sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Invasão Zumbi -- Um deleite para quem busca adrenalina

Seria INVASÃO ZUMBI uma mistura de "Madrugada dos Mortos" e "Guerra Mundial Z"? Essas são as suas principais influências, porém, o filme tem bastante autenticidade e merece ser visto até mesmo por quem não tem predileção por filmes que envolvam zumbis. Trata-se de um filme com zumbis, e não um filme de zumbis, razão pela qual seu público-alvo é elastecido. E mais: é uma ficção de ação, e não um terror, nem mesmo um thriller. Assim, quaisquer pré-conceitos com os filmes que tenham zumbis podem ser flexibilizados com este exemplar coreano - afinal, se o Brasil recebe um filme coreano (evidentemente, a do Sul) em seus cinemas, algo especial ele deve ter.

Na trama, um jovem pai recém-divorciado - melhor evitar os nomes complicados como Sung-kyung e Young-suk -, reconhecendo a própria desídia paterna ao priorizar sempre o trabalho em detrimento da família, acata o pedido da filha de uma viagem para Busan - é isso que justifica o nome em inglês, "Train to Busan", muito melhor que o brasileiro reducionista e genérico "Invasão Zumbi". Durante a viagem, pai e filha precisam lidar com uma espécie de vírus que se espalha lá dentro e que transforma as pessoas em zumbis. Também durante a viagem, conhecem outras pessoas que têm o mesmo desafio a enfrentar, sem saber como chegarão ao destino, tampouco se Busan está ou não infectada.

Se tem zumbis, é um filme de zumbis, certo? Errado! Conforme anunciado no introito, eles estão lá, todavia, não é esse o foco do filme, funcionando mais como motor narrativo do que núcleo temático. Aliás, não se sabe sequer em que consiste a condição das pessoas afetadas - do ponto de vista biológico, é claro. Zumbi é a palavra genérica e versátil encontrada para explicar um estado que alia racionalidade diminuta, incapacidade de fala, aparência de fraqueza (pele bastante clara, em especial) e necessidade de atacar os não infectados através de uma mordida infecciosa - dentre outras mais, reveladas com o desenrolar da narrativa. Não se sabe, por exemplo, se existiria uma cura para retorno ao estado sadio, ou se os zumbis estariam efetivamente mortos. Tampouco é conhecida a origem da epidemia (a origem remota, pois a origem no trem é conhecida). Conforme se percebe, o estado de saúde das pessoas infectadas (causa, origem, cura etc.) é ignorado porque não é relevante. O que é relevante é um estudo sobre o ser humano e sua resposta em situações extremas - de maneira mais específica, o roteiro gravita em torno de caracteres humanos como solidariedade, egolatria e sacrifício, valores questionados também em situações comuns.

Em outras palavras, os zumbis estão lá para justificar a ação, para mover a trama, enquanto que o que o filme realmente aponta o dedo é a natureza humana (se preferir, natureza do ser humano). Isso se faz presente logo nas primeiras cenas, em que fica claro que o pai dá mais atenção para o trabalho do que para a filha. De tudo isso se conclui que, apesar do contexto aparentemente raso, há muito conteúdo reflexivo no longa, o que não é comum no "cinema zumbi" - exemplo recente é o desprezível "Como Sobreviver a um Ataque Zumbi". É a comprovação de que olhar crítico pode conviver com a ação: "Train to Busan" é dotado de uma ação enérgica e de uma adrenalina fulgural. Aqui o mérito reside com o diretor Sang-Ho Yeon, que é hábil para moldar a progressão dos ataques (a ação/tensão é crescente) e corajoso ao adotar alguns takes longos que não são comuns em ficções tão sobrenaturais.

