sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Brooklin -- Metamorfose edulcorada

Não raras vezes, em termos cinematográficos, a máxima "menos é mais" se faz verdadeira. No caso de "Brooklin", indicado a 3 prêmios no Oscar - Melhor Filme, Melhor Atriz (Saoirse Ronan) e Melhor Roteiro Adaptado -, a máxima é quase verdadeira. Cabe destacar que dificilmente sairá da premiação com alguma estatueta, mas a mera indicação é bastante significativa.

A protagonista do filme é Eilis, jovem irlandesa que passa por uma verdadeira metamorfose na narrativa. A indicação de Saoirse Ronan ao Oscar de Melhor Atriz é levemente exagerada, mas ela vai muito bem no papel, trazendo uma interpretação delicada como era necessário. Eilis é a representação simbólica da metamorfose: inicia como larva, vira pupa até se transformar em borboleta. Eilis começa como uma menina introspectiva, tímida e inexperiente: por exemplo, não consegue cumprir uma exigência profissional de interagir com clientes, e não sabe como reagir direito a uma cantada. Jovem, ela aprende com as mulheres mais velhas - notoriamente num diálogo com Sheila (Nora-Jane Noone) sobre casamento. Aos poucos, ingressa na fase pupal até se tornar borboleta, e Tony é grande responsável pela borboleta que Eilis vai se tornando. Ele simboliza a mudança de paradigma na vida de Eilis nos States, pois, antes dele, sua realidade era claramente acinzentada. Sua primeira interação se dá com uma dança, mas é no primeiro jantar que fica visível a química do casal - ele fica encantado quando ela faz um discurso interminável sobre seus estudos em escrituração e a ambição de se tornar contadora. O rapaz representa tanto na sua vida que sua chefe chega a afirmar que ela parece ser outra pessoa, vez que, ao contrário do que aparece no pretérito, ela é simpática com as clientes. Eilis é a transformação em pessoa; Tony é um arauto de doçura, que chega a ser humilde a ponto de pedir ajuda intelectual ao seu irmão, ainda criança, e compreensivo o suficiente para sacrificar-se (em sentido figurado) em um momento difícil da amada. A atuação de Emory Cohen é adocicada na medida certa, o que conduz com facilidade à identificação cinematográfica secundária para com a personagem. Além disso, Tony é responsável por uma oferta estratégica que se torna fundamental na narrativa, que, porém, inexistente, tornaria o romance ainda mais romântico (falar mais que isso seria spoiler).

Ainda, o figurino contribui muito para a visualização da metamorfose de Eilis. Ela inicia com vestuário exclusivamente verde, remetendo às suas origens irlandesas, mesmo quando passa a residir nos EUA. Todavia, Eilis muda: a pupa usa um casaco verde com camisa rosa em seu curso, e é a partir deste e do trabalho voluntário que ela vai abandonando o verde. Assim, quando Tony vai buscá-la após a aula, ela está de vermelho, o que indicaria que a pupa saiu do casulo. A lagarta usava apenas verde, isso não significa, contudo, que o verde foi abandonado, pois suas origens não são abandonadas. O que acontece é que a borboleta precisa ser livre (e o encerramento mostra isso muito bem), então o figurino é baseado em cores fortes, como vermelho, amarelo, azul e alaranjado. A mudança é tão grande que sua mãe e sua amiga Nancy concordam que ela está "muito glamourosa". Aliás, na Irlanda, ela destoa, sendo enxergada como alienígena para as conterrâneas ao usar um vestido azul e óculos escuros.

