quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Kóblic -- Agrada pela direção e pelas atuações

Há quem afirme que Ricardo Darín, ao menos no Brasil, é considerado quase um gênero - isso mesmo, gênero, e não gênio, embora, na atuação, a palavra possa ser considerada também adequada. Uma das maiores estrelas latinoamericanas como ele, de fato, atrai plateias grandiosas apenas com seu nome, mesmo que seja para filmes deploráveis, como "O que os Homens Falam" (2012). Darín não vive apenas de "O Segredo dos Seus Olhos" (2009) ou "Relatos Selvagens" (2014): ator nenhum tem apenas filmes extraordinários. Em geral, ele acerta - vide "O Filho da Noiva" (2001), "Aura" (2005) e "Truman" (2015), que são bons, ainda que não extraordinários. Seu novo filme, KÓBLIC, está um degrau abaixo, juntamente com "Elefante Branco" (2012) e "Sétimo" (2013). Ou seja, muitos degraus acima do cinema mainstream.

O roteiro é lacônico e pouco explicativo, todavia, não deixa pontas soltas. No início, quase nada se sabe: o protagonista (Darín), arrependido ou envergonhado de um fato do seu passado, decide se esconder em uma cidade pequena, para que seja imperceptível. Consegue um disfarce trabalhando com o amigo Alberto pilotando seus aviões (inclusive para regar as plantações deste), contudo, acaba chamando a atenção do comissário da cidade, que passa a investigar sua vida e seus atos. Trata-se de um claro recorte da vida da personagem: existe um pretérito e um futuro, do primeiro, nada se sabe e pouco é revelado, o segundo cabe à imaginação do espectador, pois é bem aberto.

A afirmação parece óbvia, mas não é. Com efeito, é evidente que, exceto quando se trata dos autobiográficos, os filmes têm um pretérito diegético (um futuro, nem sempre). Entretanto, o passado do protagonista tem reflexos nas suas atitudes presentes e explica muito - mais do que em outros filmes - seu atual estágio. Vale dizer, ele faz o que faz e está onde está em razão de eventos do seu passado, e isso, em "Kóblic", é extremamente relevante. Os flashbacks não são à toa. Como o roteiro não quer ser didático, as poucas explicações que existem são dadas em doses homeopáticas. Postergar os fundamentos de algo costuma ser uma virtude - e aqui também é -, o problema se dá quando eles são vagos ou imprecisos (como aqui) e/ou dúbios (não em "Kóblic"). Por exemplo, indicar expressamente o ano e o local em que a história se passa (Argentina, 1977) é significativo: tempo de ditadura militar argentina. Contudo, mesmo que se considere que tal fator não seja nuclear (como de fato não é), seu resultado na realidade diegética é modesto. De todo modo, os mistérios, no geral, recebem a explicação devida.

Protagonista e antagonistas são ambos excelentes - ou seja, o longa incorre no "pecado" do maniqueísmo. O primeiro, Kóblic, é o ideal de perfeição: habilidoso, inteligente, engenhoso e até mesmo bondoso - a ponto de ajudar um cachorro machucado que aparece à noite. Já o antagonista, o comissário Velarde, é o seu oposto. Por sinal, o bíblico "diga-me com quem andas..." está lá: Alberto é amigo de Kóblic e antipatiza com Velarde, este, por sua vez, antipatiza com Kóblic e é amigo de um sujeito moralmente repulsivo (maiores explicações implicariam spoiler). O comissário até parece boa pessoa, mas não tarda para demonstrar seu caráter reprovável. Para estar à altura, não é ingênuo: logo quando conhece Kóblic, faz perguntas ("vai ficar aqui por muito tempo?") e tira conclusões ("essa manobra não é de um novato", "você é um pouco quieto para um portenho"). Nessa dualidade, a película recebe tonalidades de western: mérito da direção. O que, todavia, não é representação de opostos é o magnífico trabalho de atuação dos dois: de um lado, Ricardo Darín, que dispensa apresentações e é a personificação da interpretação indefectível - mais uma vez, sinteticamente, ele é fenomenal -; de outro, Oscar Martinez, menos desconhecido, mas igualmente eficaz, em especial na identificação cinematográfica secundária. É impossível não se afeiçoar a Kóblic e, por via reflexa, detestar o vil comissário Velarde. Martinez já tinha chamado a atenção em "Relatos Selvagens" (o núcleo era diferente, logo, ele não chegou a atuar com Darín), aqui, quase irreconhecível, ele encarna uma figura detestável com vigor.

Não obstante, o filme não é tão feliz com os coadjuvantes. Inma Cuesta não é convincente porque falta uma inserção orgânica à personagem Nancy. O romance que lhe cabe (o que é óbvio e não demora, ou seja, não é spoiler) é superficial e incomodamente veloz, parecendo mais um alívio instintivo-sexual. Pior, Nancy tem um arco dramático pessoal cativante e que chega a surpreender - aliás, surpresas e reviravoltas costumam aparecer de forma inesperada, o que é mais um acerto do roteiro -, mas sua abordagem é tão en passant que se torna artificial. No fim, a personagem seria descartável, não fosse a sua relevância como engrenagem narrativa. Luís é outra personagem coadjuvante mal trabalhada. Mesmo no engenhoso desfecho elaborado, em que ele pode ganhar importância, o plot praticamente o despreza.

De tudo isso, conclui-se que, do ponto de vista da engenharia narrativa (coerência e sequência lógica, ainda que não cronologicamente linear), o longa é irrepreensível, porém, falta-lhe conteúdo no sentido extranarrativo. Como se reflete a ditadura militar naquela cidade? No despotismo do comissário, apenas? Tortura, violência doméstica e mesmo outras questões densas são suscitadas, mas nunca aprofundadas. Assim, o texto é bem elaborado, mas superficial.

Por outro lado, a direção é ótima. Sebastián Borensztein está na segunda parceria com Darín (a primeira foi em "Um Conto Chinês", de 2011, que está entre os melhores do ator, abaixo dos extraordinários), desta vez com um trabalho mais sofisticado. Claro, ter um grande ator tem seus benefícios: os closes que ele repete não teriam seu significado melancólico se fosse outro no lugar. Mesmo a caracterização das personagens é ótima - incluindo o óculos estilo aviador de Kóblic, que evidentemente não aparece à toa. O que marca é a atmosfera dramática e entristecida em meio à paisagem bucólica - daí porque a prevalência da fotografia escurecida e noturna, concedendo um ar sombrio aos planos. Não são diferentes os flashbacks que atormentam o herói, com a carga sorumbática que é necessária. E mesmo nos pequenos momentos Borensztein acerta, como na câmera subjetiva (no carro do comissário) na cena do pouso forçado do avião.

Não, "Kóblic" não é o melhor filme da carreira dos envolvidos - "Um Conto Chinês", por exemplo, é melhor; "O Segredo dos Seus Olhos", muito superior. É um drama interessante e competente, que agrada pela direção e pelas atuações (ao menos dos principais nomes), mas que não chega nem perto do nível extraordinário que já foi visto no cinema argentino.

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