de 2016 do ponto de vista técnico - embora uma indicação de Lupita Nyong'o para o Oscar de atriz coadjuvante não esteja fora de cogitação. É um filme que funciona como o ketchup para a batata frita: não é o principal, mas agrega bastante e, no fundo, faz a diferença.

P.S.: NÃO é preciso conhecer as regras do xadrez para assistir ao filme. Isso talvez permita acompanhar com maior proximidade as batalhas, mas não é essencial.

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Elle -- Perversamente estupendo

A França não poderia ter escolhido melhor representante para o Oscar. ELLE é um filme perversamente estupendo, uma experiência única que alia drama, suspense e comédia, nos três casos escapando das convenções de cada gênero. Uma verdadeira subversão cinematográfica.

Trata-se do mais novo filme do quase octogenário Paul Verhoaven (78 anos de muito talento), responsável por filmes pouco venerados, mas de qualidade ("A Espiã" e "Instinto Selvagem"), bem como por clássicos como "O Vingador do Futuro" e "RoboCop - O Policial do Futuro". ELLE é provavelmente o melhor da sua carreira: a direção é irretocável. Da mesma forma, o roteiro é sensacional.

Na trama, a protagonista Michèle (Isabelle Huppert) é uma das donas de uma empresa de videogames, administrando a empresa com a mesma rigidez que conduz todos os aspectos da sua vida. Tudo poderia mudar com a violência sofrida por um desconhecido: ela é vítima de estupro na sua própria casa. Porém, ao contrário do que se poderia esperar, ela não se altera, ao menos não até descobrir que o agressor continua observando-a.

A direção é irretocável porque tecnicamente requintada e inventivamente envolvente. O tema seria delicado para um qualquer, mas Verhoaven o encara sem tabus e com maturidade. É por isso que o prólogo é a cena do estupro - antes da familiarização com o enredo, uma cena impactante para acenar com as idiossincrasias que a fita apresentará. Os enquadramentos parciais (inclusive um de fora do recinto, com visão incompleta) não foram escolhidos para atenuar o desconforto do ocorrido, longe disso. Para deixar claro, o gato (de estimação da protagonista) que assiste ao fato se distancia, como se não quisesse acompanhar. Até porque a cena retorna mais de perto posteriormente (e mais uma vez, na imaginação de Michèle, em um humor mais do que negro). A ideia de um prólogo chocante com essa mise-en-scène é simplesmente um cartão de visitas, uma verdadeira apresentação para deixar perplexo o espectador. Que fica ainda mais perplexo em razão da aceitação da vítima, que não recorre às autoridades. Verhoaven varia o uso dos recursos ordinários - panorâmica ao entrar na casa, câmera subjetiva em um momento autenticamente voyeurista, contraplongée entre vítima e agressor e contraposição de luzes (penumbra, em especial) quando de uma proposta para um funcionário cometer atos ilícitos. Tudo sempre bem escolhido e bem provocativo. Há também o embalo de uma trilha sonora apta para criar suspense, o que não se confunde com filiação ao gênero, afinal, "Elle" varia estilisticamente. A ideologia é representada inclusive no último plano, que resume direção e roteiro com eficácia.

Nesse sentido, o roteiro é sensacional, vez que imprevisível, instigante e peculiar. Ou seja, único. Na parte de suspense, o óbvio é a descoberta da identidade do agressor, porém, o plot surpreende com pistas para outras subtramas. Raros textos conseguem elaborar tantas camadas como o de "Elle". Quando Michèle é atacada (por falta de uma palavra melhor) em um restaurante por uma desconhecida (com a fala "ordinária! Você e seu pai"), não se sabe a conexão com a trama principal, quando é o que justifica a reação da protagonista ao estupro. Ela foge do vitimismo que seria conclusão óbvia, tomando as rédeas de todas as ações da sua vida. Assim, na faceta dramática da narrativa, contrapõe-se a intensidade da tragédia à resiliência característica de Michèle. Seus problemas, ao menos na aparência, não a derrubam. Seus desafios são enfrentados de frente. Há um tempero agridoce a tudo isso, concernente a um delicioso humor negro (típico europeu e bastante francês) que é um sarcasmo deleitável da personagem principal (esta merece observações apartadas). Sem contar ter imprevisibilidade e sadomasoquismo como pilares narrativos, o que enriquece o roteiro. Não há nada previsível na sequência de acontecimentos - sim, são várias as surpresas - e paira uma sensação incômoda de constante imperfeição. Hitchcock estaria orgulhoso, já que defendia que era necessário fazer o espectador sofrer.