É interessante observar que o roteiro é hábil ao apresentar um vasto leque de personagens, sem fazer menoscabo de nenhuma delas. Conhecida como bruxa, Miss Kelly (Brid Brennan) logo de início humilha a mulher que foi comprar graxa, comprovando em todas as suas cenas ser a figura mais próxima da vilania no plot. Totalmente diferente de Miss Kehoe, que, apesar de séria e braba (chega ao cúmulo de mandar as colegas de Eilis a ajudarem com sua pele oleosa), revela-se apenas uma mulher rígida, o que era necessário para controlar as patricinhas (uma delas, inclusive, se chama Patty, vivida pela eterna Felicity da série "The Flash", Emily Bett Rickards) que viviam com ela. Kehoe não é má, na verdade é bastante justa, premiando Eilis por merecimento (bebida, bolo, nova acomodação) e dando bronca nas demais porque assim foi preciso. Coube à veterana Julie Walters o papel, que exigiu sensibilidade nos diálogos (quase sempre sentados). Kehoe é uma das madrinhas da borboleta de Eilis, antes ela já teve uma no navio rumo aos EUA. A cena do navio é esquisita porque a personagem é incoerente: de vermelho e chamando o lugar um inferno, expulsa Eilis da cama e sai para procurar um homem na primeira classe, mas depois (de branco - que figurino representativo!) cuida da jovem e a ensina a se portar para ingressar tranquilamente em terras estadunidenses... não faz sentido! De todo modo, a cena do navio é o símbolo do tormento que se anuncia para Eilis - um tormento bem light, mas um tormento. Também o padre Flood (Jim Broadbent, o eterno professor Horácio Slughorn) não deixa de ser um padrinho da protagonista, aparecendo pouco, mas sempre acolhedor. Ao voltar para a Irlanda, a borboleta Eilis é outra pessoa, e novas personagens aparecem, sem agregar muito. Eileen O'Higgins é a coadjuvante Nancy, cuja função é quase exclusivamente tentar ser cupido entre Eilis e Jim. Por sua vez, Jim, vivido pelo excelente Domhnall Gleeson (em ano fantástico, atuou com destaque em várias obras-primas totalmente diferentes, mostrando seu enorme talento), é um galã apagado em razão da atuação propositalmente contida e fria de Gleeson, que, no entanto, serve para causar dúvida a Eilis, em especial sobre seu destino.

Em síntese, o diretor John Crowley fornece ao público um longa edulcorado cujo roteiro se baseia em conflitos tão leves que o resultado é agradável, mas inofensivo. O flerte com o plano-sequência ao fazer um plano longo na conversa entre Eilis e Rose (Fiona Glascott) é o alerta do plot despretensioso - além de uma narração voice over, que indicaria má qualidade, o que não é o caso (foi apenas um deslize). O entretenimento enquanto o filme é assistido até existe - e as cenas levemente cômicas, como a que as colegas ensinam Eilis a comer macarrão e aquela em que ela conhece a família de Tony, corroboram para o humor transparente. Porém, não existem reflexões densas, críticas sociais ou alguma transcendência que seria salutar na sétima arte. Bem desenvolvido, torna-se um prazer efêmero: enquanto assistido, agradável, depois, descartável.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

What Happened, Miss Simone? -- Cinema com Rapadura

Estou tentando terminar os principais do Oscar. São muitos, falta aqui no blog a crítica de "Brooklin" (dos que concorrem a melhor filme), que em breve virá. Aguardem!

WHAT HAPPENED, MISS SIMONE? é um documentário da Netfllix que concorre ao Oscar de melhor documentário. Trata-se da biografia da cantora Nina Simone, já falecida. É muito bom, recebeu nota 8 no Cinema com Rapadura - você pode conferir a minha crítica que publiquei lá clicando aqui.

Reitero o convite de inscrição no blog para seguir as atualizações: basta cadastrar seu e-mail no campo "SIGA O RECANTO DO CINÉFILO POR E-MAIL!", ali na lateral direita.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Boneco do Mal -- Cinema com Rapadura

Crítica nova no Cinema com Rapadura, do terror BONECO DO MAL, filme nota 5, confiram clicando aqui!

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quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

A Garota Dinamarquesa -- Filme de atuações memoráveis e grandiosas, apenas

A obra pode ser maior que o tema, ou o tema maior que a obra. É possível, a partir de uma temática singela (não necessariamente simples), construir uma película sensacional. Da mesma forma, também é possível reduzir um assunto espinhoso a um longa quadrado. No Oscar 2016, "A Grande Aposta" pega um assunto espinhoso e faz uma obra ótima e didática. Já "A Garota Dinamarquesa" reduz um tema complexo a um drama quase suave - na medida do possível, evidentemente. Um filme muito mais curioso que instrutivo. Porém, é uma oportunidade rara para retratar dignamente pessoas tão marginalizadas (só por isso já vale o ingresso).

