sexta-feira, 30 de junho de 2017

Okja -- Cinema com Rapadura

OKJA é considerado por alguns o melhor filme original Netflix. Será mesmo? Foi aclamado em Cannes - apesar de ser um filme Netflix, o que desagradou os jurados do festival. É tão bom assim? Clique aqui e confira, na minha crítica no Cinema com Rapadura!

quarta-feira, 28 de junho de 2017

O Círculo -- Muito mal desenvolvido

Para fazer uma análise justa e bem fundamentada sobre o filme O CÍRCULO, é necessário trazer alguns spoilers (que serão devidamente marcados), pois o que ele tem de pior começa a partir do segundo ato. Contudo, fica registrado o alerta de spoilers.

A protagonista do longa é Mae (Emma Watson), contratada pela gigante "O Círculo", responsável por gerenciar via web a vida de seus usuários. Participando das atividades, Mae descobre que a empresa funciona como uma grande comunidade que conecta as pessoas entre si, desconectando-as do mundo exterior e tendo bastante ciência sobre sua vida e suas atividades - cada vez mais.

Não é difícil perceber que o argumento é maravilhoso: relevante, contemporâneo e espinhoso. Um monitoramento pessoal constante pode trazer benefícios, e isso aparece, como em termos de saúde, sendo possível adiantar doenças potenciais, por exemplo. Apesar dos benefícios, a questão nevrálgica é a dilapidação da privacidade, que, a bem da verdade, é cada vez menor em tempos contemporâneos, mas ganha um formato radical na película. Quão preciosa é a privacidade das pessoas? Qual seu limite impenetrável? São questões como essas que o filme faz refletir, sugerindo a resposta mais fácil, provavelmente por não ousar dar mais complexidade a um tema que já é complexo por si só.

Nisso entram as personagens, que não são tão complicadas. A protagonista Mae é a heroína não muito confiável, seja porque não representa a confiança que dela se espera, seja porque é graças a ela (ainda que não sozinha) que, em síntese, tudo dá errado. Na verdade, o grande problema é que ela é bastante suscetível ao alheio, revelando-se uma personagem cuja personalidade é facilmente influenciável. Dentro da empresa, existem correntes antagônicas, ainda que uma se esconda, e, por mais estranho que possa parecer, ela sugere querer agradar a ambas em todos os momentos. Exemplo disso é quando um estranho a convida para ir a sós com ela em um local desvigiado (palavras dela) e ela aceita. Ou Mae pode ser manipulada por quem está próximo, ou ela quer agradar a todos, tese corroborada por sua decisão de usar a câmera 24 horas por dia. O que é certo sobre ela é que a internet lhe é essencial, nesse sentido, Mae e Mercer são opostos, já que, para ele, socializar precisa ser real. E isso acaba sendo bem importante, ainda que a aparição de Ellar Coltrane em tela acabe sendo pequena, de modo que Mercer tenha participação oblíqua na narrativa. Pior ainda John Boyega, cujo papel consiste numa presença misteriosa que vai e vem de acordo com as conveniências do roteiro. A direção acerta em colocá-lo sempre deslocado, a mise en scène relativa à personagem está correta e sua atuação é boa, mas Ty podia ser melhor explorado.

Fica claro que o objetivo era dar todo o espaço possível para Emma Watson faça Mae brilhar. Watson é uma boa atriz, mas distante da excelência que alguns enxergam. Seu espaço é tão grande que até mesmo Tom Hanks tem papel reduzido, fazendo com que Eamon Bailey seja um pseudo-antagonista de segundo escalão. Eamon está acima dos "plebeus" que trabalham na empresa, enquanto Mae se mostra diferenciada. No geral, os funcionários são bastante alienados, de uma maneira que o roteiro faz questão de tornar extrema, em especial em uma cena que transita entre o bizarro e o assustador, entre o revoltante e o patético. Mas O Círculo torna as pessoas esquisitas, não por outra razão Annie, amiga de Mae, é uma workaholic exemplar - Karen Gillan faz o que provavelmente foi o melhor trabalho de atuação do longa em razão da mutação sofrida pela personagem.

Entretanto, é justamente essa mutação presente no script o grande problema do longa, não pela sua existência, mas pela maneira como ocorreu. Resumidamente, há um salto gigantesco no segundo ato, ao qual se seguem saltos menores, revelando uma montagem absurdamente ruim que prejudica demais o filme. (Os spoilers começam aqui!) Como a saúde do pai de Mae melhorou tão rapidamente? Por que ela furtou o caiaque? Como Mae se tornou tão próxima de Eamon e tão importante para o Círculo de maneira tão repentina? Depois de um episódio ruim, ela já é entrevistada por ele como exemplo, aparentando já ser conhecida há um tempo. E por que Annie mudou tanto no relacionamento com Mae e até mesmo consigo? Poderia estar com inveja, mas isso não explica o figurino discreto e a ausência de maquiagem. Também não explica o Big Brother que vira a vida de Mae, momento em que a direção comete equívoco gigantesco, pois, quando Emma Watson quebra a quarta parede - ao contrário do que ocorre com outros filmes que o fazem da maneira correta -, o espectador sai da atmosfera diegética e lembra o quão surreal aquilo é (e se torna ainda cada vez mais surreal). Pior, "O Círculo" adquire proporções megalomaníacas, sugerindo que, com a proposta oferecida, não mais haveriam fugitivos da Justiça - porém, não explica a razão pela qual é Mae quem conduz a ferramenta SoulSearch, e não Eamon. Enfim, depois de um grande salto (referente à cena do caiaque, totalmente deslocada e desconexa do resto do filme), o filme perde a credibilidade graças à sua montagem caótica, que tem outros furos temporais e presume que o espectador fará a sutura necessária.