É interessante também perceber que são vários os ataques durante o dia (a existência de luz torna explícita a violência), o que permite ao espectador visualizar com bastante nitidez o que está acontecendo. Não são raras as fitas que preferem uma fotografia escura (inclusive com montagem acelerada) para facilitar a elaboração do produto, mesmo que isso reduza a experiência do público. O cenário principal colabora com os planos fechados das filmagens, pois o trem reduz o campo ao mesmo tempo em que eleva (ainda mais) a nitidez. Em "Invasão Zumbi", tudo é muito bem visto, o que permite elogios pela coragem, mas também exige que se reconheça que a precariedade decepcionante da maquiagem e os efeitos visuais básicos (para dizer o mínimo). Entretanto, isso se justifica pelo baixo orçamento (até porque não é um hollywoodiano), claramente impactante onde o dinheiro pode ser um diferencial. Não é o caso da formidável edição de som, cirúrgica nos momentos mais cruciais e fazendo a diferença inclusive em momentos nos quais o ataque não é completamente visto - trata-se de um raro caso de sutura sonora, em que o espectador preenche parcela da cena a partir tanto do que vê e ouve quanto pelo que não vê e ouve. Funciona como um recurso de imersão do público, aquilatando o trabalho como um todo.

Sim, momentos trash também estão lá, como a risível descoberta de um ponto fraco dos zumbis. No entanto, a ação é tão alucinante que o filme sul-coreano é um deleite para quem busca adrenalina. O drama é unidimensional, as personagens são exploradas de maneira breve... para a sua proposta, porém, "Invasão Zumbi" acerta em quase tudo.

Minha Mãe é uma Peça 2 -- Talento único

Em "Vai que Cola - O Filme", Paulo Gustavo - em tese, sua personagem - ouve que é melhor atriz do que ator (razão pela qual se veste de mulher em determinado momento do filme). É difícil afirmar que essa já é uma verdade (embora aparentemente seja), todavia, como dona Hermínia, o comediante é espetacular. O talento de Paulo Gustavo para (inspirado na própria mãe) interpretar a inigualável dona Hermínia é sem precedentes. Não é nem o caso de papel que nasceu para o artista, é muito mais que isso, é um conforto, um nirvana artístico. Paulo Gustavo não atua como dona Hermínia, Paulo Gustavo é a dona Hermínia. Portanto, MINHA MÃE É UMA PEÇA 2 pode receber o perdão pelos pecados narrativos: nada que o ator não faça o espectador esquecer.

Explica-se. O primeiro filme serviu para o público conhecer o contexto do projeto: uma mãe superprotetora e de humor instável, uma filha "aborrecente" - levemente preguiçosa e suavemente comilona -, um filho gay que ainda não saiu do armário e um pai divorciado e pouco presente. Respectivamente, dona Hermínia (Paulo Gustavo), Marcelina (Mariana Xavier), Juliano (Rodrigo Pandolfo) e Carlos Alberto (Herson Capri). Para a continuação, todos eles voltam com novidades: Hermínia agora está rica e bem-sucedida com um programa de televisão para falar sobre o que mais entende (a maternidade, é claro); Juliano se descobre bissexual; Marcelina procura um emprego em outra cidade para ganhar independência; e Carlos Alberto, carente, não está mais com a Soraya (Ingrid Guimarães, que participa apenas do primeiro filme). Além disso, o primogênito Garib (Bruno Bebianno), que pouco aparece no longa antecessor, resolve visitar a mãe levando seu filho arteiro. Como se não bastasse, Lucia Helena (Patricya Travassos), a irmã que mora em Nova Iorque, também visita Hermínia. É de onde começa a confusão.

A própria dona Hermínia reconhece que "mãe é coisa que rende" - como discordar? Paulo Gustavo admite se inspirar na própria mãe (que faz uma participação especial no final da película, assim como no primeiro volume), provavelmente com algum exagero, para encarnar, em uma só personagem, todas as caracaterísticas comuns das mães. Isto é, o ator reúne todos os estereótipos maternos, concedendo exageros fundamentados na necessidade humorística. Assim, o plot não foge muito da repetição do que já foi visto outrora: proteção materna exacerbada, gritos, broncas, verdades desconfortáveis, ciúme de mãe e assim por diante. É extremamente provável que alguma mãe em algum momento se identifique com alguma situação, ainda que não admita - na mesma linha de raciocínio, filhos identificarão as suas mães. Trata-se da inteligência do roteiro ao criar situações tais, mas muito mais de Paulo Gustavo, que encarna a personagem com tanta naturalidade (e comicidade ímpar) que parece uma personalidade alternativa habitando o mesmo corpo. Não é um homem se vestindo de mulher, mas um ator trabalhando como poucos no cinema nacional.