Assim, o significado cinematográfico deste longa é mais o símbolo do novo paradigma humanista do que a qualidade inerente a ele. Estamos em novos tempos, um momento em que cineastas se debruçam sobre tópicos antes vistos como tabus - em especial, as discriminações. O caminho a ser percorrido ainda é gigantesco, mas "Carol" e "A Garota Dinamarquesa" enobrecem a causa LGBT como seus competentes representantes. Ainda que não sejam filmes extraordinários em termos cinematográficos, representam que, cada vez mais, o ser humano tenta se preocupar com o alcance da felicidade sem preconceitos. Tal construção é um eterno devir, mas o abandono do paradigma hedonista egoístico e preconceituoso por alguns cineastas já é um passo à frente. É um avanço inegável um filme que trata sobre transexuais estar entre os grandes da safra anual.

"A Garota Dinamarquesa" é inspirado na história real de Lili Elbe, uma das primeiras transexuais da história. Existem divergências em relação à história real, mas, para o presente texto, tal fator é irrelevante - afinal, a análise é do filme, e não da vida de Lili Elbe. Na película (a descrição que segue está no trailer, logo, não se trata de spoiler), Einar Wegener, pintor de relativo sucesso, descobre ser uma mulher (psicologicamente) habitando um corpo masculino (biologicamente) a partir de um episódio em que sua esposa, Gerda (também pintora, de menor prestígio), solicita que ele use roupas femininas para que ela termine uma pintura. Tudo começa com escopo profissional para ela, continuando como brincadeira, depois enfrentamento (pouco) e, por fim, compreensão e apoio. Diversamente, para Einar, a vontade de se realizar como a mulher que sempre fora (mas que nem sempre soube, e nem sempre aceitou) apenas cresce, a ponto de submeter-se a uma controversa (à época) cirurgia para a sua redesignação sexual, que arrisca sua integridade corporal e, claro, sua vida. É aqui que reside o pioneirismo real de Lili, ao enfrentar uma intervenção cirúrgica polêmica visando sua própria felicidade - também são homenageados os corajosos médicos (não apenas os/as pacientes, como Lili) que, enfrentando seus pares, estudaram o tema e audaciosamente tentaram reduzir o sofrimento das pessoas na aflição da insatisfação corporal e de identidade. Em última análise, Lili buscava uma felicidade epicurista ao não temer a morte. O desejo de viver feliz era maior que a chance de falecer tentando. Seu querer era indômito e admirável.

Adentrando no filme, o prólogo é fortemente simbólico: um plano geral com paisagem bucólica e céu nublado. A paisagem bucólica está presente nas pinturas de Einar, totalmente diferentes das de Gerda, que prefere pintar pessoas. Trata-se da representação simbólica da personalidade de cada um: Einar é distante, saudosista e objetivista; Gerda é determinada, subjetivista e prefere ver a beleza nas pessoas (talvez até mais ingênua, no início). Também patente o voyeurismo, como no diálogo entre Gerda e um homem que ela retrata, alem da intensa nudez - opção acertada da direção, afastando quaisquer tabus. A pintura é um voyeurismo inegável que atua de forma diferente em cada um deles, mas está presente em ambos - até Einar substituir pela sua empreitada. Para Gerda, aumenta exponencialmente ao retratar Lili. O céu nublado do prólogo também é simbólico na medida que representa a vida cinzenta do protagonista como Einar, o que é claramente substituído pelo céu mais limpo com o decorrer da trama - o que destaca uma fotografia condizente com a obra. Tudo fica mais claro no visual e na linguagem figurada. Nesse ínterim, o design de produção é no geral acertado, representando o cenário da época (Europa da década de 1920) e maquiagens adequadas, além de figurinos simbólicos (Gerda de preto, Lili realizada com cores claras e Gerda com cores opacas etc.). Não é à toa que o filme concorre ao Oscar de melhor figurino (e de melhor produção): além de tecnicamente precisos, são cinematograficamente simbólicos. Isso sem contar um ótimo trabalho com a luz, destacável em duas cenas: no início, quando Gerda e Einar aparecem como um casal feliz, mas este fica com o rosto na penumbra (indicando que a felicidade talvez não seja plena); e quando aparece o médico responsável pela cirurgia - nesse caso, uma linguagem figurada sagaz, pois o médico é visto pelo casal na direção onde está a luz, e, de fato, ele parece ser a chave para a felicidade de Lili.

