sábado, 12 de agosto de 2017

Valerian e a Cidade dos Mil Planetas -- Faltou um bom texto

A fantasia é o terreno fértil para as metáforas mais criativas, embora nem sempre claras. Boa parte do público vai enxergar VALERIAN E A CIDADE DOS MIL PLANETAS como um mix de aventura com ficção científica quase pueril, tamanha a simplicidade aparente do seu plot. De fato, à primeira vista, o longa pode demonstrar singeleza. É necessário, porém, olhar melhor.

Baseado em quadrinhos franceses da década de 1970, criados por Pierre Christin e Jean-Claude Mézières, o longa acompanha uma difícil missão enfrentada pelos policiais espaciais Valerian e Laureline. Como se percebe, a película cria uma realidade própria, em um futuro distante em que os humanos confraternizam com alienígenas de diversos planetas, teoricamente em paz (o que é difícil crer, já que humanos não conseguem paz sequer consigo mesmos). Essa ideia pode parecer familiar: Star Wars bebeu muito dessa riquíssima fonte da nona arte, pois, ainda que Valerian não seja uma HQ muito conhecida no Brasil, teve seu sucesso lá fora.

O grande defeito do longa é que a trama não é muito envolvente. Na verdade, trata-se de um roteiro mal elaborado, pois cria uma narrativa morosa e eventualmente insossa, deixando o interesse no filme em outros aspectos. Dividido em quatro atos, o filme é longo e, ao invés de ter uma progressão narrativa, alia episódios nada cativantes com subtramas desnecessárias. A missão da dupla é um pouco nebulosa, tão mal contada que se torna irrelevante. Então o filme vive de episódios, como se fosse uma união de sequências de pouca coesão para formar uma unidade, o que talvez funcione em HQs, mas não na sétima arte. Dentre as subtramas desnecessárias, a mais notória é o romance entre a dupla policial: é fiel aos quadrinhos, mas torna a obra cinematográfica piegas no desfecho e não acrescenta em nada no seu desenvolvimento.

Isso tudo sem contar alguns paradoxos do roteiro: se o Comandante tem robôs à sua disposição, não teria motivo para Valerian e Laureline trabalharem como guardas pessoais; embora os dois demonstrem não simpatizar com o Comandante, não há indício da razão; os três "pombos" (vocativo usado por Laureline) mercenários constituem deus ex machina, recurso preguiçoso para qualquer script; e é vergonhoso o momento em que Laureline, em perigo, grita por Valerian sem nem saber que ele está lá, pronto para salvá-la. Falando em salvamento, por outro lado, existe o mérito de construir Laureline distante do paradigma da donzela indefesa: ao revés, a moça chega a salvar o colega em diversos momentos, o que não o impede de tratá-la como ajudante, papel que ela rejeita veementemente com palavras e ações (mas nem sempre).

Seria melhor se Laureline fosse interpretada por uma atriz, não por uma modelo. Afinal, Cara Delevingne pode ter várias qualificações, mas não a de atriz. É bem verdade que ela está menos péssima que em "Esquadrão Suicida" - até porque em "Valerian" não há dança ridícula (existe uma cena de dança, mas não é com ela, e não é ridícula). Mas isso não é mérito, não é melhora. Nem Laurence Olivier salvaria "Esquadrão Suicida". Diversamente, Dane DeHaan é um ótimo ator que tem escolhido mal os projetos dos quais participa. "Poder Sem Limites" (principalmente), "Versos de um Crime" e "Life" são filmes que mostram seu enorme potencial. Porém, "O Espetacular Homem-Aranha 2" e "A Cura" não são bons exemplos no currículo. Em "Valerian", ele mostra versatilidade, surpreendendo como o falso galã. É estranho vê-lo como um "Han Solo", o que ele consegue por ser bom ator, já que, até agora, seus papéis eram mais alternativos, distantes do galã (exceto, talvez, em "Life", porém, a proposta era diversa, pois não era também o herói). A personagem que dá nome ao título tem uma personalidade detestável, é aquele sujeito que se considera irresistível, no final fazendo sucesso não pelas qualidades que acha que tem, mas a despeito do exterior arrogante. DeHaan não é um intérprete carismático e foi prejudicado pela pavorosa parceira, mas qualquer fracasso do filme não é culpa dele.