Ora, a sutura é sempre feita pelo espectador, pois sempre existem lacunas a serem preenchidas. Isso não significa, contudo, que a narrativa não precisa de lógica, porque, na prática, o que a montagem do filme faz é sabotar a organização que o texto pode ter tido em sua origem. Assim, ainda que James Ponsoldt (diretor e co-roteirista) não tenha feito um trabalho ruim, é lamentável pensar que O CÍRCULO podia ser um ótimo filme, já que o argumento tinha potencial. Só que foi muito mal desenvolvido, tendo, inclusive, um desfecho bastante óbvio - o drama no clímax também não ajuda a dar maiores emoções. Portanto, não passa de um filme menor na carreira dos grandes artistas envolvidos.

domingo, 25 de junho de 2017

Frantz -- Foge do convencional

O ano é 1919 (período pós-Primeira Guerra), o local é Quedlimburgo (interior da Alemanha). Uma jovem alemã vive o luto do falecimento de seu noivo, morto em batalha na França. Até que um rapaz francês aparece deixando flores no túmulo de seu amado, deixando uma enorme curiosidade sobre quem seria ele e qual a sua relação com o falecido. É essa a sinopse de FRANTZ, produção franco-alemã que é oficialmente rotulada como drama, mas que caminha quase na íntegra no suspense e desemboca no romance (sem ser romântico).

O fato de caminhar no suspense é seu grande trunfo: o argumento tem em si um mistério instigante. Na verdade, o elemento mistério permeia a trama e é fio condutor da narrativa, tanto é assim que, quando um enigma é revelado, o filme perde ritmo e fica desnorteado - até surgir um segundo mistério. O clima de suspense é perene, com ares investigativos e até mesmo uma trilha sonora eventualmente nesse sentido, tornando-se genuinamente instigante aqui e acolá. Entre o primeiro enigma e o segundo, há uma enorme quebra de ritmo e um desconforto bem incômodo, armadilha criada pelo próprio roteiro. Claro que não são segredos tão obscuros que nem mesmo Sherlock Holmes descobriria: ao contrário, como a proposta do filme não é o suspense em si, mas caminhar nesse ritmo, não há uma teia complexa. Em outras palavras, os mistérios não são tão elaborados, pois não é esse o objetivo, mas sim criar a atmosfera de suspense naquele clima hostil.

Como seria um clima hostil se a Guerra tinha acabado? De fato, a Primeira Grande Guerra tinha acabado, mas há uma preocupação em deixar claro que o rancor entre franceses e alemães, reciprocamente, persiste. É algo como a consciência coletiva de Durkheim, que polarizou as nações em meio à guerra, ainda que ela tenha se encerrado formalmente. Afinal, foram muitas as vítimas fatais. Nisso entram os clichês de filmes bélicos: numa guerra, não há "mocinho" nem "bandido", não existe "lado do bem" nem "lado do mal", apenas muitas vítimas. É um debate verticalizado mais por uma das personagens, de uma maneira um pouco obtusa em relação à trama principal, mas que se faz presente de maneira explícita - reitera-se, um velho clichê de filme bélico.

O que não é clichê é o seguinte questionamento: existe alguém insubstituível? A resposta natural seria: "não, ninguém é insubstituível". E se a resposta fosse dada por uma noiva e pelos pais de um soldado falecido? Em "Frantz", essa pergunta recebe camadas mais complexas (que não podem ser desenvolvidas para evitar spoilers), não podendo ser respondida de maneira tão fria. Talvez o falecido pudesse ser substituído, mas seria o francês o substituto ideal? Poderia ele substituí-lo?

Até que ponto Adrien (Pierre Niney) seria confiável para Anna (Paula Beer), noiva de Frantz, Hans (Ernst Stötzner) e Magda (Marie Gruber), seus pais? Hans é mais implosivo e receoso, enquanto Magda é mais acolhedora. Anna, visivelmente a mais carente dos três, se entrega à amizade de Adrien, confiando plenamente em suas palavras. A força do luto faz com que os três entreguem ao francês um crédito que apenas um discurso bonito justificou. E cada vez mais Adrien toma o lugar de Frantz, porque, de fato, o luto tem a potência necessária para tornar aquela família irracional, querendo ver em Adrien tudo que Frantz podia ter sido se não tivesse morrido na guerra.

O trio Beer-Stötzner-Gruber é muito convincente, todavia, sem dúvida é Pierre Niney que comanda o elenco. Niney é a grande aposta da nova geração, um prodígio cujo talento foi reconhecido com o César ganho com "Yves Saint-Laurent" - e que aqui em "Frantz" mais uma vez exibe o potencial. De fato, o ator pode ir muito longe e Hollywood deveria ficar de olho nele (se já não está). Por exemplo, Magda descreve Frantz como alguém com um comportamento tímido e melancólico, segundo ela, Adrien também seria assim. Niney foi perfeito para esse papel, que, exceto pela timidez, foi bem diferente do vivido por ele em "20 Anos + Jovem".