Como nem tudo são flores, o diretor Tom Hooper não obtém êxito ao retratar a transição de Einar em Lili. Não se pode culpar o roteiro, pois existem cenas de Einar sem cogitar Lili; tampouco o ator, que é um espetáculo à parte. Alguns elementos ficam soltos para indicar quando o que é mostrado é Einar e não Lili - ou Lili e não Einar. Em especial, a maquiagem e o figurino. No entanto, pouco se sabe sobre Einar antes da cena do vestido, não ficando claro quem ele realmente é. A personalidade de Lili se torna frágil à medida que Einar é obscuro. Quem é Einar? O roteiro foca na transição em si, e Hooper é sutil como uma marreta: Einar não sabe sequer a colocar as meias, se nega a colocar o vestido (ao menos no início), considerando ultrajante travestir-se de mulher para acompanhar sua mulher em um baile. Há enfoque total na transição de Einar para Lili, esta, da clandestinidade para o objetivo de vida, ignorando o que se passava antes de tudo isso, no pretérito próximo. O que Oola representa para o casal? Ora, se o objetivo é retratar uma transição, colocar as barreiras do antes e do depois seria fundamental. Grosso modo, Hooper dá a entender que, do dia para a noite, Einar aceita ser Lili, quando, na verdade, é evidente que não foi tão fácil. É tudo tão veloz que soa artificial demais, incomoda. Por sinal, Hooper repete a clássica, porém piegas, cena de uma personagem inconsolável na chuva. Talvez a escolha do diretor não tenha sido a mais acertada, pois seu trabalho em "O Discurso do Rei" foi melhor.

Tendo em vista que os conflitos são mais internos que externos em "A Garota Dinamarquesa", o resultado é, basicamente, um filme de atuações. O casal principal é de um talento imensurável! De um lado, o gigante e já consagrado Eddie Redmayne recebe uma seguida (e novamente justa) indicação ao Oscar em razão de mais um trabalho maravilhoso. Redmayne tem chamado a atenção desde "Sete Dias com Marilyn" (em que recebeu papel de destaque em um filme com bom marketing pela primeira vez), apenas crescendo desde então. Covardemente, alguns afirmam que ele tem assumido papéis para aparecer no Oscar. Que ator não quer aparecer no Oscar? Fato é que, mais uma vez, ele assume uma personagem que exige dedicação física intensa (e exposição corporal mediante nudez frontal), mas também - again! - atenção aos detalhes. É nisso que ele é maravilhoso: sabe transmitir o deslumbramento surpreendente ao colocar o vestido em frente ao seu corpo pela primeira vez, bem como uma alegria incompreensível (naquele momento). A curiosidade de Einar cresce, e Redmayne é penetrante para demonstrar tudo que ocorre: da busca extracorpórea - nudez e vestuário - ao que é imanente ao físico - os trejeitos femininos, o fascinante estudo das outras mulheres (que rende cenas belíssimas, como a da cabine), o caminhar, os olhares... a atuação de Redmayne é tão preciosa que, novamente, cada mínimo movimento agiganta o que representa. Poucos atores poderiam fazer este papel tão bem. Exemplo desta joia da atuação é o trabalho feito com a voz: ao invés de ir para o lugar-comum com falsetes que distinguiriam Lili de Einar (até porque ele tem uma voz bem grave), opta por diminuir o tom da voz e suavizá-la, ainda assim permitindo a distinção. Genial!

Justiça seja feita, o trabalho de Alicia Vikander, também indicada ao Oscar, também é excelente, embora um pouco menos desafiador. Longe de desmerecer o que a revelação sueca (que também poderia ter sido indicada por "Ex Machina") fez, Redmayne teve barreiras maiores a enfrentar, como se despir do seu jeito másculo, mostrar o próprio corpo nu e convencer como uma transexual. Já Gerda é uma personagem mais simples, cuja complexidade reside na dúvida entre aceitar e apoiar o marido na transformação rumo à felicidade, ou insistir em querer o marido como (em tese, pois não é mostrado) o conheceu. Ela é minimalista como tem de ser ao interpretar uma mulher corajosa que é Gerda. Vikander domina Gerda com maestria, e exemplo do seu talento é a cena em que, apesar de perplexa e aparentemente sem reação, deixa escorrer uma lágrima em seu rosto. Ainda quanto ao elenco, os coadjuvantes são módicos - tanto as personagens quanto os artistas. O Henrik de Ben Whishaw pouco mostra a que veio, a não ser, talvez, dar um pequeno empurrão para Lili mais no começo (e depois praticamente some); o Hans de Matthias Schoenaerts é um arauto da bondade e altruísmo, figura que dificilmente existiria naquela realidade (mas seu carinho por tudo e todos não deixa de ser encantador); a Oola de Amber Heard é tão superficial que se torna descartável; e o médico de Sebastian Koch é exageradamente sério.