Sem adentrar nos pormenores das personagens, levemente arquetípicas, todos os papéis são de personalidades condenáveis em algum sentido - normalmente, moral. Ninguém é exemplo de conduta, ninguém pode "apontar o dedo" para o outro porque seria "o sujo falando do mal lavado". É uma visão bastante realista do mundo, pois admite a falibilidade humana e até mesmo potencializa este fator. Por exemplo, Michèle condena a mãe (Judith Magre) por contratar garotos de programa (em especial Ralf, corporificado por Raphaël Lenglet, que serve apenas para isso), olvidando que é amante de um homem casado (e sem o conhecimento da esposa). Ideologicamente, o plot faz concluir que todas as pessoas são ruins - mal intencionadas, ególatras, malvadas, agressivas, traidoras, dissimuladas e/ou frouxas. E também que o sexo é o símbolo da perversão humana, signo de tudo que o homem tem de ruim e de tudo de ruim que pode acontecer ao homem. Isabelle Huppert faz uma interpretação espetacular (o ingresso já vale se for apenas para acompanhar seu trabalho de atuação), materializando a espiral de problematizações morais e de caráter. Se fosse necessário, Huppert carregaria a fita em suas costas, tamanha a sua excelência no papel. Se o roteiro fosse ruim e se a direção fosse ruim, ela sustentaria tudo sozinha. Mas não: é tudo excelente.

Para o público mais conservador, que não aguenta ver uma cena de uma mulher se masturbando ao olhar o atraente vizinho de binóculos, o filme é um fosso de depravação, que apenas denigre o próprio ser humano enquanto tal. A visão, porém, é superficial. Sexo é só aparência em “Elle”. Violência, traição, dissimulação... são fatos do cotidiano, nada absurdo. O que faz o longa é expor cruelmente esses caracteres. E chegar a uma triste conclusão, referente à podridão que as pessoas fingem não existir – inclusive (e para começar) em si mesmas. Com esse norte, a película é perversa, mas também estupenda.

terça-feira, 22 de novembro de 2016

Animais Fantásticos e Onde Habitam -- Início modesto, mas satisfatório e bastante divertido

Quem pensa que ANIMAIS FANTÁSTICOS E ONDE HABITAM é uma cópia mal feita de Harry Potter, cujo objetivo é exclusivamente lucrar, ainda que tenha conteúdo vazio, está cometendo um grande equívoco. O filme é original e inovador, ainda que se aproprie do universo mágico de Harry Potter. São várias as semelhanças, contudo, sua individualidade é inegável - o que significa que desconhecer o bruxo com a cicatriz na testa não impede assistir ao primeiro episódio da nova saga.

O ano é 1926; o local, Nova Iorque. Newt Scamander (Eddie Redmayne) é um magizoologista (especialista em criaturas mágicas) que sai do seu país (Inglaterra) carregando uma maleta com incontáveis animais fantásticos - seu objetivo, inicialmente, é um mistério. Por uma sequência de equívocos, que começam quando Newt conhece Porpetina ("Tina") Goldstein (Katherine Waterson) e Jacob (Dan Fogler) - este, um "não-maj", rótulo que substitui o de "trouxa", referente às pessoas sem poderes mágicos -, os animais ficam livres, cabendo ao trio recuperar as criaturas antes que outros não-majs as descumbram. Paralelamente, o auror Percival Graves (Colin Farrell) toma conhecimento do fato enquanto investiga um enigmático ataque à cidade. Todas as histórias se unem em torno do jovem Credence (Ezra Miller), militante que quer retomar a medieval caça às bruxas, em tempos de ceticismo no surreal.

Como se percebe, o longa possui um enredo bem delineado, ao qual falta, porém, contundência temática. Credence - um Ezra Miller desperdiçado, cuja função é relevante apenas no terceiro ato - tem um arco dramático próprio bastante rico, referente a preconceito e abuso infantil (no sentido de violência física e psíquica). Contudo, não há verticalização na abordagem da matéria, provavelmente porque deixaria o filme ainda mais obscuro do que já é. Essa é uma das diferenças em relação à saga Harry Potter: a fotografia acinzentada e a narrativa sem ingenuidade tornam o filme bem mais sério que "... Pedra Filosofal". Aquele fascínio pelo mundo mágico não existe na mesma medida, pois muito que está lá já é bem conhecido. Existe sim um fascínio mágico, como na cena em que Queenie (Alison Sudol), irmã de Tina, mostra habilidades gastronômicas. A agora roteirista J. K. Rowling é criativa e original, conforme se verifica nos "animais fantásticos", nos "obscurus" e mesmo na pena de morte. O contexto da diegese é bem elaborado, mas as mensagens são bastante superficiais. Newt é um defensor dos animais, seria um "ecochato", mas isso fica explícito em um único momento - nos demais, quando ele os protege, parece fazê-lo mais por questões afetivas do que ideológicas. Isto é, o abuso infantil, a intolerância religiosa, a xenofobia e a mensagem ambientalista são temáticas lá presentes, não se pode negar. Entretanto, de maneira bastante superficial. De todo modo, o engajamento ideológico de tolerância se concretiza também com a escalação de Carmen Ejogo como Presidente da MACUSA (Congresso dos Bruxos): uma mulher negra como autoridade máxima da entidade é algo digno de nota.