Dentre os trabalhos mais recentes de François Ozon, esse é o mais pudico. O filme é bom, mas visualmente precipitado. A ideia de filmar em preto-e-branco em pleno século XXI não é inovadora. Na verdade, o filme não é inteiro sem cores, isso é mostrado já nos primeiros segundos. Há uma passagem em que Adrien e Anna saem de uma sombra durante um passeio, surgindo então as cores, é visualmente belo, mas uma exceção. A regra é a falta de critério para as cores surgirem: ora são sinônimo de alegria, ora explicitam que se trata de um flashback. Isto é, o filme é majoritariamente em preto-e-branco, aparecendo as cores nos flashbacks, assim, seria um recurso de didática; contudo, a coloração aparece também quando as personagens ficam contentes, o que explicita a indecisão. Também se percebe uma direção de fotografia modesta, que não lida bem com o contraste entre as cores, ao contrário do que foi feito, por exemplo, em "A Lista de Schindler". Nos enquadramentos, os cenários mereceriam maior destaque, havendo poucos planos abertos mesmo quando necessários (quando como Anna começa a conhecer Paris). Ainda assim, FRANTZ é um bom filme porque foge do convencional, foge do que se espera, mesmo que use clichês e previsibilidades, tem um roteiro original e é estruturalmente criativo.

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Filme assistido no Festival Varilux de Cinema Francês 2017

sábado, 17 de junho de 2017

Neve Negra -- Aquém

O cinema argentino já rendeu pérolas como "O Segredo dos Seus Olhos" e "Relatos Selvagens", ambos com Ricardo Darín. O ator já é sinônimo de qualidade, mesmo já tendo feito filmes de qualidade, no mínimo, questionável, como o vergonhoso "Delirium" - os ruins são minoria quase inexistente em sua carreira, é verdade. NEVE NEGRA está no nível de "Elefante Branco": razoável, mas muito aquém do talento do grandioso ator.

Na trama, Darín interpreta Salvador, um homem cheio de traumas e recluso na Patagônia até a chegada de seu irmão Marcos (Leonardo Sbaraglia) e de sua cunhada Laura (Laia Costa). Com o falecimento de seu pai, Marcos pretende resolver a divisão da herança, já que Salvador mora na propriedade que é deles e também de sua irmã Sabrina (Dolores Fonzi), internada em um hospital. O problema é que Salvador não está disposto a discutir isso e o retorno de Marcos traz à tona a morte acidental de Juan, irmão deles falecido ainda criança.

O roteiro tem uma boa ideia que, contudo, não é plenamente bem conduzida. Parte pela direção pouco envolvente, parte pelo script morno no segundo ato, fato é que os dois primeiros atos não geram fortes emoções no espectador, exceto a expectativa. Fica clara a sensação de que algo será revelado, de que há algo muito maior do que as aparências, de que haverá uma enorme revelação, quiçá um plot twist, mas, até esse momento chegar, a espera é um pouco aflitiva. Por outro lado, o texto induz a certas conclusões, fazendo com que o espectador desconfie que há algo errado, podendo até mesmo tirar alguma conclusão acertada, mas certamente sem desvendar por completo o desfecho. Entretanto, existem alguns plot holes, o principal referente a Sabrina, pois não se explica exatamente o que ela tem e a razão pela qual foi parar onde está.

Martín Hodara já trabalhou bastante com Darín (inclusive em "Nove Rainhas" e em "Aura"), mas como assistente, tendo em "Neve Negra" seu segundo longa como diretor. A prevalência de planos longos corrobora o realismo que prevalece no longa, ficando visível a habilidade do diretor na criação de uma atmosfera: de um lado, o enredo é dramático (irmã afastada por doença, pai recém falecido, trauma do irmão morto ainda criança por acidente e irmão isolado há anos), de outro, o clima de suspense é palpável - trilha sonora minimalista (majoritariamente instrumental, inclusive mixagem de som com poucos efeitos), fotografia bem natural, cenários frios (afinal, é a Patagônia) e figurino explicitando o frio. A música sempre sugere mistério e, de fato, existem segredos naquela família - como diz uma personagem em certo momento, "que família!". A casa onde ficam é um local com pouca iluminação, Hodara filma no primeiro ato em planos fechados e investe em sons de vento "soprando", pena que no segundo ato não consegue manter a atenção - o roteiro, reitera-se, colabora. Interessante ainda a maneira pela qual o diretor usa os flashbacks, fazendo com que um mesmo plano sirva como conectivo entre o presente diegético e o flashback visto pelo espectador (normalmente, por uma panorâmica com a câmera).

Embora o plot crie bem as personagens, é a excelente dupla principal que brilha muito. Ricardo Darín é uma das maiores estrelas contemporâneas do cinema latino-americano, indubitavelmente um dos melhores atores em atividade, quiçá no geral - inclusive, melhor que muitos Matts Damons. A caracterização de Salvador é bem diferente do que o público está acostumado a ver de Darín: rosto bronzeado, barba grisalha e comprida, cabelo comprido e semblante sempre sério. É difícil discorrer muito sobre a personagem ser incorrer em spoilers, bastando afirmar que sua personalidade forte é vivida com ímpeto pelo ator, numa interpretação convincente ao não recair no overacting. Salvador não consegue chamar Sabrina de "nossa irmã" para Marcos, chamando-a de "sua irmã", ele não se considera parte da família; ele não é capaz de parabenizar Marcos pela gravidez da esposa mesmo quando este claramente espera algo do tipo; claramente é uma pessoa com cicatrizes profundas de um passado triste que o tornou amargurado. Diferente de Marcos, interpretado também de maneira eficiente por Leonardo Sbaraglia, de perfil menos misterioso e mais comum. Laia Costa atua como Laura, esposa de Marcos, encarnação viva da curiosidade humana, aproveitando-se da solidão para vasculhar os segredos alheios - o que acaba sendo fundamental na trama.

