domingo, 8 de outubro de 2017

Jogo Perigoso -- Não soube como terminar

Qualquer filme que tenha como argumento um tabu chama a atenção, de um lado, mas afasta espectadores conservadores, de outro. JOGO PERIGOSO parte do BDSM, todavia, seu itinerário é bem diversificado e gera um bom suspense.

Para evitar spoilers e melhorar a experiência (porque a sinopse oficial já entrega bastante), basta saber que o plot se inicia com um casal em crise que viaja para uma casa isolada no intento de aquecer o relacionamento. Momentos antes do sexo, o marido ingere um comprimido de Viagra; na hora, algema a esposa na cama. Não muito tempo depois, a aventura passa a ser um pesadelo para ela, que precisa lutar para sobreviver enquanto enfrenta traumas da infância não superados.

Assim, o filme é uma miscelânea de temáticas espinhosas e maduras, mescla que soa natural na maior parte do tempo. "Fantasia de estupro" (palavras dela) e BDSM são tabus desconfortáveis para a imensa maioria das pessoas, mas o interessante é que servem apenas de pretexto para adentrar em uma matéria muito mais madura - e outra, posteriormente, bastante sombria -, referente ao machismo. Vale dizer, a catapulta para o filme como um todo se tornar mais sombrio é o machismo do marido, que quer uma esposa submissa; o sexo é a metonímia da relação deles: forçado, artificial, desgostoso e, claro, com a evidente prevalência de uma das partes (nem é preciso dizer qual).

Nesse ínterim, a narrativa desenvolve uma espécie de transtorno dissociativo de identidade (TDI) dentro da cabeça da própria protagonista, de modo que surgem novas personagens a partir dela mesma. É uma ferramenta sagaz, inclusive para dar dinamicidade à trama, porém, acaba se tornando repetitiva. O melhor é que não há propriamente um vilão ou antagonista na película, embora a mente dela crie uma figura antagônica. Na verdade, em termos técnicos, adotando o modelo actancial de Greimas, a protagonista atua como sujeito cujo objeto é a sobrevivência, criando tanto um adjuvante quanto um opositor, ambos movimentando a trama com diálogos, ainda que sem muita ação.

(PARÁGRAFO COM SPOILERS) A parte sombria se refere, é claro (ao menos para quem viu o filme) à abordagem do Complexo de Electra do qual sofre a protagonista. O que ela buscava no marido era alguém semelhante ao pai; embora não de forma consciente, seu trauma da infância fez com que quisesse um homem que fosse o mais parecido possível com seu próprio genitor. Apenas uma nova experiência traumática teve o condão de fazê-la enxergar que o marido não era bom e que só tinha sido escolhido para, de certa forma, substituir a figura paterna. Jung explica. (FIM DOS SPOILERS)

Um roteiro com tantas camadas só podia ter saído da mente doentia inteligente como a de Stephen King, autor da obra original na qual o roteiro se baseou. Embora exista um esmero para abordar matérias acerca das quais a maioria dos autores foge, a construção das personagens não é das melhores. Maniqueísta, o texto sugere que o mundo é dividido entre vítimas e agressores, em uma visão simplista da realidade, o que não é digno do mestre do suspense. Entretanto, cabe reiterar a coragem em explorar assuntos marginalizados pelas artes populares.

O elenco conta, basicamente, com dois nomes, pois os demais integrantes do cast têm participação muito pequena. Carla Gugino é a valente Jessie, acorrentada (literalmente) à cama e à sina de enfrentar medos que estavam arquivados, mas não esquecidos. Sua atuação é medíocre, inferior à do experiente coadjuvante Bruce Greenwood, que é tão convincente no papel que se torna cada vez mais detestável.

"Jogo Perigoso" - no original, "Gerald's Game" (traduzindo, "O Jogo do Gerald") - está na média da carreira do diretor Mike Flanagan: acima do pavoroso "O Espelho" e pouco acima dos medianos "Ouija - Origem do Mal" (leia a minha crítica deste filme clicando aqui) e "O Sono da Morte", que são muito mais filiados ao gênero terror. Como o filme não é de terror, mas suspense, Flanagan não recorre aos clichês daquele gênero, dando um passo à frente. Aqui, ele usa bem sutilezas como a cor do carro e da cueca, mas não vai além do básico na câmera, salvo em um plano em que mostra a distância entre o olhar da protagonista e seu celular, com a mão no meio do caminho, sem poder pegar o objeto - a maneira como foi algemada foi bem eficaz. Enquanto suspense, no geral, a direção é eficaz, gerando momentos de tensão mesmo a partir de elementos simples como um copo de água. Visualmente, nada chama a atenção, exceto a cena do eclipse, em que é usado um filtro vermelho para deixar a cena ainda mais tenebrosa. É importante advertir que existem na película algumas (poucas) mutilações corporais que podem impressionar os espectadores de estômago mais frágil.

Em visão macro, sobressaem-se dois grandes defeitos no longa. A partir de um flashback no quarto da protagonista, uma cena entediante, o filme perde ritmo, se torna repetitivo, cansativo e enrolado. A despeito da sua curta duração, seu texto também é curto, logo, a bem da verdade, uma hora e vinte seriam suficientes. Ademais, o desfecho é bastante insatisfatório, deixando um enorme vazio através de uma mensagem praticamente niilista, em razão da qual a experiência cinematográfica se encerra quando o filme acaba. Interpretações extensivas são possíveis - e não só nesse filme -, mas, dessa vez, a sensação é a de que o autor não soube como terminar sua obra.

2 comentários:

  1. Achei legal que vc fala da questão de o filme retratar o bem e o mal, mas sendo que, na realidade, as pessoas são cinza, uma mescla dos opostos... A maioria dos filmes é simplista nesta parte

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    1. Exatamente. É algo que levo sempre em consideração nos filmes.

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