O resto do elenco, no geral, vai bem. Ninguém do elenco destoa substancialmente, mas fato é que dona Hermínia naturalmente recebe os holofotes - e dá conta do recado. Uma ressalva precisa ser feita quanto a Samantha Schmütz, que vive personagem descartável e que reflete uma visão preconceituosa (justificada pela liberdade artística na necessidade humorística). Por outro lado, Suely Franco retrata com delicadeza a Tia Zélia, reduzindo a comicidade da película em prol da existência de um núcleo dramático sensível. A tristeza está lá, e na medida certa. No mais, Patricya Travassos é a atriz de expressão singular de sempre, com um jeito irritante que todo papel seu possui. Não obstante, é inegável que o roteiro dá espaço para todos, girando em torno da protagonista, exercerem talento humorístico a partir de um texto com boas ideias cômicas - novamente, graças a Paulo Gustavo, em coautoria com Fil Braz. A fita tem cenas que não são tão engraçadas, mas também possui cenas hilárias, como a que Hermínia conhece o novo apartamento de Marcelina. Como comédia, a função é muito bem cumprida.

Porém, como narrativa, o script é uma negação. O filme funciona quase como uma sequência de esquetes com um tênue fio condutor, de função meramente cronológica. Talvez tenha sido uma montagem mal feita - exemplo claro é a participação de Fátima Bernardes, absurdamente dispensável por não acrescentar absolutamente nada -, fato é que as cenas parecem soltas como se houvesse um recorte de episódios aleatórios da vida das personagens, sem existir uma narrativa bem elaborada, com clímax, evolução e estrutura. A princípio, isso não afeta a graça do filme, mas é desconfortável recordar que são piadas soltas em um longa-metragem sem narrativa. Mesmo a boa dose de realidade no texto (como a sinceridade infantil na avaliação da maquiagem da tia Zélia) ou a inteligente inversão dos padrões sociais quanto à sexualidade (a cabeça de dona Hermínia quanto ao tema é tão peculiar quanto ela própria) tornam-se virtudes acinzentadas diante de uma precariedade na elaboração do desenvolvimento do enredo. Há uma excelente ideia para o argumento, destrinchada de maneira amadora.

O final deixa claro o caminho para um terceiro episódio. Se houver, pode ter um roteiro pobre como "Minha Mãe é uma Peça 2", mas será divertido e engraçado tanto quanto este, pois Paulo Gustavo tem um talento único para ser engraçado como dona Hermínia, valendo o segundo e um possível terceiro filme.

Neruda -- Seria bom se não fosse chato


É provável que Pablo Larraín ainda não seja um diretor conhecido pelo grande público brasileiro. Contudo, seu filme “Jackie”, que ainda não estreou no Brasil, deve figurar em algumas categorias no Oscar (ao menos uma indicação de melhor atriz para Natalie Portman), tornando seu nome mais famoso. “Neruda”, por sua vez, tentou concorrer a melhor filme estrangeiro. Não seguiu na disputa (pela indicação) porque, de fato, não atingiu o nível desejável.

Embora o título indique tratar-se de uma cinebiografia de Pablo Neruda, na verdade, o argumento é bastante inusitado ao manter-se em um recorte bem específico. Conhecido no mundo todo e cada vez mais engajado na política chilena, como comunista opositor ao regime vigente, o poeta passa a ser perseguido político, a ponto de o presidente designar um policial específico para efetuar a sua captura – que, porém, se torna um infindável jogo.

O primeiro problema do roteiro é que o argumento serve de pretexto para uma subversão narrativa, aliando o recorte histórico real (e suas implicações políticas, paulatinamente deixadas em segundo plano) a um lirismo poético confuso. Há um nítido exagero, que prejudica a função pedagógica ao aquilatar em demasia o viés poético da película. Muito embora o explosivo e sensacional prólogo flerte com uma intensidade empolgante, cada vez mais a obra assume que abraça a arte em seu sentido puro em detrimento da faceta histórica do enredo – o que, inclusive, danifica a narrativa, que se torna rocambolesca e nada envolvente. Resultado? O filme é chato!