Assim, o filme acaba valendo pelo desfecho e pela atuação do sempre imperdível Darin, ainda que distante do seu potencial (graças, reitere-se, ao roteiro). Não é o melhor exemplar do cinema argentino, nem ficará na memória do espectador por muito tempo.

quinta-feira, 15 de junho de 2017

Baywatch -- Cinema com Rapadura

Estreia hoje nos cinemas brasileiros o filme BAYWATCH, versão cinematográfica da série "S.O.S. Malibu". A série fez sucesso e tem todo o mérito, mas o filme mereceu nota 3 na minha crítica, publicada no Cinema com Rapadura (clique aqui para ler).

quarta-feira, 14 de junho de 2017

Tudo e Todas as Coisas -- Cinema com Rapadura

O Dia dos Namorados já passou, mas, como todo dia é Dia dos Namorados, uma boa pedida para os românticos incuráveis pode ser o filme TUDO E TODAS AS COISAS, que estreia amanhã nos cinemas. Clique aqui e confira a minha crítica, publicada no Cinema com Rapadura.

segunda-feira, 12 de junho de 2017

A Múmia -- Casca muito fina

Em geral, o primeiro capítulo é aquele no qual o estúdio concentra todo o esmero, para garantir que o público se interesse pelo porvir. O Dark Universe da Universal Studios, então, começou muito mal com o fraquíssimo A MÚMIA, estrelado por Tom Cruise e com um roteiro, no mínimo, deficiente.

Nick (Tom Cruise) e Vail (Jake Johnson) são saqueadores de artefatos antigos que estão na região do Iraque à procura de riquezas. Por uma sequência de coincidências, descobrem acidentalmente a tumba de Ahmanet (Sofia Boutella), princesa que, na época em que a região era conhecida como Mesopotâmia, séculos atrás, teve seus planos interrompidos. A ideia de Ahmanet era celebrar um pacto com Seth, Deus de Morte, para juntos governarem o mundo, mas ela acabou sendo mumificada viva antes disso. Também acidentalmente, Nick, Vail e a arqueóloga (ou historiadora?) Jenny (Annabelle Wallis) despertam Ahmanet, que escolhe Nick para prosseguir com seus planos. As coincidências não são absurdas porque se trata de uma aventura que abusa da ficção, isso faz parte do seu DNA, mas é claro que um script arquitetado de maneira mais engenhosa seria recomendável.

Parece confuso, mas não é: Ahmanet era má, ia fazer maldades, a impediram ao mumificá-la viva; ela foi despertada sem querer pelo trio, quando então ela escolhe Nick para ajudá-la nos planos de governar o mundo, mesmo que ele não saiba e ainda que ele não queira; e Nick está então amaldiçoado. É apenas um emaranhado tamanho micro diante do emaranhado tamanho macro que é a proposta do Dark Universe, que reúne fantasias que, em tese, jamais iriam convergir. Um aperitivo já foi dado com a participação de Russell Crowe, que interpreta Henry Jekyll e Eddie Hyde. E foi um aperitivo indigesto: Crowe é reconhecidamente um grande ator, porém, quando o monstro se revela, é de uma maneira tão risível que Stevenson certamente se revirou de seu túmulo - é um ultraje à concepção do autor. A ideia original da dualidade é brilhante, não à toa tornou-se um clássico na literatura e recebeu várias adaptações no cinema, todavia, aqui, Mr. Hyde é apenas uma versão live action de Gru, provavelmente enxergando em Tom Cruise um minion.

Por outro lado, Cruise merece um elogio. Apesar de não ser dotado de prêmios e de participar de blockbusters esnobados pela crítica de maneira geral, Tom Cruise é um ator que se mantém firme na carreira há muitos anos e esse mérito ninguém tira dele. Sinônimo de bilheterias lucrativas, costuma investir em filmes de ação e tem em "Missão Impossível" a sua galinha dos ovos de ouro. Entretanto, não é segredo que ele procura um plano B, não o tendo encontrado com Jack Reacher, a nova esperança reside agora no Dark Universe, vez que Nick Morton é essencial. E qual a razão para os elogios? Como de costume, o ator está lá para exibir seu carisma e seu talento para cenas com adrenalina, pois é essa a área que ele realmente entende. E também para correr, porque filme de ação com o Tom Cruise precisa ter ele correndo. Contudo, em "A Múmia" ele não é apenas o mocinho, galã e bússola moral, tendo uma personalidade de moral questionável e mal visto por outras pessoas - perfil pouco comum na sua carreira. Normalmente, ele encarna o herói impecável, quase perfeito e digno dos maiores elogios; Nick, ao contrário, leva um tapa na cara porque merece e chega a ser humilhado por seu superior militar.

