segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Bom Comportamento -- Refúgio

É no cinema independente que saem pérolas inigualáveis, como "Cisne Negro". A última edição do Festival de Cannes recebeu um exemplar dessa origem, BOM COMPORTAMENTO, uma coprodução entre EUA e Luxemburgo que, se não chega aos pés da grandiosa obra de Aronofsky, está muito acima dos sucessos comerciais rotineiros.

O plot é singelíssimo: os irmãos Connie e Nick assaltam um banco, a empreitada dá errado e Nick é capturado pela polícia. Decidido a resgatá-lo, Connie inicia uma jornada hercúlea recorrendo a todos os meios possíveis, mesmo sabendo que ele mesmo também é alvo das autoridades.

Rotulando a película em um gênero, é um filme de ação policial, cujo roteiro é raso e mal desenvolvido, vez que não consegue abrir mão de conveniências (como o ônibus esperando justamente como e quando Connie precisava), previsibilidades e até mesmo deus ex machina (o cachorro, já ao final). Não é um texto elaborado com requinte, arquitetado de maneira inteligente para quiçá montar um quebra-cabeças ao final. Exemplo disso é o mcguffin* que Connie e Ray pegam no parque de diversões, mas que acaba se tornando uma Arma de Chekhov** mal utilizada, já que seu desfecho específico é ignorado.

No entanto, o prólogo é magnífico ao apresentar o subplot das pessoas com deficiência. Sua qualidade não está propriamente no texto, até porque, nesse quesito, o filme é falho. Ocorre que, logo nos primeiros minutos, já é possível perceber uma direção diferenciada, que soube criar uma atmosfera magnética através dos closes e de uma mise en scène bem elaborada. É possível entender um pouco da temática que está por trás do longa, incluindo um trauma pretérito, ou seja, que uma das personagens (Nick) existia antes de o filme acontecer - pode parecer óbvio, mas alguns filmes passam a impressão de que sua diegese começou a existir no primeiro minuto da sua duração.

O elenco quase que se resume a Robert Pattinson, que vai bem como protagonista, dentro do seu talento ordinário. O que há de positivo a ser destacado é que ele enfim está abandonando o perfil de galã que a indústria insistia em imputar a ele, aceitando papéis mais desafiadores e, por assim dizer, alternativos - vide suas atuações em "Z - A Cidade Perdida" e "Life - Um Retrato de James Dean". Jennifer Jason Leigh tem uma participação minúscula, assim como Barkhad Abdi (aquele de "Capitão Phillips"). Taliah Webster é uma estreante de personalidade e Buddy Duress tem a comicidade acidental que o papel demandava.

Ben Safdie participa do filme como ator e codiretor, tendo êxito nas duas funções (na verdade, é também um dos montadores). No papel de Nick, Safdie vive um jovem com deficiência psicológica tão alienado e eventualmente apartado da realidade que sua condição se torna preocupante, tornando Connie uma figura (ainda mais) moralmente dúbia. Melhor dizendo: a atuação de Pattinson já é boa o suficiente, mas Safdie ajuda no envolvimento do público em relação à dubiedade de Connie. A dupla funciona muito bem.

Ben Safdie trabalha com Joshua Safdie na ótima direção do longa, provavelmente o que oferecem de melhor. Nas cenas de ação, a trilha sonora é movida por uma música bem agitada, com batidas eletrônicas que estimulam a tensão, em um ritmo sonoramente cíclico, que acaba sendo fundamental na tensão e, mais uma vez, consegue fixar o espectador na trama. Também os planos fechados, embora angustiantes, auxiliam para criar a atmosfera impactante que os diretores moldam, tornando a película mais atrativa. A direção de fotografia é sensacional, abusando dos cenários noturnos, com composições cuja referências são os guetos, corroborados pelas maquiagens realistas e pelo maravilhosa execução da iluminação. Na casa da idosa, por exemplo, a filmagem fica nas sombras, dando a ideia de algo obscuro; depois, no parque de diversões, é criado um efeito de neon, sugerindo uma sensação tenebrosa à noite. Sem dúvida, é uma estética elogiável. Isso tudo sem contar a tocante cena ao final, que mostra a versatilidade dos Safdie.

"Bom Comportamento" provavelmente não tem potencial para figurar nas grandes premiações que virão. Isso não no aspecto financeiro apenas, mas mesmo do ponto de vista técnico, é um filme que tem virtudes, mas também tem claras limitações. O cinema independente, ainda assim, permanece como um refúgio à mesmice do cinema comercial.


--
*Mcguffin (macguffin ou maguffin), expressão popularizada por Alfred Hitchcock, é um dispositivo de enredo, que consiste em um elemento do plot que motiva, em geral, a personagem principal, isto é, normalmente é um bem material (mas pode ser também um lugar, uma pessoa, dinheiro, ou coisas imateriais, como sucesso, amor etc.) que a personagem busca para si, sem ser essencial para a narrativa, embora consiga mover a trama. Exemplos: Rosebud em "Cidadão Kane", o colar no filme "Titanic", o Um Anel em "O Senhor dos Anéis" etc.

** “Arma de Chekhov” é uma expressão usada para designar um objeto constante no texto, aparentemente insignificante, mas que, em um momento posterior, revela sua importância. Dizia o autor que “não se deve colocar um rifle carregado no palco se ninguém estiver pensando em dispará-lo” (daí a ideia de “arma”, que, na verdade, pode ser qualquer objeto). O ensinamento de Chekhov é que um bom roteiro não deve dar espaço a frivolidades, inserindo objetos sem uso algum.

Nenhum comentário:

Postar um comentário