Para além do problema temático, verifica-se também um problema narratológico: o roteiro é repleto de crateras brechas em seu desenvolvimento, resultado de uma obra pensada para ser uma saga. Seria aplicável a lógica Potter, todavia, como o bruxinho foi pensado inicialmente no formato literário, os encaixes são mais precisos. Aqui, a ideia inicial de três filmes (o que já era bastante) foi abandonada. Claro, é possível lucrar mais com um total de cinco filmes. A questão é: existe tanto para ser contado em cinco filmes? O script propositalmente menciona elementos futuros, em especial as participações de Alvo Dumbledore e Leta Lestrange (esta, a ser vivida pela ótima Zöe Kratitz, que já chega a aparecer). Fica implícito o dizer "vem mais por aí", mas cinco filmes provavelmente acarretará exagero incontestável. Não custa mencionar a rápida aparição de Ron Perlman como Gnarlack, em cena mais do que clichê.

Ademais, há um incômodo paradoxo em "Fantastic Beasts" que corrobora com a teoria da intenção de lucro a qualquer custo. De um lado, são várias as piadas exageradamente infantis, a maioria delas sem graça para quem tem mais de seis anos de idade (cujo ápice é um momento "vergonha alheia" com Eddie Redmayne fazendo movimentos corporais e barulhos absurdamente vexatórios). Por outro lado, reitera-se que paira uma atmosfera sombria, incompatível com o humor tolo da história de Scamander. Por exemplo, Jacob tem uma subtrama pessoal que poderia ser explorada, não fosse a sua função de alívio cômico (embora a comicidade seja apenas teórica).

Até mesmo as personagens coadjuvantes não são muito cativantes. Katherine Waterson interpreta Tina como uma bruxa fracassada, nunca levada a sério e infeliz. Evidentemente, o texto não expõe isso de forma peremptória, mas é uma conclusão inevitável. Por sua vez, Jacob é irritante, não por culpa de Dan Fogler, mas pela personagem em si. Queenie se salva porque Alison Sudol interpreta o papel com charme encantador. Jon Voight está lá apenas porque a produção quis: nada explica um ator do seu quilate escalado para um papel tão insignificante (a não ser que ele tenha mais espaço nas sequências). O lado antagonista é um pouco melhor: Colin Farrell poderia ter feito de Percival um ótimo vilão, pois sua atuação é boa, só não é melhor pelo pouco tempo de tela.

Nada disso se aplica a Eddie Redmayne, ator cujo trabalho não tem uma recepção boa no Brasil, mas que é tido pela maioria maciça da crítica internacional como um dos melhores atores da atualidade. Não havia escolha melhor para Newt Scamander. A caracterização, em especial vestuário e penteado, é compatível com a personalidade introspectiva de Scamander, que considera os humanos as criaturas mais terríveis. A franja de Redmayne e seu olhar oblíquo garantem uma interpretação cirurgicamente contida. É recomendável prestar atenção especial no seu olhar, que nem sempre é dirigido para as pessoas com quem ele conversa, mas sempre focado nos animais fantásticos (ou seja, o ator tem facilidade com a tela verde). Obviamente, sua atuação em "A Teoria de Tudo" é superior, mas Scamander é muito superior ao vexame visto no pavoroso "O Destino de Júpiter". Ou seja, Redmayne não receberia uma indicação ao Oscar por esse filme, mas o trabalho consolida mais sua carreira nivelada por cima. Embora não sejam exatamente personagens, os animais fantásticos também exercem algum encanto, além de representarem o tamanho da fertilidade da criatividade de Rowling.

