A França
não poderia ter escolhido melhor representante para o Oscar. ELLE é um filme perversamente estupendo,
uma experiência única que alia drama, suspense e comédia, nos três casos
escapando das convenções de cada gênero. Uma
verdadeira subversão cinematográfica.
Trata-se do mais novo filme do quase octogenário Paul Verhoaven (78 anos de
muito talento), responsável por filmes pouco venerados, mas de qualidade
("A Espiã" e "Instinto Selvagem"), bem como por clássicos
como "O Vingador do Futuro" e "RoboCop - O Policial do
Futuro". ELLE é provavelmente o melhor da sua carreira: a direção é irretocável. Da mesma
forma, o roteiro é sensacional.
Na trama, a
protagonista Michèle (Isabelle Huppert) é uma das donas de uma empresa de
videogames, administrando a empresa com a mesma rigidez que conduz todos os
aspectos da sua vida. Tudo poderia mudar com a violência sofrida por um
desconhecido: ela é vítima de estupro na sua própria casa. Porém, ao contrário
do que se poderia esperar, ela não se altera, ao menos não até descobrir que o
agressor continua observando-a.
A direção é irretocável porque tecnicamente requintada e
inventivamente envolvente. O tema seria delicado para um qualquer, mas
Verhoaven o encara sem tabus e com maturidade. É por isso que o prólogo é a
cena do estupro - antes da familiarização com o enredo, uma cena impactante
para acenar com as idiossincrasias que a fita apresentará. Os enquadramentos
parciais (inclusive um de fora do recinto, com visão incompleta) não foram
escolhidos para atenuar o desconforto do ocorrido, longe disso. Para deixar
claro, o gato (de estimação da protagonista) que assiste ao fato se distancia,
como se não quisesse acompanhar. Até porque a cena retorna mais de perto
posteriormente (e mais uma vez, na imaginação de Michèle, em um humor mais do
que negro). A ideia de um prólogo chocante com essa mise-en-scène é
simplesmente um cartão de visitas, uma verdadeira apresentação para deixar
perplexo o espectador. Que fica ainda mais perplexo em razão da aceitação da
vítima, que não recorre às autoridades. Verhoaven varia o uso dos recursos
ordinários - panorâmica ao entrar na casa, câmera subjetiva em um momento
autenticamente voyeurista, contraplongée entre vítima
e agressor e contraposição de luzes (penumbra, em especial) quando de uma
proposta para um funcionário cometer atos ilícitos. Tudo sempre bem escolhido e
bem provocativo. Há também o embalo de uma trilha sonora apta para criar
suspense, o que não se confunde com filiação ao gênero, afinal,
"Elle" varia estilisticamente. A
ideologia é representada inclusive no último plano, que resume direção e
roteiro com eficácia.
Nesse sentido, o
roteiro é sensacional, vez que imprevisível, instigante e peculiar. Ou
seja, único. Na parte de suspense, o óbvio é a descoberta da identidade do
agressor, porém, o plot surpreende
com pistas para outras subtramas. Raros
textos conseguem elaborar tantas camadas como o de "Elle".
Quando Michèle é atacada (por falta de uma palavra melhor) em um restaurante
por uma desconhecida (com a fala "ordinária! Você e seu pai"), não se
sabe a conexão com a trama principal, quando é o que justifica a reação da
protagonista ao estupro. Ela foge do vitimismo que seria conclusão óbvia,
tomando as rédeas de todas as ações da sua vida. Assim, na faceta dramática da
narrativa, contrapõe-se a intensidade da tragédia à resiliência característica
de Michèle. Seus problemas, ao menos na aparência, não a derrubam. Seus
desafios são enfrentados de frente. Há um tempero agridoce a tudo isso,
concernente a um delicioso
humor negro (típico europeu e bastante francês) que é um sarcasmo deleitável da personagem
principal (esta merece observações apartadas). Sem contar ter imprevisibilidade e sadomasoquismo
como pilares narrativos, o que enriquece o roteiro. Não há nada previsível
na sequência de acontecimentos - sim, são várias as surpresas - e paira uma sensação incômoda de constante
imperfeição. Hitchcock estaria orgulhoso, já que defendia que era
necessário fazer o espectador sofrer.
Sem adentrar nos pormenores das personagens, levemente
arquetípicas, todos os papéis
são de personalidades condenáveis em algum sentido - normalmente, moral. Ninguém
é exemplo de conduta, ninguém pode "apontar o dedo" para o outro
porque seria "o sujo falando do mal lavado". É uma visão bastante
realista do mundo, pois admite a falibilidade humana e até mesmo potencializa
este fator. Por exemplo, Michèle condena a mãe (Judith Magre) por
contratar garotos de programa (em especial Ralf, corporificado por Raphaël Lenglet, que serve
apenas para isso), olvidando que é amante de um homem casado (e sem o
conhecimento da esposa). Ideologicamente,
o plot faz concluir
que todas as pessoas são ruins - mal intencionadas, ególatras, malvadas,
agressivas, traidoras, dissimuladas e/ou frouxas. E também que o sexo é o
símbolo da perversão humana, signo de tudo que o homem tem de ruim e de
tudo de ruim que pode acontecer ao homem. Isabelle
Huppert faz uma interpretação
espetacular (o ingresso já vale se for apenas para acompanhar seu trabalho de
atuação), materializando a espiral de problematizações morais e de caráter.
Se fosse necessário, Huppert carregaria a fita em suas costas, tamanha a sua
excelência no papel. Se o roteiro fosse ruim e se a direção fosse ruim, ela
sustentaria tudo sozinha. Mas não: é tudo excelente.
Para o público mais conservador, que não aguenta ver uma cena de
uma mulher se masturbando ao olhar o atraente vizinho de binóculos, o filme é
um fosso de depravação, que apenas denigre o próprio ser humano enquanto tal. A
visão, porém, é superficial. Sexo é só aparência em “Elle”. Violência, traição,
dissimulação... são fatos do cotidiano, nada absurdo. O que faz o longa é expor
cruelmente esses caracteres. E chegar a uma triste conclusão, referente à
podridão que as pessoas fingem não existir – inclusive (e para começar) em si
mesmas. Com esse norte, a película é perversa, mas também estupenda.