Ainda no elenco está um irreconhecível Ethan Hawke, também demonstrando versatilidade, todavia, em um papel pequeno. Fugindo do padrão "macho alfa" que costuma viver, desta vez seu papel é extrovertido e um pouco afeminado. Quanto a Clive Owen... é o mesmo "canastrão" dos últimos dez anos. O cast conta também com Rihanna, que faz um papel cuja função é aclarar o tema do filme. Seu trabalho em tela é pequeno, até porque sua personagem Bubble aparece pouco, iniciando com uma cena que pode parecer de pouca utilidade, mas que tem a finalidade de dar personalidade à personagem - na verdade, é fundamental para embasar seu arco dramático pessoal, da artista por vocação. Apesar da participação pequena, Bubble é uma personagem complexa e criada em camadas, ironicamente até mesmo mais interessante que Valerian e Laureline. Como foi parar no local onde o protagonista a conheceu, por exemplo? Não caberia ao roteiro explicar, mas a curiosidade ficou justamente porque a personagem é interessante. Seu drama foi mal trabalhado, é um problema de desenvolvimento, não de concepção.

O que é central é que Bubble é a metáfora da imigrante ilegal, a pessoa socialmente marginalizada e com carência inclusive afetiva. Ela se sente um ser sem lar, fadada ao desprezo da lei, como se fosse um ser de menor valor ou indigno. E a verdade é o oposto, o que ela procura é justamente a dignidade através da imigração. Mas Bubble é apenas a ponta do iceberg em "Valerian", já que o grande tema do roteiro é uma matéria pungente no mundo todo: os refugiados. Trata-se de uma preocupação contemporânea e global, havendo novamente uma metáfora no filme, através dos Pearls do planeta Mül: são seres que ficam sem o seu lar, por circunstâncias completamente alheias à sua vontade, precisando buscar refúgio em outro, recomeçando a própria civilização. Sim, "Valerian e a Cidade dos Mil Planetas" é sobre os refugiados.

Os Pearls estão na primeira cena após o prólogo, que é a melhor cena. O planeta Mül é de uma beleza ímpar: sol escaldante, praia deslumbrante, calmaria, um local verdadeiramente paradisíaco. Seu visual é também único: sem pelos, mas com adornos tribais, pele clara (cor de pérola, como não poderia deixar de ser) brilhante (também sem surpresa), altos e magros. Nessa mesma cena, além disso, são vistos animais que reproduzem pérolas, algo que depois é melhor explicado - melhor, não muito melhor. Essa cena é a melhor porque é o ápice do maravilhoso design de produção do filme, que é de uma riqueza técnica fenomenal, algo que apenas um grande diretor como Luc Besson é capaz.

Nem tudo que Besson dirigiu merece recordação ("Arthur e os Minimoys" e "A Família" que o digam"), mas ele é o diretor responsável por clássicos como "O Profissional", "O Quinto Elemento" e "Joana D'Arc de Luc Besson", além do contemporâneo "Lucy", que também poderá adquirir tal status. Como roteirista, seu currículo é bem longo (incluindo "Valerian", exemplo ruim), indo desde os que ele dirigiu e outros ótimos (como "Busca Implacável" e "Beijo do Dragão"), até lixos como "Bandidas" e "Carga Explosiva - O Legado". O fascinante plano longo em que Valerian atravessa paredes é prova de que o francês é realmente extraordinário na direção, valendo o mesmo para as elipses em sequência no prólogo, que aliam didática com humor. No roteiro, existe uma referência a outro longa escrito por ele, "Busca Implacável": "onde você estiver no universo, eu vou te encontrar e vou te matar". Porém, acaba sendo um blefe narrativo desta vez, prova que o script desta vez foi falho. Por fim, a trilha sonora é boa, mas não é épica como o filme precisaria para alavancar seu nível.

"Valerian e a Cidade dos Mil Planetas" quer ser o novo paradigma dos efeitos visuais. De fato, nos efeitos visuais, no CGI, no 3D, no design de produção e na fotografia (paleta de cores azul e pastel prevalecendo) o filme é excelente. No 3D, talvez não a melhor experiência já vista, mas muito boa. Os efeitos visuais são belíssimos, mas também nada que fará história. Tudo isso pode ser elogiado, contudo, falta ao longa um roteiro mais consistente, com heróis pelos quais se possa torcer, uma narrativa mais dinâmica e fluida, em síntese, um texto melhor elaborado. De nada adianta um belo visual sem um texto que o justifique. Evidentemente, nada apaga o relevante subtexto sobre refugiados e imigrantes, entretanto, antes do subtexto, vem o texto... e faltou um bom texto a esse filme.

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