sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Elle -- Perversamente estupendo

A França não poderia ter escolhido melhor representante para o Oscar. ELLE é um filme perversamente estupendo, uma experiência única que alia drama, suspense e comédia, nos três casos escapando das convenções de cada gênero. Uma verdadeira subversão cinematográfica.

Trata-se do mais novo filme do quase octogenário Paul Verhoaven (78 anos de muito talento), responsável por filmes pouco venerados, mas de qualidade ("A Espiã" e "Instinto Selvagem"), bem como por clássicos como "O Vingador do Futuro" e "RoboCop - O Policial do Futuro". ELLE é provavelmente o melhor da sua carreira: a direção é irretocável. Da mesma forma, o roteiro é sensacional.

Na trama, a protagonista Michèle (Isabelle Huppert) é uma das donas de uma empresa de videogames, administrando a empresa com a mesma rigidez que conduz todos os aspectos da sua vida. Tudo poderia mudar com a violência sofrida por um desconhecido: ela é vítima de estupro na sua própria casa. Porém, ao contrário do que se poderia esperar, ela não se altera, ao menos não até descobrir que o agressor continua observando-a.

A direção é irretocável porque tecnicamente requintada e inventivamente envolvente. O tema seria delicado para um qualquer, mas Verhoaven o encara sem tabus e com maturidade. É por isso que o prólogo é a cena do estupro - antes da familiarização com o enredo, uma cena impactante para acenar com as idiossincrasias que a fita apresentará. Os enquadramentos parciais (inclusive um de fora do recinto, com visão incompleta) não foram escolhidos para atenuar o desconforto do ocorrido, longe disso. Para deixar claro, o gato (de estimação da protagonista) que assiste ao fato se distancia, como se não quisesse acompanhar. Até porque a cena retorna mais de perto posteriormente (e mais uma vez, na imaginação de Michèle, em um humor mais do que negro). A ideia de um prólogo chocante com essa mise-en-scène é simplesmente um cartão de visitas, uma verdadeira apresentação para deixar perplexo o espectador. Que fica ainda mais perplexo em razão da aceitação da vítima, que não recorre às autoridades. Verhoaven varia o uso dos recursos ordinários - panorâmica ao entrar na casa, câmera subjetiva em um momento autenticamente voyeurista, contraplongée entre vítima e agressor e contraposição de luzes (penumbra, em especial) quando de uma proposta para um funcionário cometer atos ilícitos. Tudo sempre bem escolhido e bem provocativo. Há também o embalo de uma trilha sonora apta para criar suspense, o que não se confunde com filiação ao gênero, afinal, "Elle" varia estilisticamente. A ideologia é representada inclusive no último plano, que resume direção e roteiro com eficácia.

Nesse sentido, o roteiro é sensacional, vez que imprevisível, instigante e peculiar. Ou seja, único. Na parte de suspense, o óbvio é a descoberta da identidade do agressor, porém, o plot surpreende com pistas para outras subtramas. Raros textos conseguem elaborar tantas camadas como o de "Elle". Quando Michèle é atacada (por falta de uma palavra melhor) em um restaurante por uma desconhecida (com a fala "ordinária! Você e seu pai"), não se sabe a conexão com a trama principal, quando é o que justifica a reação da protagonista ao estupro. Ela foge do vitimismo que seria conclusão óbvia, tomando as rédeas de todas as ações da sua vida. Assim, na faceta dramática da narrativa, contrapõe-se a intensidade da tragédia à resiliência característica de Michèle. Seus problemas, ao menos na aparência, não a derrubam. Seus desafios são enfrentados de frente. Há um tempero agridoce a tudo isso, concernente a um delicioso humor negro (típico europeu e bastante francês) que é um sarcasmo deleitável da personagem principal (esta merece observações apartadas). Sem contar ter imprevisibilidade e sadomasoquismo como pilares narrativos, o que enriquece o roteiro. Não há nada previsível na sequência de acontecimentos - sim, são várias as surpresas - e paira uma sensação incômoda de constante imperfeição. Hitchcock estaria orgulhoso, já que defendia que era necessário fazer o espectador sofrer.

Sem adentrar nos pormenores das personagens, levemente arquetípicas, todos os papéis são de personalidades condenáveis em algum sentido - normalmente, moral. Ninguém é exemplo de conduta, ninguém pode "apontar o dedo" para o outro porque seria "o sujo falando do mal lavado". É uma visão bastante realista do mundo, pois admite a falibilidade humana e até mesmo potencializa este fator. Por exemplo, Michèle condena a mãe (Judith Magre) por contratar garotos de programa (em especial Ralf, corporificado por Raphaël Lenglet, que serve apenas para isso), olvidando que é amante de um homem casado (e sem o conhecimento da esposa). Ideologicamente, o plot faz concluir que todas as pessoas são ruins - mal intencionadas, ególatras, malvadas, agressivas, traidoras, dissimuladas e/ou frouxas. E também que o sexo é o símbolo da perversão humana, signo de tudo que o homem tem de ruim e de tudo de ruim que pode acontecer ao homem. Isabelle Huppert faz uma interpretação espetacular (o ingresso já vale se for apenas para acompanhar seu trabalho de atuação), materializando a espiral de problematizações morais e de caráter. Se fosse necessário, Huppert carregaria a fita em suas costas, tamanha a sua excelência no papel. Se o roteiro fosse ruim e se a direção fosse ruim, ela sustentaria tudo sozinha. Mas não: é tudo excelente.

Para o público mais conservador, que não aguenta ver uma cena de uma mulher se masturbando ao olhar o atraente vizinho de binóculos, o filme é um fosso de depravação, que apenas denigre o próprio ser humano enquanto tal. A visão, porém, é superficial. Sexo é só aparência em “Elle”. Violência, traição, dissimulação... são fatos do cotidiano, nada absurdo. O que faz o longa é expor cruelmente esses caracteres. E chegar a uma triste conclusão, referente à podridão que as pessoas fingem não existir – inclusive (e para começar) em si mesmas. Com esse norte, a película é perversa, mas também estupenda.

Nenhum comentário:

Postar um comentário