David Yates, responsável por alguns capítulos da saga Harry Potter, ficou incumbido do primeiro "Fantastic Beasts". A direção de Yates é um show, muito em razão da familiaridade com o universo mágico, mas muito pela competência. A realidade fantástica elaborada é magicamente estonteante, principalmente nas cenas em que aparece o interior da mala de Scamander. Trata-se de um design de produção magnífico, que por si só já faz valer o ingresso. A trilha sonora é bem escolhida, o CGI é sempre convincente - em especial nas cenas de destruição, notadamente as que Yates usa a câmera subjetiva. E mais, o 3D é muito bem utilizado, apesar da pouca profundidade de campo em alguns momentos. Nesse sentido, o uso da letterbox (a faixa preta que fica em cima e embaixo do campo) agrega na sensação de terceira dimensão, estranhamente o recurso é ainda pouco utilizado (mas sempre aquilata a linguagem 3D). 

Em síntese, embora o roteiro seja falho - além de previsivelmente maniqueísta -, o visual do longa é um espetáculo bem orientado por Yates. Aliás, a parceria entre Rowling, Yates e Redmayne deve perdurar. Bem lapidada, pode resultar em um futuro melhor. ANIMAIS FANTÁSTICOS E ONDE HABITAM é um início modesto, mas satisfatório e bastante divertido.

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Snowden - Herói ou Traidor -- Nem herói, nem traidor

Para os cinéfilos brasileiros, é instigante assistir a SNOWDEN - HERÓI OU TRAIDOR. Não é sempre que o Brasil é mencionado em um filme hollywoodiano (ainda que rememorando episódios não muito honrosos), aliás, não é sempre que Hollywood traz à tona um debate tão profícuo e, principalmente, próximo à realidade. No que se refere, inclusive, à temática cotidiana da tecnologia, novamente é especial para o público brasileiro, vez que a influência aqui é tremenda (o que não é unanimidade, ainda que majoritário, no mundo hodierno globalizado).

Quem nunca ouviu falar em Edward Snowden? É difícil imaginar uma pessoa que utiliza com constância artefatos como smartphones e notebooks e que não saiba quem é essa figura pública. Talvez partindo dessa premissa é que o roteiro do filme é tão mal elaborado. O espectador não deve ser jamais subestimado, sua ignorância não se presume. É por isso que merecem ataques aqueles filmes "mastigados", exacerbadamente explicativos. Por outro lado, um longa também não pode estabelecer presunções no sentido oposto, qual seja, de domínio do assunto. Há que se achar um meio termo, "Snowden" falha nesse norte de parcimônia. Torna-se confuso, narratologicamente disperso e sem enfoque nítido. Exemplo é a aparição conveniente de personagens (como a de Nicolas Cage), não como uma evolução de trajetória pessoal, mas como equívoco de desenvolvimento de um plot. A própria cronologia esparsa dificulta bastante o fascínio pela promissora história. É assim que se faz uma película que não prende o espectador - e que deixa parcela do público um pouco perdida e longe da reflexão.

Também o diretor Oliver Stone contribui para minorar a qualidade do produto. Stone tem uma ideologia muito bem definida e acaba por fazer um trabalho parcial e passional. O cineasta é um liberal nada republicano (no sentido da política estadunidense), mas que também não se filia aos democratas (as menções a Obama e mesmo Hillary não estão lá por acaso). Sua visão é a de que os EUA querem formar um império opressor e manipulador, utilizando-se da espionagem online sem se preocupar com direitos das pessoas objeto da espionagem. Não se trata de concluir se ele tem ou não razão, mas o espectador é jogado para uma conclusão tida como irrefutável: a política estadunidense é asquerosamente controladora e Edward Snowden é o messias que abriu os olhos de todos. Será mesmo? É interessante perceber a clareza de Stone ao tomar partido, o que lhe é característico, contudo, isso também representa um vício de direção que afeta o espectador. Isto é, que margem terá o espectador para refletir quando o que é exposto é tão incisivo? O que daquilo tudo é real? O que foi romantizado? Snowden fez o que fez por consciência ideológica própria? Até que ponto a namorada pode ter exercido influência? Até que ponto influências externas podem ter feito ele repaginar seu patriotismo? Como uma figura mitológica, Snowden aceita o encargo de se sacrificar para salvar a todos... não é preciso pensar muito para concluir que há um evidente excesso na divinização do protagonista, muito mais por enfrentar um império do que por ter alertado o mundo - o que fica claro com o retrato mais enfático da reverberação caseira das suas atitudes. Especulando mais a fundo, não seria injusto concluir que o histórico militar de Snowden está lá para corroborar sua vida dura e não para esboçar sua biografia. Como biografia, o filme é um descalabro. Como visão pessoal de um cineasta, razoável.