Verdade seja dita: se o roteiro erra (narração voice over geralmente é indicativo de preguiça) no desenvolvimento (por exemplo, como o policial arranja tantas pistas do paradeiro de Neruda?), acerta na conclusão e, principalmente, em seu lado cômico. Não que o filme se torne uma comédia, mas as pitadas de ironia e sarcasmo são bastante aprazíveis. Saem desses momentos conclusões inteligentes, como a cena em que o policial Peluchonneau (Gael García Bernal, contido, mas eficiente) admite que o chefe do seu chefe (o presidente chileno) é o presidente dos EUA, ou a divertida cena da rádio. O zênite consiste no retrato ácido da bipolarização política radical, uma lamentável demonização do posicionamento alheio que gera intolerância e, em última análise, vítimas – fato inegavelmente ainda contemporâneo e presente até mesmo na realidade brasileira. O longa tem seus bons momentos, que acabam sendo espasmos dentro de um marasmo que conduz o público ao tédio.

A opção de Larraín pela estética noir em nada contribui para tornar o filme dinâmico – ainda que fique belo. A insistência na fotografia chiaroscuro (exceto quando o cenário é a magnífica Cordilheira dos Andes) e, mais ainda, na perenidade de um dispensável uso de contraluz, gera um visual incômodo e cansativo. Cenários noturnos, narração e ângulos baixos de filmagem são elementos do subgênero noir, todavia, seu uso deve ser cuidadoso, sob pena de causar bocejos na sala de cinema – a solução seria uma narrativa instigante, o que não ocorre.


Há que se reconhecer virtudes da fita. Luis Gnecco faz excelente interpretação de Neruda, a direção de arte é irrepreensível e a trilha sonora é soberba (talvez o que o filme tem de melhor). Contudo, nada disso adianta se o espectador não se sente seduzido pelo plot. Ao revés, a sensação que fica é de que, se não fosse chato – ou ao menos se fosse mais curto –, o filme seria bom.

Capitão Fantástico -- Vocação para filme cult

Se existem filmes com vocação para serem rotulados de “cult”, “Capitão Fantástico” é um grande exemplo. Lamentavelmente, esse termo recebe uma carga axiológica negativa, quando o fato de ser cult não o torna monótono ou tedioso, apenas afastando-o do cinema mainstream que prevalece. Uma pena: todos deveriam assistir a esse filme.

No enredo, Ben (Viggo Mortensen) cria seus seis filhos longe da civilização, no meio de uma floresta. Apesar de não terem ensino formal por não freqüentarem a escola, o pai é exigente com tudo que ensina, que varia entre habilidades para sobrevivência (luta, caça, escalada etc.) e aprendizado intelectual (por leituras complexas de, por exemplo, literatura, filosofia e física). Tudo muda quando eles saem da floresta e reencontram os familiares em razão de um evento trágico.

Se fosse possível resumir o filme em uma curta expressão, seria “choque cultural”. De maneira inteligente, o longa não começa com o abismo intradiegético: consciente da sua diegese heterodoxa, primeiro integra o espectador naquela realidade, para depois contrapô-la internamente, com outras personagens. Em outras palavras, antes de escancarar um abismo – de um lado, a vida de Ben e seus filhos na floresta; de outro, a vida dos demais familiares em meio à civilização –, o diretor e roteirista Matt Ross prepara o público em relação às idiossincrasias das personagens principais.

Não por outra razão, o prólogo consiste numa encantadora contemplação da natureza (bem ao estilo “Na Natureza Selvagem”, referência clara), seguida de uma explicação visual dos hábitos da família (mais uma vez, com inteligência, evitando o didatismo exacerbado da narração). Qual a razão de ir ao mercado quando se pode caçar e plantar os alimentos? Ben é um crítico voraz a tudo que esteja relacionado à civilização (escolas, hospitais, cristianismo, alimentos industrializados, refrigerantes etc.), o que impacta na criação dos filhos, que não jogam videogame (este lhes causa asco, em sua maioria), mas aprendem sobre Noam Chomsky. Não são crianças quaisquer que conseguiriam rotular os avós como “capitalistas fascistas” entendendo o significado da expressão.

Verifica-se um embate cultural tanto em relação às crianças quanto aos adultos. O que é melhor para criar os filhos: falar sempre a verdade (sobre tudo) ou evitar tanta transparência? A melhor parte é que o filme faz o público pensar, sem o intento de doutrinar – até porque não existe uma forma correta de viver a vida e de criar os filhos. Viggo Mortensen dá vigor ao papel que interpreta, contribuindo para a função questionadora de Ben. Se o plot seguisse o ritmo clássico, o avô (Frank Langella em mais um coadjuvante de luxo) seria o vilão, mas o texto prefere transcender os arquétipos, sendo, sem dúvida, um roteiro repleto de camadas.