Ainda assim, tanto Crowe quanto Cruise mereciam um roteiro muito melhor - aliás, a própria Universal merecia. E até mesmo Sofia Boutella e Annabelle Wallis, cujos papéis são menores e cujas carreiras são bem menores, também mereciam um roteiro melhor. Pode parecer estranho afirmar que Boutella tem um papel menor, já que ela é "A Múmia" - a primeira múmia feminina -, mas fato é que ela serve de catapulta para a função de Nick Morton no que a Universal pretende mais à frente, seja lá o que for. Ao contrário do clássico Imhotep, Ahmanet não causa medo (apesar de forte e poderosa) porque é uma antagonista genérica cujo propósito raso a torna descartável e desinteressante. O fato de ser uma múmia mulher poderia ser aproveitado, mas não, tal fator se torna irrelevante e quase ignorado, apesar do talento promissor da atriz. Quanto à ideia de dominar o mundo... Pinky e Cérebro divertem mais.

A sensação que o roteiro deixa é: há mais pela frente. Apesar de ser um capítulo inicial, é clara a preocupação em deixar o terreno fértil para as continuações, porém, o plot é elaborado de qualquer maneira, exemplo é o desfecho que soa repentino e largado, como se o roteirista estivesse cansado e desistindo do projeto. Mas não é bem assim, porque o desenvolvimento também foi bastante falho, rendendo cenas vexatórias, como a da conversa entre Vail e Nick no banheiro - aliás, todo o humor que o filme tenta ter é ridículo. Jake Johnson tem um papel que alcança um nível irritante, pois Vail é a veia cômica do filme (esse é o nível do humor do longa), de conteúdo completamente sem graça.

Alex Kurtzman já comprovou que é um roteirista competente com "Além da Escuridão - Star Trek". O feito não é repetido em uma fração de qualidade, infelizmente. Porém, Kurtzman deve ter aproveitado para aprender com J. J. Abrams a condução dos efeitos especiais, pois aqui o diretor acerta no visual, e nesse quesito não há com o que se queixar: esteticamente, "A Múmia" é bem feito, com um design de produção bem elaborado, coerente e até mesmo criativo em relação à trilogia predecessora (aquela com o Brendan Fraser, infinitamente superiora, exceto no terceiro capítulo, que merece ser apagado da memória), pois não faz mera cópia. Também a ação é bem dirigida, com auge na cena do avião - embora se saiba que a mente por trás disso seja de Tom Cruise, que teve a coragem de tornar aquilo real. No entanto, é uma ação genérica, porque é um filme genérico, diferente da divertidíssima versão de 1999 (e a continuação de 2001), que se tornou inesquecível porque soube se conter dentro do seu próprio universo. Talvez essa ideia de expansão exagerada não seja das melhores. Conclusão: essa versão não é razoável sequer como blockbuster oco, sua casca é tão fina que não merece atenção.

Em tempo: alguns dizem que é o pior do ano. Exagero. Fica no top 10. Os efeitos visuais salvam do título.

quarta-feira, 7 de junho de 2017

Inseparáveis -- Deuses do cinema, cadê vocês?

É estranho pensar que Marcos Carnevale conseguiu que duas obras suas fossem refilmadas: "Elsa & Fred - Um Amor de Paixão" recebeu um remake hollywoodiano e "Coração de Leão - O Amor Não Tem Tamanho" foi refilmado na França. Curiosamente, o já clássico francês "Intocáveis" recebeu uma versão argentina, comandada por ninguém menos que Carnevale: INSEPARÁVEIS.

O plot é exatamente o mesmo do original francês: a amizade inesperada entre um rico empresário tetraplégico e seu inusitado assistente. A questão é: raríssimas vezes a cópia supera o original - e "Inseparáveis" não é exceção.

Seguindo a cartilha dos remakes, o roteiro é praticamente idêntico, inclusive com as mesmas cenas, como a que o assistente derruba chá quente nas pernas do empresário (e percebe que este não sente) e a que o assistente se surpreende pelo valor de um quadro de arte abstrata. Os interesses amorosos dos dois também são repetidos, sem grandes novidades. Até mesmo o drama pessoal do assistente é bastante similar, tudo para chegar na mesma conclusão temática, relativa à ternura no tratamento pessoal e na alegria de viver, algo que só Tito, o assistente, conseguiu ensinar para o empresário Felipe.

Portanto, para quem viu o francês, é tudo repetição do que já se conhece, nada substancialmente novo, nada criativo, apenas uma nova roupagem que sequer é inovadora. Para quem não viu, falta um diferencial que apenas o francês tem: Omar Sy. Dito de outra forma: o grande diferencial é Omar Sy, cuja ausência é sentida. Na versão francesa, quem atua como Phillippe é François Cluzet, um ator renomado cujo talento é comparável ao do argentino Oscar Martinez. Assim, no papel do empresário, a diferença não é sentida, embora Cluzet tenha se saído melhor - talvez não tanto pelo talento, mas pelo trunfo do "fator novo", pois, por ter aparecido antes, sua personagem ainda era inédita, fator que lhe foi favorável. O mesmo não se pode dizer de Rodrigo de la Serna, ator de interpretação forçada e muito aquém da espontaneidade cômica do já consagrado Omar Sy. Nesse caso, não é o "fator novo" que prepondera, é certamente o talento, pois Sy usa em seu favor o corpanzil desproporcional (em relação a um tetraplégico, ressalte-se) para dar o humor à personagem, ampliando a comicidade da cena. Vale dizer, é engraçado por si só imaginar um homem do seu tamanho limpando as fezes de um senhor deficiente, carregando-o na cadeira de rodas, dando comida na sua boca e assim por diante - essa é a parte da vantagem corporal. E o ator usa isso em seu favor, explorando o desconforto e a insatisfação, e até mesmo o aparente paradoxo (meramente visual, é claro) da cena - essa é a parte do talento. Já Rodrigo de la Serna é apenas um palhaço tentando fazer a plateia rir, sem êxito. Resumidamente, o assistente francês é muito mais engraçado, pois o ator é muito melhor.