Nesse sentido, a veia biográfica, onde existe, é burocrática. Baseado em fatos reais e letreiros no início e no fim? Estão lá. Cenas pontuais para retratar uma característica marcante do protagonista? Idem (como a que ele mostra a própria genialidade para o professor). Tem também um romance insosso: apesar de bons artistas, não há química entre eles. Joseph Gordon-Levitt é ótimo em mais uma cinebiografia, merecendo aplausos pelo contorcionismo vocal (seu timbre fica idêntico ao do Snowden real), porém, não convence enquanto um apaixonado. Shailene Woodley é competente no papel, mas fria enquanto namorada, o que resulta em descrédito do romance. Vale dizer, sozinhos, eles vão bem, juntos, como casal, não encantam. Ainda no que se refere ao elenco, o maior destaque é Nicolas Cage: considerando que é um ator famoso, recolher-se à insignificância de um papel coadjuvante pequeno significa assumir a péssima fase na carreira. O papel é tão pequeno quanto o talento de Cage. Já Scott Eastwood dá o seu melhor, o que não é muito, todavia, é mais do que o que fez anteriormente (como em "Uma Longa Jornada", por exemplo). Zachary Quinto poderia ter maior participação, pois sua única cena intensa é uma das melhores do filme, e graças a ele.

De todo modo, é a direção o grande núcleo do longa. A metalinguagem com o documentário "Citizen Four" é sedutora, contudo, há um grave equívoco metodológico da direção em razão da alternância de linguagem sem nenhum critério (um falso enriquecimento de linguagem cinematográfica). Alguns planos se apresentam como câmera na mão e resolução de baixa qualidade, justamente para enaltecer a metalinguagem, todavia, isso não ocorre em todas as oportunidades que deveria. Qual o sentido? Outro exemplo é o efeito chicote na discussão de casal, alternando com cortes, novamente sem critério. Claro, Stone é um bom cineasta, alcança um bom nível com enquadramentos inusitados (como aquele que enfoca o protagonista enquanto duas outras personagens conversam, sem aparecer completamente no plano) e sugestivos (em especial a teleconferência entre Snowden e Corbin numa cena grandiosa). Não obstante, o ritmo lento e a ausência de um fio condutor prejudicam demais o resultado final, fazendo de "Snowden" um filme monótono e pouco expressivo - apesar da curiosidade que gera. O contexto fático merecia uma película melhor.

Por fim, o que é mais grave: Oliver Stone não consegue convencer ninguém que Edward Snowden agiu como um cristo que se sacrifica por um bem maior. A aura de perfeição que lhe é atribuída é flagrantemente artificial e forçosa. Permanece a curiosidade pela sua história, mas o espectador com critério não se pode deixar levar: Snowden agiu como uma pessoa corajosa, isto é, como um ser humano qualquer, falível e imperfeito, mas com coragem. Nada mais. Nem herói, nem traidor.

domingo, 20 de novembro de 2016

A Chegada -- Cinema com Rapadura

Confira no Cinema com Rapadura a minha crítica de A CHEGADA, novo filme de Denis Villeneuve que ainda não estreou (estreia quinta-feira, dia 24) mas que já é um dos melhores de 2016. Clique aqui para ler a crítica.

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Doutor Estranho -- Cinema com Rapadura

Hoje é o dia oficial da estreia de DOUTOR ESTRANHO nos cinemas brasileiros, uma das maiores apostas da Marvel em 2016. Com grande elenco, o filme tinha tudo para ser excelente. Confira a crítica no Cinema com Rapadura (clique aqui) e descubra o que há de bom - e de ruim - do filme.

Ouija - Origem do Mal -- Cinema com Rapadura

OUIJA - ORIGEM DO MAL tinha tudo para ser péssimo... mas mereceu uma nota 7. Confira no Cinema com Rapadura a crítica (clique aqui).

Nosso Fiel Traidor -- Cinema com Rapadura

Nota 6 para NOSSO FIEL TRAIDOR na crítica publicada no Cinema com Rapadura (clique aqui).

Meu amigo, o Dragão -- Cinema com Rapadura

O blog está pouco atualizado no momento, mas, em breve, chegam os filmes do Oscar (entre o fim de um ano e o início de outro), que empolgarão todos os cinéfilos do Recanto!

De todo modo, confira a crítica de MEU AMIGO, O DRAGÃO, feel good movie nota 6, publicada no Cinema com Rapadura (clique aqui).