O repetido mantra da preferência da prática em detrimento do mero discurso também é comprovação da riqueza do script, que, contudo, peca bastante no desfecho, que é uma solução deveras fácil para a complexa situação em que as personagens se encontram. Mesmo na direção existem virtudes – como as contagiantes cenas musicais, com auge em “Sweet Child O’Mine” – ao mesmo tempo em que se verificam alguns equívocos – como a prevalência de tomadas curtas, reduzindo o realismo. Chega a ser desconfortável a quase exclusividade de planos fechados e closes, opção para aproximar as personagens do espectador, mas que prejudica bastante a visualização do contexto e da própria mise en scène.


Como comédia dramática, “Capitão Fantástico” vai satisfazer grande parcela do público, ao menos em razão da sua originalidade (algumas cenas são inesquecíveis, de tão inusitadas). Como contribuição para a sétima arte, deverá ser muito lembrado por sua vocação como filme cult – nesse caso, na melhor acepção do termo.

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

O Nascimento de uma Nação -- Cinema com Rapadura

Dirigido, roteirizado e protagonizado por Nate Parker, O NASCIMENTO DE UMA NAÇÃO é um longa que não chega a impressionar, mas que possui relevância incontestável na sétima arte graças à temática abordada. Clique aqui e leia a crítica.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Rogue One - Uma História Star Wars -- Todos ficam satisfeitos

Seria ROGUE ONE - UMA HISTÓRIA STAR WARS um prequel do episódio IV ("Star Wars Episódio IV: Uma Nova Esperança", lançado em 1977)? Seria um fanservice, inclusive no intento de manter a cinessérie fresca na memória (lançando filmes anualmente)? Um caça-níqueis? Provavelmente, um pouco de cada.

Na trama, Jyn Erso (Felicity Jones) foi afastada de seu pai, Galen Erso (Mads Mikkelsen) ainda criança, pois Galen foi forçado pelo diretor Krennic (Ben Mendelsohn) a construir a arma mais poderosa do Império, a Estrela da Morte. Quando adulta, Jyn é resgatada pela Aliança Rebelde após ter sido prisioneira, com a condição de ajudar em uma missão que envolve seu pai e Saw Gerrera (Forest Whitaker), que o criou. Juntamente com o capitão Cassian Andor (Diego Luna) e o androide K-2SO, Jyn aceita a tarefa e inicia uma empreitada que acaba sendo maior que a prevista.

De início, o argumento é bastante próximo de "Uma Nova Esperança", porém, em um contexto menor, pois sem jedis e, principalmente, sem o grande nome da trilogia antiga, Luke Skywalker. Sem Luke e sem os jedis, mas com a opressão do Império e com a Estrela da Morte. Assim, "Rogue One" acaba tendo começo, meio e fim - afinal, não se assume como episódio, seria, pois, um recorte de fatos do gigantesco universo Star Wars (SW). Em razão da sua estrutura enclausurada, recebe benefícios tanto quanto desvantagens. De um lado, independe do pleno conhecimento da diegese de SW (embora seja aconselhável algum conhecimento, em especial no que se refere à trilogia antiga), consistindo, em termos cinematográficos, na obra mais hermética. No entanto, torna-se um alienígena naquele "planeta" (o planeta SW), fadado a um possível esquecimento no agrupamento da cinessérie - inclusive porque não alcança o nível memorável como os episódios IV e V (e mesmo o VII, pela exumação). Pior: sem surpresas. A tarefa proposta, vale dizer, o desafio das personagens, já é plenamente conhecido, o que reduz o impacto do plot. O destino do Império e da Estrela da Morte já é conhecido, caso contrário, não haveria episódio IV. Qual a expectativa de uma narrativa cujo desfecho já é público? Essa é uma armadilha criada pelo próprio roteiro contra si mesmo, e que não tem solução no script.