Já no que se refere à direção, Marcos Carnevale, se não chega a ser Campanella, entende do ofício. Seu maior erro, além da fidelidade exagerada ao original, é não injetar DNA argentino à película, tornando-a genérica quanto à nacionalidade. Essa não foi uma preocupação de "Intocáveis" porque até então o filme era único, o que não é o caso de "Inseparáveis". Carnevale tem a preocupação de colocar Tito com uma camiseta com Bob Marley estampado quando ele fuma maconha, mas se esquece de dar uma personalidade argentina ao longa como um todo, algo que o caracterize, para além das locações. A trilha sonora recebe atenção em todo o filme, como no original, e é o único quesito em que o remake talvez supere o francês, pois, enquanto o europeu preferiu músicas cantadas e já conhecidas, o sulamericano usou músicas desconhecidas (talvez originais) e quase todas instrumentais. A única música não instrumental é memorável porque recebe a personalidade argentina que faltou nas demais cenas, pois presente em uma sequência bastante divertida, que, por sinal, já é divertida no filme de 2011.

E volta a questão: o original é de 2011; nesse caso, era necessário um remake em 2017? Artisticamente falando, a resposta é negativa. Porém, já está previsto uma versão hollywoodiana. Os tempos são de globalização também do cinema, em que filmes iranianos podem ser vistos por adolescentes estadunidenses, por exemplo. O momento da sétima arte é de explosão mundial, de difusão cultural e não repetição e mais do mesmo. Onde estão os deuses do cinema para salvar os cinéfilos de tantos remakes desnecessários?

segunda-feira, 5 de junho de 2017

Z - A Cidade Perdida -- Nat Geo no cinema

O nome Percy Fawcett pode ser desconhecido, contudo, ele pode ter descoberto uma civilização bastante antiga em plena floresta amazônica. É a sua empreitada que Z - A CIDADE PERDIDA tentou retratar.

Inicialmente, o protagonista é recrutado pelo seu governo para uma tarefa bem mais simples: um levantamento topográfico para mapeamento na fronteira entre Bolívia e Brasil (a pedido dos dois Estados, que precisavam de um terceiro para intermediar o conflito fronteiriço). Porém, o major acaba encontrando indícios de uma civilização antiga no local - aliás, um local onde poucos estiveram antes (nenhum homem branco) -, ficando fascinado e encontrando naquilo a missão da sua vida.

E por que o major Fawcett aceita a missão inicial? Sua motivação é bastante explícita: para restaurar a honra da família. A narrativa se passa no início do século XX, em um momento em que ele era politicamente irrelevante, enxergando no trabalho amazônico a chance de expurgar a sujeira que seu pai havia colocado no nome da família, bem como a catapulta para a ascensão social - o que era almejado por qualquer pessoa naquela época. A necessidade de abandonar a família para talvez nunca voltar simboliza um efeito colateral inafastável.

Licença poética ou não, a família de Fawcett é dotada de bastante personalidade. Seu volúvel primogênito ganha importância no terceiro ato, vivido pelo Spiderman Tom Holland. Já Nina Fawcett é interpretada com destreza por Sienna Miller em uma de suas melhores atuações. Considerando a época em que a narrativa se passa, é de se esperar um papel bastante passivo e desimportante. Grande equívoco: Nina é moldada como uma mulher brava, ainda que romântica e devota ao marido, capaz de insistir pela igualdade de direitos sem olvidar seu amor por Percy. Possivelmente um exagero enriquecedor do roteiro, tornando Nina Fawcett uma mulher muito à frente de seu tempo, capaz de se decepcionar pelo machismo do marido, capaz de argumentar que também tem condições de se aventurar pela floresta, mas também capaz de apoiá-lo incondicionalmente. Sienna Miller não é uma grande atriz, mas entendeu o que era necessário para dominar o papel.

Percy Fawcett também tem uma personalidade fascinante e serve com facilidade para o protagonismo proposto. Ao contrário de seus conterrâneos, que satirizam a hipótese de "selvagens (indígenas) na Abadia de Westminster", Fawcett fica encantado com a cultura indígena e com tudo que lá pode aprender. Charlie Hunnam foi uma escolha acertadíssima para o papel: o ator ainda tem muito a provar em Hollywood, todavia, no cinema, é este o seu melhor papel. Magérrimo, Hunnam toma para si o deslumbre de Percy pela Amazônia e seus segredos, confundindo-se na personagem. O figurino ajuda na questão da roupa: em Londres, ele usa um vestuário pesado com muitos casacos; na América do Sul, poucas roupas, bem largas. Sua dedicação, contudo, é visível, não apenas pelo suor real decorrente do calor amazônico com o qual ele certamente não está acostumado, como também pelo empenho em tornar tudo aquilo verossímil, talvez por ideologia por simpatizar com a história.

E esse empenho foi por toda a produção, pois a filmagem nos cenários reais da Amazônia boliviana permite a imersão do espectador na floresta, ao mesmo tempo em que concede a almejada verossimilhança - mesmo que tenha dificultado os trabalhos, pois filmar naquele local certamente não deve ter sido fácil. À fotografia amarelada da Irlanda que aparece no início e à Londres cinzenta do segundo ato contrapõe-se a riqueza natural de uma floresta que não foi à toa que seduziu o major Fawcett - e também seu fiel escudeiro Henry Costin, interpretado por um Robert Pattison que enfim se rende a um papel menor e que talvez tenha encontrado seu habitat.