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Kóblic -- Agrada pela direção e pelas atuações

Há quem afirme que Ricardo Darín, ao menos no Brasil, é considerado quase um gênero - isso mesmo, gênero, e não gênio, embora, na atuação, a palavra possa ser considerada também adequada. Uma das maiores estrelas latinoamericanas como ele, de fato, atrai plateias grandiosas apenas com seu nome, mesmo que seja para filmes deploráveis, como "O que os Homens Falam" (2012). Darín não vive apenas de "O Segredo dos Seus Olhos" (2009) ou "Relatos Selvagens" (2014): ator nenhum tem apenas filmes extraordinários. Em geral, ele acerta - vide "O Filho da Noiva" (2001), "Aura" (2005) e "Truman" (2015), que são bons, ainda que não extraordinários. Seu novo filme, KÓBLIC, está um degrau abaixo, juntamente com "Elefante Branco" (2012) e "Sétimo" (2013). Ou seja, muitos degraus acima do cinema mainstream.

O roteiro é lacônico e pouco explicativo, todavia, não deixa pontas soltas. No início, quase nada se sabe: o protagonista (Darín), arrependido ou envergonhado de um fato do seu passado, decide se esconder em uma cidade pequena, para que seja imperceptível. Consegue um disfarce trabalhando com o amigo Alberto pilotando seus aviões (inclusive para regar as plantações deste), contudo, acaba chamando a atenção do comissário da cidade, que passa a investigar sua vida e seus atos. Trata-se de um claro recorte da vida da personagem: existe um pretérito e um futuro, do primeiro, nada se sabe e pouco é revelado, o segundo cabe à imaginação do espectador, pois é bem aberto.

A afirmação parece óbvia, mas não é. Com efeito, é evidente que, exceto quando se trata dos autobiográficos, os filmes têm um pretérito diegético (um futuro, nem sempre). Entretanto, o passado do protagonista tem reflexos nas suas atitudes presentes e explica muito - mais do que em outros filmes - seu atual estágio. Vale dizer, ele faz o que faz e está onde está em razão de eventos do seu passado, e isso, em "Kóblic", é extremamente relevante. Os flashbacks não são à toa. Como o roteiro não quer ser didático, as poucas explicações que existem são dadas em doses homeopáticas. Postergar os fundamentos de algo costuma ser uma virtude - e aqui também é -, o problema se dá quando eles são vagos ou imprecisos (como aqui) e/ou dúbios (não em "Kóblic"). Por exemplo, indicar expressamente o ano e o local em que a história se passa (Argentina, 1977) é significativo: tempo de ditadura militar argentina. Contudo, mesmo que se considere que tal fator não seja nuclear (como de fato não é), seu resultado na realidade diegética é modesto. De todo modo, os mistérios, no geral, recebem a explicação devida.

Protagonista e antagonistas são ambos excelentes - ou seja, o longa incorre no "pecado" do maniqueísmo. O primeiro, Kóblic, é o ideal de perfeição: habilidoso, inteligente, engenhoso e até mesmo bondoso - a ponto de ajudar um cachorro machucado que aparece à noite. Já o antagonista, o comissário Velarde, é o seu oposto. Por sinal, o bíblico "diga-me com quem andas..." está lá: Alberto é amigo de Kóblic e antipatiza com Velarde, este, por sua vez, antipatiza com Kóblic e é amigo de um sujeito moralmente repulsivo (maiores explicações implicariam spoiler). O comissário até parece boa pessoa, mas não tarda para demonstrar seu caráter reprovável. Para estar à altura, não é ingênuo: logo quando conhece Kóblic, faz perguntas ("vai ficar aqui por muito tempo?") e tira conclusões ("essa manobra não é de um novato", "você é um pouco quieto para um portenho"). Nessa dualidade, a película recebe tonalidades de western: mérito da direção. O que, todavia, não é representação de opostos é o magnífico trabalho de atuação dos dois: de um lado, Ricardo Darín, que dispensa apresentações e é a personificação da interpretação indefectível - mais uma vez, sinteticamente, ele é fenomenal -; de outro, Oscar Martinez, menos desconhecido, mas igualmente eficaz, em especial na identificação cinematográfica secundária. É impossível não se afeiçoar a Kóblic e, por via reflexa, detestar o vil comissário Velarde. Martinez já tinha chamado a atenção em "Relatos Selvagens" (o núcleo era diferente, logo, ele não chegou a atuar com Darín), aqui, quase irreconhecível, ele encarna uma figura detestável com vigor.

Não obstante, o filme não é tão feliz com os coadjuvantes. Inma Cuesta não é convincente porque falta uma inserção orgânica à personagem Nancy. O romance que lhe cabe (o que é óbvio e não demora, ou seja, não é spoiler) é superficial e incomodamente veloz, parecendo mais um alívio instintivo-sexual. Pior, Nancy tem um arco dramático pessoal cativante e que chega a surpreender - aliás, surpresas e reviravoltas costumam aparecer de forma inesperada, o que é mais um acerto do roteiro -, mas sua abordagem é tão en passant que se torna artificial. No fim, a personagem seria descartável, não fosse a sua relevância como engrenagem narrativa. Luís é outra personagem coadjuvante mal trabalhada. Mesmo no engenhoso desfecho elaborado, em que ele pode ganhar importância, o plot praticamente o despreza.