Não obstante, o plot é bastante fiel ao universo SW e suas idiossincrasias. Provavelmente fornece easter eggs que apenas os fãs mais devotos conseguem identificar - embora o espectador já iniciado pesque eventuais referências, como "templo kyber" e, claro, a "força" (no sentido que só tem lá). E vai além, com novas criaturas, como Bur Gullet (a cena é dispensável, mas incrementa a mitologia SW). Ainda no que tange à fidelidade, o filme conta com participações especiais nostálgicas, algumas delas que fazem toda a diferença emocional, mesmo que descartáveis dentro da narrativa. {SPOILER ALERT a partir daqui: quando Darth Vader aparece, os fãs deliram e o espectador não fã deve reconhecer que a sua presença imponente causa impacto retumbante. Com efeito, Darth Vader é um dos maiores vilões da sétima arte, quando ele aparece - inclusive com entrada triunfal -, a expectativa aumenta (em relação ao que ele fará) e ele não decepciona. Os momentos com "Lorde Vader" são sensacionais, talvez maiores que o filme inteiro: apesar de serem curtas as suas cenas, fazem valer o ingresso . Existem também outras participações nostálgicas, que não serão mencionadas, para preservar a surpresa. FIM DO SPOILER}. De maneira inteligente, a utilização de androides como alívio cômico é reiterada, desta vez, K-2SO tem o diferencial de ser um tanto insubordinado.

Nesse sentido, de forma ampla, o longa é falho na construção das personagens. Diferentemente do que ocorre com Luke, Leia e Han, o público não se vê impelido a torcer por Jyn, Cassian e K-2SO. Provavelmente seja isso que justifique a exumação das participações especiais nostálgicas mencionadas, pois as novas personagens não têm carisma por si sós. A culpa não é de Felicity Jones (Jyn), Diego Luna (Cassian), Mads Mikkelsen (coitado, Galen quase nem teve tempo de tela!) ou de ninguém do elenco. O elenco é razoável e faz um trabalho competente, porém, o espectador não se envolve com as personagens porque a proposta do enredo é uma tarefa que se sobrepõe às pessoas, isto é, mais importante, no texto, que questionar quem é Cassian, é questionar qual a sua função na Aliança Rebelde. Aliás, a motivação das personagens é superficial, mais uma vez diametralmente oposto ao que acontece na trilogia original. Quanto aos coadjuvantes, enquanto Donnie Yen vive um interessantíssimo Chirrut Imwe, Forest Whitaker faz um dos seus piores trabalhos da profícua carreira. Seu overacting é constrangedor e a caracterização não basta para o papel. Ben Mendelsohn atua como o vilão, o diretor Orson Krennic, que não está à altura de SW. Um ator que ainda precisa convencer e, principalmente, mostrar que seus vilões conseguem ter mais de uma expressão maléfica na face. No caso de Krennic, todavia, falta substância no script. Como se percebe, para um universo maniqueísta como é o de SW, falhar na construção do antagonismo é equívoco primário que quase prejudica a obra como um todo.


E por que não prejudica? Porque a direção de Gareth Edwards é excelente - mas não perfeita, conforme se verá. Seu grande acerto reside nos magníficos efeitos digitais, que são de uma qualidade digna da representatividade de SW nessa seara. Com efeito, o design de produção é novamente fenomenal, merecendo destaque a exibição inteligente da atmosfera dos diferentes planetas - árida onde há uma minoria oprimida pelo Império, mas com uma exuberante natureza onde seria a "residência" deste. Porém, algumas falhas também merecem menção. Edwards desconhece a linguagem 3D, por insistir na pouca profundidade de campo - mesmo o 3D ativo não é digno de elogios. Apesar do seu domínio do CGI, a reconstrução digital de personagens é artificial e desnecessária - exemplo claro é do falecido Peter Cushing (é fascinante que a tecnologia permita que um ator falecido participe de um filme, mas a artificialidade foi prejudicial). Ainda do ponto de vista estético, o design de som é razoavelmente fiel ao original, mas a trilha sonora de John Williams é insubstituível e faz muita falta.

