terça-feira, 11 de outubro de 2016

Festa da salsicha -- Provocação ao espectador

O nome é sugestivo; a proposta, inusitada. Antes de tudo, é uma animação não voltada ao público infantil - é imprescindível ressaltar isso desde já. Prosseguindo: seria FESTA DA SALSICHA um filme original? Com o pretexto de elaborar críticas sociais, elabora um discurso politicamente incorreto e de palavreado chulo, proferido por carismáticas personagens animadas. "South Park" já fazia isso. Conta com um herói que precisa alertar a sua sociedade sobre um perigo que os ronda. "Minions" tem esse mesmo argumento (para continuar comparando com animações). Personagem com deformidade? "Procurando Nemo" também tem. O romance entre seres (?) que habitam esferas distintas se fez presente há muitos anos com "A Dama e o Vagabundo". Devoção espiritual? "Irmão Urso" é um ótimo exemplar. Personagem lésbica? "Frozen" (ao menos para quem entende a metáfora implícita no "let it go"). Socialização inusitada? "Zootopia" segue a mesma linha. Ilusão da realidade? "Bolt: o supercão" também traz esse elemento. Em síntese: suas premissas não são completamente originais, de sorte que o rebuliço gerado se justifica apenas pelo formato (animação digital) adotado. Comparando-o com "Ninfomaníaca", de Lars von Trier, por exemplo, "Festa da Salsicha" é juvenil.

A trama é elaborada a partir de uma mitologia própria levemente peculiar, criando um universo diegético coerente se cotejado às próprias premissas (isto é, não há contradições no plot, o que é fundamental). Basicamente, os produtos de um supermercado convivem (conversam, têm impulsos sexuais, dormem, cantam etc.) na expectativa dividida de serem comprados pelas pessoas, que os trará alegria. As pessoas são seus deuses; o lado de fora do supermercado, o "Grande Além". A salsicha Frank é um dos produtos (majoritariamente alimentícios) que aguarda ansioso pela ida para o Grande Além, porém, descobre a verdade - de que todos são cortados, devorados e utilizados como os humanos desejam -, tentando alertar seus colegas sobre o fato.

O que há de mais denso no roteiro (escrito por quatro pessoas: Seth Rogen, Evan Goldberg, Kyle Hunter e Ariel Shaffir) é seu mote ateísta. Barry é uma salsicha que sofre bullying, Brenda é uma bisnaga que reprime seus próprios impulsos sexuais, e assim por diante - ou seja, as temáticas variam, o que é positivo. Contudo, o que é nuclear é a mensagem de tolerância, elaborada através de um tom jocoso quanto à crença deísta. Parece paradoxal, mas meio e fim são esses mesmos: o meio é satirizar fiéis; o fim, ensinar respeito à fé alheia. Sem dúvida, um assunto extremamente delicado - é famosa a frase segundo a qual religião não é tema para ser discutido -, mas os roteiristas não se importam com isso. Os alimentos do mercado não podem duvidar da bondade dos deuses, pois assim poderiam desagradá-los, o que impediria a ida ao Grande Além - provavelmente, os conduziria a uma danação eterna. Até porque a vontade dos deuses está além da compreensão dos alimentos. Com efeito, há uma transposição (ou tradução) dos dogmas religiosos para o universo diegético, afinal, essa lógica é bastante aplicada por pessoas crentes. A sátira é incisiva e bastante sarcástica, o que pode gerar revolta da população deísta. Da forma retratada, os alimentos são enxergados como imbecis alienados por uma fé tola. Contudo, a irracionalidade é inerente à fé, logo, dificilmente os argumentos racionais do filme conseguirão reverberar nos fiéis. A crença não é vista, é sentida - tanto no longa quanto na vida real. Vale dizer, de que adianta provocar quem não se dispõe a ser provocado? A crença é dada, sendo poucos os crentes que se dispõem a refletir (no máximo, mudam de religião ou de igreja, sem abandonar o deísmo). Na prática, ao menos nessa faceta, percebe-se que, grosso modo, é um filme que causa a ira de alguns (fiéis) e o riso de outros (ateus).

"Festa da Salsicha" não fica, todavia, nessa única faceta: também ingressa no campo da política internacional ao dar espaço para a briga entre um pão sírio e um donut judeu. Claro que são estereótipos, entre os muitos (principalmente os mexicanos) lá presentes, mas é essa mesma a proposta. Considerando o tratamento intelectual - ainda que irônico - do conflito entre árabes e judeus e da crença deísta, conclui-se que, à sua maneira, a película tem substância inteligente. Isto é, apesar do nome, propositalmente sugestivo, a coragem para atacar temas espinhosos merece ser festejada. Porém, seu modus operandi fatalmente será interpretado como desrespeitoso, quando o objetivo não é esse. Evidentemente, o roteiro não é um primor: o vilão principal é unidimensional e, na prática, desnecessário ao plot; além disso, as narrativas intercaladas têm níveis de qualidade bem distintos (o que prejudica o ritmo). Ademais, a insistência na temática sexual (discurso, objetos fálicos etc.) é cansativa, parecendo um texto quase adolescente. Por essas razões, há prejuízo na pretensa mensagem de tolerância, que fica em descrédito em razão, em especial, da infantilidade.

A direção é de Conrad Vernon e Greg Tiernan, que inventam um número musical logo no início, surpreendendo o espectador. Os dois ainda injetam referências, fictícias e reais: o Lorde das Trevas de Harry Potter, os coiotes das fronteiras dos EUA e Stephen Hawking. Aliás, a participação de uma personagem claramente inspirada em Hawking é divertidíssima, rendendo os melhores momentos. Ou seja, para uma comédia, a risada é módica, até porque as piadas relacionadas a sexo já se esgotaram no cinema (talvez até mesmo a franquia "American Pie" tenha se dado conta). Piadas metalinguísticas também não são mais tão engraçadas. O grande elenco não é grande diferencial, mas está lá - nomes como Seth Rogen, Kristen Wiig, Paul Rudd, James Franco, Edward Norton e Salma Hayek (esta como a melhor dupladora do cast). Cabe mencionar ainda a excelente montagem, que, na pontuação, usa um plano específico como transição: o último plano de uma cena (ou sequência) é aplicado como primeiro da cena (ou sequência) seguinte.

Se o objetivo de "Festa da Salsicha" era revolucionar na sétima arte, o intento foi falho. A mensagem de tolerância é necessária, contudo, não tem a contundência que deveria para fazer alguma diferença. É a questão de fins versus meios: o deboche não é o melhor caminho. Pior ainda é colocar em um invólucro imaturo em que tudo se resume a piadas de cunho sexual: até Freud ficaria incomodado. Pessoas que levam religião como assunto mais sério e imune a piadas, por sua vez, devem ficar ofendidas. Outros, mais tranquilos, assistirão ao filme para apenas rir. Enfim, é uma obra que provoca o espectador. Só é difícil dizer se, nesse caso, isso é positivo.

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