A direção razoável de James Gray não chama a atenção para o bem, tampouco para o mal, exceto talvez pelo árduo trabalho nas locações reais (em detrimento da preguiça do CGI, felizmente ausente). Merece menção a direção de arte modesta, perceptível na cena de baile, logo no início. Vale dizer, tudo que o filme tem de melhor e de pior reside no roteiro: conforme já foi mencionado, o protagonista tem personalidade forte e suas motivações são bem expostas. A ausência de linearidade e a fuga dos três atos óbvios são trunfos, surgindo até mesmo uma espécie de vilão com um arco dramático breve. Tudo que se pode imaginar está lá, de escravagismo a canibalismo, de animais perigosos a contato com indígenas.

Porém, o filme é longo e um pouco cansativo, até mesmo pela ausência de perspectiva quanto ao encerramento, que, por sua vez, pode deixar a desejar por fugir um pouco do tradicional. Mais do que longo, parece alongado e achatado de maneira desnecessária, carecendo de uma montagem mais dinâmica e acelerada e cenas de maior aventura. A proposta permite mais aventura; entretanto, em alguns momentos, James Gray parece estar dirigindo um documentário para o National Geographic Channel, com um corajoso explorador desvendando mistérios e descobrindo uma tribo indígena reclusa em um local inexplorado. Quase uma traição à própria premissa! Em tese, o filme é uma ficção baseada em fatos reais. Não é isso todo o tempo. Talvez Gray não saiba, mas, para ver Nat Geo, não é preciso ir ao cinema.

sábado, 3 de junho de 2017

Um Homem de Família -- Cinema com Rapadura

Continuando a rotina (de filmes ruins), UM HOMEM DE FAMÍLIA é mais um filme dispensável - para dizer o mínimo - com Gerard Butler no elenco. Clique aqui e confira a minha crítica, publicada no Cinema com Rapadura.

quinta-feira, 1 de junho de 2017

Mulher-Maravilha -- Enorme acerto (crítica sem spoilers!)

O blog ficou um tempo sem atualização em razão do hiato sem filmes bons. Porém, felizmente, um ótimo filme entrou em cartaz e é o objeto da crítica que segue.
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Demorou, mas enfim em 2017 os cinemas recebem o primeiro grande filme-solo de uma maravilhosa heroína. "Elektra" era uma anti-heroína, logo, foge à regra. "Mulher-Gato" foi uma criação esdrúxula que não teve embasamento nas HQs, então também não está na mesma seara dos "filmes de heróis". Sem contar que ambos foram fracassos retumbantes. Depois de Homem de Ferro, Batman, Capitão América, Superman, Homem-Aranha e tantos outros homens heróis - até mesmo o desconhecido Homem-Formiga -, finalmente uma (mulher) heroína (tautologia necessária) ganha um filme apenas para ela. Isso representa uma mudança de paradigma no subgênero "filme de heróis": ainda que Viúva Negra, Feiticeira Escarlate, Mulher Invisível, Tempestade e Jean Grey estivessem presentes nos filmes coletivos (ou coadjuvantes nos filmes-solo), o protagonismo masculino nos estúdios demonstrava a covardia em permitir dar o estrelato para uma super-heroína. É por isso que a Warner começa com seu MULHER-MARAVILHA um passo à frente em razão da coragem ao dar à amazona um filme-solo.

E o filme é ótimo, necessário mencionar desde já. A maravilhosa protagonista é Diana (Gal Gadot), jovem ingênua que viveu sua vida inteira na paradisíaca ilha de Temiscira, onde ela é princesa. Como filme de origem, o longa expõe sua infância e a relutância de sua mãe para que Diana treine e aprenda o que é capaz de fazer. Quando o piloto Steve Trevor (Chris Pine) chega na ilha e anuncia a guerra que se espalha no mundo, Diana se comove e decide agir para trazer paz, saindo de Temiscira.

São dois eixos que conduzem o filme e que constituem seus acertos. O primeiro é a construção da personalidade de Diana, a partir de valores como heroísmo, bravura e altruísmo sem deixar de lado ingenuidade e bondade. Embora ela seja uma princesa, em momento algum ela se deixa levar pela sua posição social, tratando todos com respeito. As amazonas são superiores à humanidade em geral, porém, também não chegam à perfeição, tanto que a mãe da protagonista, inicialmente, não permite que ela treine. Em um gesto de proteção, ainda adolescente, a princesa protege a tia de uma repreensão da rainha, reforçando seu caráter bondoso. A ingenuidade de Diana é fascinante, parecendo quase uma criança com perguntas simples. Isso indicaria fragilidade, quando é notório o quão forte ela consegue ser. De um lado, sua puerícia permite um delicioso humor no roteiro, que definitivamente não é exagerado - isto é, a ingenuidade da heroína permite boas piadas, que se fazem presentes na medida certa, sem a insistência em piadas infantis em todas as cenas -, de outro, torna ainda mais encantadora a sua personalidade e combina com seu inigualável senso de justiça e heroísmo. Por viver isolada da sociedade, ela não abre mão do que ela considera correto, ainda que precise gritar com um general para expor sua visão dos fatos. Toda essa experiência resulta em bastante sabedoria para a heroína, que é explorada em momentos de narração voice over.