Mesmo com todas as ressalvas, "Rogue One" tem o mérito de ser o primeiro filme SW com conteúdo voltado a um público adulto. Os dois elementos centrais da criação de George Lucas, star e wars, estão em peso no novo longa, tornando-o um pouco inadequado ao público infantil - em especial pelo segundo, pois tem um contexto bélico bastante intenso e perene na fita. Não que seja despido de leveza, existem momentos mais leves e levemente cômicos, mas a guerra se faz presente de maneira constante. O outro lado da moeda é que há sequências de batalhas muito longas: os efeitos digitais, reitera-se, são de primeiro nível, mas alguns momentos chegam a cansar, de tão alongados. É evidente que Edwars se empolgou com a liberdade que teve ao fazer um SW um pouco diferente, pois teve maior espaço, por exemplo, que J. J. Abrams no episódio VII. Porém, ele poderia ter sido mais sucinto. Outra evidência do teor maduro da obra é o retrato das guerras em países árabes - seria Jedha a síria de SW? Expor de forma nua cidadãos comuns combatendo soldados e, ainda mais impressionante, uma criança chorando em meio aos tiros, diverge muito do que até hoje se viu nos sete episódios - ainda mais considerando que a detentora dos direitos é a Disney.

Em síntese, ROGUE ONE - UMA HISTÓRIA STAR WARS se assenta em um paradigma mais realista e trágico que os filmes predecessores, sem abandonar suas premissas básicas. A narrativa deixa bastante a desejar, porém, na tarefa de ser um SW diferente o longa tem êxito, sendo um bom filme para quem não é fã desse universo e um ótimo filme para quem é fã. Melhor retificar o primeiro parágrafo: não se trata de um caça-níqueis, visto que honra a grandiosidade e o legado do que George Lucas idealizou. O lucro imenso é consequência, não o objetivo primário. É assim que todos ficam satisfeitos.

Michelle e Obama -- Cinema com Rapadura

Clique aqui e confira no Cinema com Rapadura a minha crítica de MICHELLE E OBAMA, um filme bem ao estilo da trilogia "Before", de Richard Linklater, mas consideravelmente inferior. Narra o primeiro encontro do casal Michelle Robinson (nome de solteira) e Barack Obama, recebendo 7 como nota.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Fallen -- Cinema com Rapadura

"Crepúsculo" não é aquele primor de franquia voltada ao público adolescente. Não obstante, recebeu um herdeiro que consegue ser inferior: FALLEN. Clique aqui para ler a crítica deste filme, um dos piores de 2016.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Jack Reacher: Sem Retorno -- Cinema com Rapadura

Não são raras as sequências inferiores em relação aos seus antecessores. JACK REACHER: SEM RETORNO não foge dessa regra. Clique aqui e confira a minha crítica.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Rainha de Katwe -- Ketchup

Sexta-feira, fim de expediente. Diante de tantas opções, nada como um delicioso hambúrguer. Pão de hambúrguer, carne bovina - quiçá duas ou mesmo três fatias -, queijo, molho, bacon, tomate. Para beber, refrigerante. Como acompanhamento, batatas fritas temperadas ao gosto do freguês no ketchup. Um tempero banal, mas que encanta crianças africanas em RAINHA DE KATWE, filme Disney sobre uma enxadrista ugandense, Phiona.

Phiona é uma jovem órfã de pai cuja vida em uma região pobre de Uganda lhe é difícil em vários aspectos: sem acesso à educação, é analfabeta; com moradia precária, dorme praticamente no chão; na escassez de recursos, precisa ajudar a mãe a aumentar a renda familiar para o sustento, o que também limita sua alimentação. Graças a Robert Katende, que faz trabalho voluntário, o mundo de Phiona adquire novas perspectivas dentro do xadrez. Graças ao seu talento, a jovem pode ter uma vida diferente da pobreza que parece inafastável. Sim, mais um filme de protagonista pobre e teoricamente sem futuro que encontra no esporte (no caso de "Rainha de Katwe", o xadrez) um caminho para melhorar a sua vida. Ou seja, um enredo extremamente clichê e conhecido. Não obstante, o colorido Disney alcança um brilho que poucos estúdios conseguem igualar.

Seja pelo roteiro bem elaborado, pela trilha sonora empolgante (as músicas de ritmo africano, além de coerentes com a diegese, alegram qualquer espectador) ou pelo retrato fidedigno da realidade, o filme executa bem a tarefa de entreter. Com isso se conclui que não se trata de uma película no estilo cult, conclusão acertada, o que não significa, por outro lado, frivolidade mainstream.