De tudo isso, conclui-se que, do ponto de vista da engenharia narrativa (coerência e sequência lógica, ainda que não cronologicamente linear), o longa é irrepreensível, porém, falta-lhe conteúdo no sentido extranarrativo. Como se reflete a ditadura militar naquela cidade? No despotismo do comissário, apenas? Tortura, violência doméstica e mesmo outras questões densas são suscitadas, mas nunca aprofundadas. Assim, o texto é bem elaborado, mas superficial.

Por outro lado, a direção é ótima. Sebastián Borensztein está na segunda parceria com Darín (a primeira foi em "Um Conto Chinês", de 2011, que está entre os melhores do ator, abaixo dos extraordinários), desta vez com um trabalho mais sofisticado. Claro, ter um grande ator tem seus benefícios: os closes que ele repete não teriam seu significado melancólico se fosse outro no lugar. Mesmo a caracterização das personagens é ótima - incluindo o óculos estilo aviador de Kóblic, que evidentemente não aparece à toa. O que marca é a atmosfera dramática e entristecida em meio à paisagem bucólica - daí porque a prevalência da fotografia escurecida e noturna, concedendo um ar sombrio aos planos. Não são diferentes os flashbacks que atormentam o herói, com a carga sorumbática que é necessária. E mesmo nos pequenos momentos Borensztein acerta, como na câmera subjetiva (no carro do comissário) na cena do pouso forçado do avião.

Não, "Kóblic" não é o melhor filme da carreira dos envolvidos - "Um Conto Chinês", por exemplo, é melhor; "O Segredo dos Seus Olhos", muito superior. É um drama interessante e competente, que agrada pela direção e pelas atuações (ao menos dos principais nomes), mas que não chega nem perto do nível extraordinário que já foi visto no cinema argentino.

terça-feira, 11 de outubro de 2016

Festa da salsicha -- Provocação ao espectador

O nome é sugestivo; a proposta, inusitada. Antes de tudo, é uma animação não voltada ao público infantil - é imprescindível ressaltar isso desde já. Prosseguindo: seria FESTA DA SALSICHA um filme original? Com o pretexto de elaborar críticas sociais, elabora um discurso politicamente incorreto e de palavreado chulo, proferido por carismáticas personagens animadas. "South Park" já fazia isso. Conta com um herói que precisa alertar a sua sociedade sobre um perigo que os ronda. "Minions" tem esse mesmo argumento (para continuar comparando com animações). Personagem com deformidade? "Procurando Nemo" também tem. O romance entre seres (?) que habitam esferas distintas se fez presente há muitos anos com "A Dama e o Vagabundo". Devoção espiritual? "Irmão Urso" é um ótimo exemplar. Personagem lésbica? "Frozen" (ao menos para quem entende a metáfora implícita no "let it go"). Socialização inusitada? "Zootopia" segue a mesma linha. Ilusão da realidade? "Bolt: o supercão" também traz esse elemento. Em síntese: suas premissas não são completamente originais, de sorte que o rebuliço gerado se justifica apenas pelo formato (animação digital) adotado. Comparando-o com "Ninfomaníaca", de Lars von Trier, por exemplo, "Festa da Salsicha" é juvenil.

A trama é elaborada a partir de uma mitologia própria levemente peculiar, criando um universo diegético coerente se cotejado às próprias premissas (isto é, não há contradições no plot, o que é fundamental). Basicamente, os produtos de um supermercado convivem (conversam, têm impulsos sexuais, dormem, cantam etc.) na expectativa dividida de serem comprados pelas pessoas, que os trará alegria. As pessoas são seus deuses; o lado de fora do supermercado, o "Grande Além". A salsicha Frank é um dos produtos (majoritariamente alimentícios) que aguarda ansioso pela ida para o Grande Além, porém, descobre a verdade - de que todos são cortados, devorados e utilizados como os humanos desejam -, tentando alertar seus colegas sobre o fato.