O outro eixo condutor é também premissa da produção, referente ao empoderamento feminino, questão espinhosa em uma sociedade na qual feminismo é antônimo de machismo, uma sociedade tola que alia feminismo ao pseudoneologismo "mimimi". Há um momento ácido (do ponto de vista do texto) em que Diana chega a afirmar para Steve que os homens são essenciais para a procriação, mas não para o prazer. A Mulher-Maravilha não recebe ordens de Steve para esperar enquanto ele age, ela faz o que acha certo, estando disposta, inclusive, a enfrentar um exército inteiro sozinha, se necessário for. É a representação máxima da suficiência em si mesma, ela basta em si mesma, não depende de ninguém para fazer o que quer - e o que acha necessário. Se Steve acha que é seu dever fazer algo para evitar que a guerra continue, por que seria diferente com Diana? Por que ele pode se arriscar e ela não?

Para dar conta de tudo isso, o elenco é escolhido com acerto. Gal Gadot interpreta com maestria a já mencionada ingenuidade de Diana, tendo um carisma perfeito para o papel. É verdade que ela derrapa na parte dramática, todavia, como a Mulher-Maravilha não envolve muito drama, isso não chega a ser problema. A química entre Gadot e Chris Pine ajuda bastante a tornar o filme mais leve e não se sustentar apenas na ação (que também existe em boa dose). Steve e Diana falam sobre a utilidade de um relógio, sobre casamento, sexo e outros assuntos. Eles são de mundos bastante distintos e é isso que faz com que se completem. Pine tem função majoritária de alívio cômico, mas também de óbvio par romântico. Trata-se de um ator experiente que agrega bastante à película por compreender as nuances da personagem, que alterna entre o seu próprio heroísmo (porque Steve também é um herói, só não é super) e o humor na interação com Diana. No primeiro ato, outras amazonas aparecem, deixando a sensação de que poderiam ter mais espaço, o que indica que deram certo. Danny Huston parece se divertir como um dos antagonistas; é um dos coadjuvantes de maior destaque.

A fórmula é básica, mas correta: reunir bastante ação, um pouco de romance, pouquíssimo drama e comédia em doses tópicas. Em tese, não teria como dar errado - e não dá mesmo. Patty Jenkins faz uma direção cujo saldo é bastante positivo. Existem momentos nonsense, como quando Diana sai de uma loja com espada e escudo em mãos, sem chamar a atenção das pessoas; entretanto, existem sequências preciosas, como a que a Rainha Hipólita narra para a filha ainda pequena a história dos deuses, momento em que estes aparecem em uma animação digital quase estática e bem lenta na voz da atriz Connie Nielsen. Especificamente em relação às cenas de ação, Jenkins erra em enquadramentos fechados, pois isso prejudica a visão do todo no ápice da adrenalina. Por exemplo, quando a Mulher-Maravilha levanta um tanque, seria melhor ver a proporção do tanque em relação a ela, em um plano mais aberto (isto é, o corpo dela inteiro e o tanque inteiro), e não um enquadramento em plano médio (aparecendo parte do corpo e parte do tanque). As coreografias de luta são muito boas e o slow motion combina com aquela adrenalina (até porque a heroína enxerga em velocidade diferenciada, já que deflete as balas, dentre outras habilidades), porém, as filmagens são em enquadramentos muito equivocados, certamente o maior erro da direção. Até porque a excelente música-tema, criada por Hans Zimmer, não é suficiente para um longa cujo mote é a ação.

A fotografia vai escurecendo com o passar do filme, o que combina com o desenvolvimento da própria narrativa, já que o primeiro ato é o que ainda não tem guerra. A estética do universo DC, iniciada por Zack Snyder em "Homem de Aço" é mantida, ainda que "Mulher-Maravilha" tenha tons mais alegres e maior leveza (o trailer de "Liga da Justiça" sugere o mesmo). O CGI é usado como a comédia: sem exagero. Embora presente desde o começo, fica mais carregado no final, um grand finale que reserva até uma surpresa. No terceiro ato, ainda, a mixagem de som é usada de maneira inteligente em favor da narrativa, quando Steve fala algo para Diana que ela não entende (fica quase no mudo), mensagem revelada apenas depois e que tem mais impacto no momento posterior.

Não se pode olvidar que o roteiro comete deslizes com subtramas pouco ou nada desenvolvidas. Ewen Bremner interpreta Charlie, amigo de Steve, que tem um trauma pessoal que ainda reverbera negativamente, mas que em nada contribui na trama. O filme não chega a ter "gorduras" de relevo, mas não se esmera nos subplots que menciona. Outro exemplo é o Chefe (Eugene Brave Rock), que alude a um trauma pessoal, afastando o maniqueísmo afirmado por Steve, sem desenvolver essa ideia - que, por sinal, é apenas sugerida em um diálogo bastante curto.

De todo modo, MULHER-MARAVILHA consegue ser original, bem feito, aprazível, divertido, engraçado e empolgante, fazendo valer o senso de heroísmo impregnado na protagonista, bem como a importância de existir uma super-heroína em termos de representatividade feminina. O longa tem suas falhas e limitações, até porque reside em um subgênero limitado cujos objetivos são também limitados (exceto quando tenta revolucioná-lo, o que não é o caso). Não tem o "fato novo" de "Homem de Aço", nem o tom épico de "Batman vs. Superman". Não precisou: dentro da proposta, é enorme o acerto da produção da Warner/DC.