segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Snowden - Herói ou Traidor -- Nem herói, nem traidor

Para os cinéfilos brasileiros, é instigante assistir a SNOWDEN - HERÓI OU TRAIDOR. Não é sempre que o Brasil é mencionado em um filme hollywoodiano (ainda que rememorando episódios não muito honrosos), aliás, não é sempre que Hollywood traz à tona um debate tão profícuo e, principalmente, próximo à realidade. No que se refere, inclusive, à temática cotidiana da tecnologia, novamente é especial para o público brasileiro, vez que a influência aqui é tremenda (o que não é unanimidade, ainda que majoritário, no mundo hodierno globalizado).

Quem nunca ouviu falar em Edward Snowden? É difícil imaginar uma pessoa que utiliza com constância artefatos como smartphones e notebooks e que não saiba quem é essa figura pública. Talvez partindo dessa premissa é que o roteiro do filme é tão mal elaborado. O espectador não deve ser jamais subestimado, sua ignorância não se presume. É por isso que merecem ataques aqueles filmes "mastigados", exacerbadamente explicativos. Por outro lado, um longa também não pode estabelecer presunções no sentido oposto, qual seja, de domínio do assunto. Há que se achar um meio termo, "Snowden" falha nesse norte de parcimônia. Torna-se confuso, narratologicamente disperso e sem enfoque nítido. Exemplo é a aparição conveniente de personagens (como a de Nicolas Cage), não como uma evolução de trajetória pessoal, mas como equívoco de desenvolvimento de um plot. A própria cronologia esparsa dificulta bastante o fascínio pela promissora história. É assim que se faz uma película que não prende o espectador - e que deixa parcela do público um pouco perdida e longe da reflexão.

Também o diretor Oliver Stone contribui para minorar a qualidade do produto. Stone tem uma ideologia muito bem definida e acaba por fazer um trabalho parcial e passional. O cineasta é um liberal nada republicano (no sentido da política estadunidense), mas que também não se filia aos democratas (as menções a Obama e mesmo Hillary não estão lá por acaso). Sua visão é a de que os EUA querem formar um império opressor e manipulador, utilizando-se da espionagem online sem se preocupar com direitos das pessoas objeto da espionagem. Não se trata de concluir se ele tem ou não razão, mas o espectador é jogado para uma conclusão tida como irrefutável: a política estadunidense é asquerosamente controladora e Edward Snowden é o messias que abriu os olhos de todos. Será mesmo? É interessante perceber a clareza de Stone ao tomar partido, o que lhe é característico, contudo, isso também representa um vício de direção que afeta o espectador. Isto é, que margem terá o espectador para refletir quando o que é exposto é tão incisivo? O que daquilo tudo é real? O que foi romantizado? Snowden fez o que fez por consciência ideológica própria? Até que ponto a namorada pode ter exercido influência? Até que ponto influências externas podem ter feito ele repaginar seu patriotismo? Como uma figura mitológica, Snowden aceita o encargo de se sacrificar para salvar a todos... não é preciso pensar muito para concluir que há um evidente excesso na divinização do protagonista, muito mais por enfrentar um império do que por ter alertado o mundo - o que fica claro com o retrato mais enfático da reverberação caseira das suas atitudes. Especulando mais a fundo, não seria injusto concluir que o histórico militar de Snowden está lá para corroborar sua vida dura e não para esboçar sua biografia. Como biografia, o filme é um descalabro. Como visão pessoal de um cineasta, razoável.

Nesse sentido, a veia biográfica, onde existe, é burocrática. Baseado em fatos reais e letreiros no início e no fim? Estão lá. Cenas pontuais para retratar uma característica marcante do protagonista? Idem (como a que ele mostra a própria genialidade para o professor). Tem também um romance insosso: apesar de bons artistas, não há química entre eles. Joseph Gordon-Levitt é ótimo em mais uma cinebiografia, merecendo aplausos pelo contorcionismo vocal (seu timbre fica idêntico ao do Snowden real), porém, não convence enquanto um apaixonado. Shailene Woodley é competente no papel, mas fria enquanto namorada, o que resulta em descrédito do romance. Vale dizer, sozinhos, eles vão bem, juntos, como casal, não encantam. Ainda no que se refere ao elenco, o maior destaque é Nicolas Cage: considerando que é um ator famoso, recolher-se à insignificância de um papel coadjuvante pequeno significa assumir a péssima fase na carreira. O papel é tão pequeno quanto o talento de Cage. Já Scott Eastwood dá o seu melhor, o que não é muito, todavia, é mais do que o que fez anteriormente (como em "Uma Longa Jornada", por exemplo). Zachary Quinto poderia ter maior participação, pois sua única cena intensa é uma das melhores do filme, e graças a ele.

De todo modo, é a direção o grande núcleo do longa. A metalinguagem com o documentário "Citizen Four" é sedutora, contudo, há um grave equívoco metodológico da direção em razão da alternância de linguagem sem nenhum critério (um falso enriquecimento de linguagem cinematográfica). Alguns planos se apresentam como câmera na mão e resolução de baixa qualidade, justamente para enaltecer a metalinguagem, todavia, isso não ocorre em todas as oportunidades que deveria. Qual o sentido? Outro exemplo é o efeito chicote na discussão de casal, alternando com cortes, novamente sem critério. Claro, Stone é um bom cineasta, alcança um bom nível com enquadramentos inusitados (como aquele que enfoca o protagonista enquanto duas outras personagens conversam, sem aparecer completamente no plano) e sugestivos (em especial a teleconferência entre Snowden e Corbin numa cena grandiosa). Não obstante, o ritmo lento e a ausência de um fio condutor prejudicam demais o resultado final, fazendo de "Snowden" um filme monótono e pouco expressivo - apesar da curiosidade que gera. O contexto fático merecia uma película melhor.

Por fim, o que é mais grave: Oliver Stone não consegue convencer ninguém que Edward Snowden agiu como um cristo que se sacrifica por um bem maior. A aura de perfeição que lhe é atribuída é flagrantemente artificial e forçosa. Permanece a curiosidade pela sua história, mas o espectador com critério não se pode deixar levar: Snowden agiu como uma pessoa corajosa, isto é, como um ser humano qualquer, falível e imperfeito, mas com coragem. Nada mais. Nem herói, nem traidor.

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