O que há de mais denso no roteiro (escrito por quatro pessoas: Seth Rogen, Evan Goldberg, Kyle Hunter e Ariel Shaffir) é seu mote ateísta. Barry é uma salsicha que sofre bullying, Brenda é uma bisnaga que reprime seus próprios impulsos sexuais, e assim por diante - ou seja, as temáticas variam, o que é positivo. Contudo, o que é nuclear é a mensagem de tolerância, elaborada através de um tom jocoso quanto à crença deísta. Parece paradoxal, mas meio e fim são esses mesmos: o meio é satirizar fiéis; o fim, ensinar respeito à fé alheia. Sem dúvida, um assunto extremamente delicado - é famosa a frase segundo a qual religião não é tema para ser discutido -, mas os roteiristas não se importam com isso. Os alimentos do mercado não podem duvidar da bondade dos deuses, pois assim poderiam desagradá-los, o que impediria a ida ao Grande Além - provavelmente, os conduziria a uma danação eterna. Até porque a vontade dos deuses está além da compreensão dos alimentos. Com efeito, há uma transposição (ou tradução) dos dogmas religiosos para o universo diegético, afinal, essa lógica é bastante aplicada por pessoas crentes. A sátira é incisiva e bastante sarcástica, o que pode gerar revolta da população deísta. Da forma retratada, os alimentos são enxergados como imbecis alienados por uma fé tola. Contudo, a irracionalidade é inerente à fé, logo, dificilmente os argumentos racionais do filme conseguirão reverberar nos fiéis. A crença não é vista, é sentida - tanto no longa quanto na vida real. Vale dizer, de que adianta provocar quem não se dispõe a ser provocado? A crença é dada, sendo poucos os crentes que se dispõem a refletir (no máximo, mudam de religião ou de igreja, sem abandonar o deísmo). Na prática, ao menos nessa faceta, percebe-se que, grosso modo, é um filme que causa a ira de alguns (fiéis) e o riso de outros (ateus).

"Festa da Salsicha" não fica, todavia, nessa única faceta: também ingressa no campo da política internacional ao dar espaço para a briga entre um pão sírio e um donut judeu. Claro que são estereótipos, entre os muitos (principalmente os mexicanos) lá presentes, mas é essa mesma a proposta. Considerando o tratamento intelectual - ainda que irônico - do conflito entre árabes e judeus e da crença deísta, conclui-se que, à sua maneira, a película tem substância inteligente. Isto é, apesar do nome, propositalmente sugestivo, a coragem para atacar temas espinhosos merece ser festejada. Porém, seu modus operandi fatalmente será interpretado como desrespeitoso, quando o objetivo não é esse. Evidentemente, o roteiro não é um primor: o vilão principal é unidimensional e, na prática, desnecessário ao plot; além disso, as narrativas intercaladas têm níveis de qualidade bem distintos (o que prejudica o ritmo). Ademais, a insistência na temática sexual (discurso, objetos fálicos etc.) é cansativa, parecendo um texto quase adolescente. Por essas razões, há prejuízo na pretensa mensagem de tolerância, que fica em descrédito em razão, em especial, da infantilidade.

A direção é de Conrad Vernon e Greg Tiernan, que inventam um número musical logo no início, surpreendendo o espectador. Os dois ainda injetam referências, fictícias e reais: o Lorde das Trevas de Harry Potter, os coiotes das fronteiras dos EUA e Stephen Hawking. Aliás, a participação de uma personagem claramente inspirada em Hawking é divertidíssima, rendendo os melhores momentos. Ou seja, para uma comédia, a risada é módica, até porque as piadas relacionadas a sexo já se esgotaram no cinema (talvez até mesmo a franquia "American Pie" tenha se dado conta). Piadas metalinguísticas também não são mais tão engraçadas. O grande elenco não é grande diferencial, mas está lá - nomes como Seth Rogen, Kristen Wiig, Paul Rudd, James Franco, Edward Norton e Salma Hayek (esta como a melhor dupladora do cast). Cabe mencionar ainda a excelente montagem, que, na pontuação, usa um plano específico como transição: o último plano de uma cena (ou sequência) é aplicado como primeiro da cena (ou sequência) seguinte.

Se o objetivo de "Festa da Salsicha" era revolucionar na sétima arte, o intento foi falho. A mensagem de tolerância é necessária, contudo, não tem a contundência que deveria para fazer alguma diferença. É a questão de fins versus meios: o deboche não é o melhor caminho. Pior ainda é colocar em um invólucro imaturo em que tudo se resume a piadas de cunho sexual: até Freud ficaria incomodado. Pessoas que levam religião como assunto mais sério e imune a piadas, por sua vez, devem ficar ofendidas. Outros, mais tranquilos, assistirão ao filme para apenas rir. Enfim, é uma obra que provoca o espectador. Só é difícil dizer se, nesse caso, isso é positivo.