Mesmo sendo arquetípicas, as personagens encantam de alguma maneira, em especial pelo ótimo trabalho do competente elenco. Phiona é interpretada por uma joia recém descoberta, Madina Nalwanga, que transita com facilidade nas emoções da jovem. É fácil torcer por Phiona e Nalwanga é responsável por ajudar bastante na identificação cinematográfica secundária. Lupita Nyong'o é ganhadora do Oscar, o que a credencia na mesma medida que impõe responsabilidade (de atuar bem). Sua Harriet é uma mulher forte em uma Uganda "onde os fracos não têm vez". Suas filhas são o seu tesouro, o que justifica seu receio em relação ao xadrez e o enfrentamento dos homens que se envolvem com as suas filhas. Nada vale mais que a integridade e a felicidade da sua prole: Harriet é a encarnação do imensurável amor materno. Phiona aprendeu bem as lições da mãe sobre ter uma personalidade inabalável, o que não a permite se deixar magoar quando os colegas reclamam do seu cheiro. Taryn Kyaze não tem o mesmo espaço como filha mais velha, Night, o que é uma lástima, pois seu arco dramático pessoal é o mais denso e complexo. É com Night que o roteiro sugere prostituição e menciona a vulnerabilidade feminina. No primeiro caso, é uma questão de interpretação. No segundo, trata-se da visão machista e ultrapassada de que toda mulher carece de um homem que a proteja e seja o provedor. Com inteligência, o plot ironiza isso em vários momentos, como ao ter uma mulher como protagonista e criada por uma mãe viúva ainda jovem. O girl power é bem delineado e alinhado com a ideologia de empoderamento feminino como subtexto, ou seja, implícito. Harriet precisa cuidar sozinha das filhas, não é uma opção, é uma obrigação que ela abraça sem fugir nem lamentar. Uma coragem e uma independência que Phiona também tem. Na mesma esteira de pensamento, David Oyelowo também atua muito bem como Robert Katende, o coach que ensina Phiona no xadrez é que é um verdadeiro arauto de altruísmo. Seu arco dramático próprio é raso, quase lacunoso, o que não o impede de constituir um coadjuvante coerente.

Tratando-se de uma história real, o desenvolvimento das personalidades das personagens é eficaz e bem arquitetado. Reitera-se: as personagens encantam - e não é apenas em razão das atuações, embora elas sejam ótimas. Contudo, a narrativa é bastante convencional e previsível. Phiona, por exemplo, faz a caminhada padrão de ascensão, queda e retomada, com plot points que são igualmente previsíveis. Provavelmente é esse o grande "calcanhar de Aquiles" do longa.

Não se pode olvidar que Mira Nair é uma diretora de poucas habilidades cinematográficas. Com tomadas mal escolhidas e um plano holandês completamente deslocado, a linguagem do cinema é usada com ampla imperícia. No que Nair acerta, verifica-se apenas o básico: linguagem não-verbal para comunicação entre mãe e filha (na sequência da leitura à noite, que emociona pelo conteúdo, não pela forma), figurino dourado para representar a riqueza imaterial de Phiona e, pela enésima vez na sétima arte, uso da chuva como símbolo de tragédia e desgraça. No entanto, é visível a extrema pobreza dos moradores de Katwe, um local de periferia com muitas pessoas e poucas riquezas materiais, sem tecnologia e com moradores com conhecimento reduzidíssimo da vastidão do mundo em que se encontram. São pessoas para quem um mingau pode ser um manjar, para quem o chão pode ser mais atrativo para dormir que uma cama - afinal, é isso que conhecem. De todo modo, o abismo socioeconômico tem um retrato verossímil e comovente.

A menção do ketchup é apenas um dos vários exemplos pelos quais RAINHA DE KATWE é uma experiência que pouco inova, mas muito emociona. Não é uma fita que entra no rol dos melhores de 2016 do ponto de vista técnico - embora uma indicação de Lupita Nyong'o para o Oscar de atriz coadjuvante não esteja fora de cogitação. É um filme que funciona como o ketchup para a batata frita: não é o principal, mas agrega bastante e, no fundo, faz a diferença.

P.S.: NÃO é preciso conhecer as regras do xadrez para assistir ao filme. Isso talvez permita acompanhar com maior proximidade as batalhas, mas não é essencial.