Como se percebe, "A Garota Dinamarquesa" é um produto que, embora quisesse, não conseguiu alcançar a genialidade. O trabalho tem qualidade, tem muitas virtudes, mas peca demais em construções relevantes. A narrativa se torna rocambolesca ao insistir em Einar querendo ser Lili, algo que fica claro desde o início. Parece querer martelar uma proposta cuja compreensão era fácil. Por que anular a orientação sexual de Lili? Einar vai perdendo o desejo sexual, que retorna com Henrik, sumindo depois. Seria Lili bissexual? Não se sabe. A Lili real, por exemplo, poderia engravidar, e isso é sugerido de forma efêmera no longa. Exceto pelos médicos - que, em geral, tratavam transexuais como insanos e esquizofrênicos - e por uma cena que não chega a impressionar, são poucos os conflitos externos. Teria agregado muito um embate entre Henrik (homossexual cisgênero pouco aproveitado) e Lili. Mas não, a ousadia não chegou a tanto. Melhor apostar no design de produção e nas atuações formidáveis. Razão pela qual é um filme de atuações memoráveis e grandiosas, apenas. É pouco para uma história de um pioneirismo tão ilustre. Entretanto, representa muito em uma indústria que costuma ser conservadora. Saldo? Copo meio cheio.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Deadpool -- Comédia obscena e pueril com incontáveis referências

Se fosse possível resumir "Deadpool" em poucas palavras, seriam as seguintes: comédia obscena e pueril com incontáveis referências. E não é muito mais que isso, na verdade, é só isso, sabe que é só isso e usa tal fator em seu favor. Despretensioso, o longa não finge ser o que não é, ao revés, explora sua superficialidade de modo a fazer dela uma vantagem. E faz, pois isso foge completamente do tradicional - aliás, de tradicional "Deadpool" não tem nada. Talvez não seja a película mais original da história ("Kick Ass" e "Guardiões da Galáxia" que o digam), nem o melhor filme de herói. Porém, não se pode negar que criatividade não faltou.

A Fox conseguiu se redimir após o fracasso do novo "Quarteto Fantástico". Sem maniqueísmo, "Deadpool" é um filme de herói torto - de forma mais precisa, um anti-herói politicamente incorreto -, pois Wade Wilson é um cara mau que enfrenta caras piores que ele (é assim que ele mesmo se descreve). Após descobrir ter pouco tempo de vida em razão de um severo câncer, Wade se submete a um procedimento que estraçalha sua aparência, mas o cura do câncer e o dá fantásticas habilidades de cura, surgindo então Deadpool, segunda identidade de Wilson. É um filme de origem, mas diferente dos demais. Já nos créditos iniciais percebemos que é diferente do que já foi feito, através de expressões como "uma gostosa" e "um filme de babaca", isto é, tirando sarro dos próprios envolvidos, do elenco ao diretor. Há também a indicação da linguagem livre adotada, com palavras de baixo calão, termos chulos e obscenidades sem fim. A música dessa cena é "Angel of the morning", de Juice Newton, sugerindo também que haverá uma agradável e nostálgica trilha sonora - o que se concretiza depois, com, por exemplo, "Hit the road, Jack" (usar Ray Charles foi golpe baixo para conquistar este crítico!) e "Careless whisper" (Wham!).

A cena inicial escancara a personalidade de Deadpool: infantil até ser quase imbecil, franco, agitado e até mesmo bondoso (como ao aconselhar o taxista). Sincero a ponto de afirmar "posso ser super, mas não sou herói", ele vive em um mundo fantástico em que seriedade passa longe - algum outro super usa uma mala da Hello Kitty? Ah, sim: muito sarcástico e irreverente, este é Deadpool. Também ocorre neste momento a quebra da quarta parede, recorrente no filme e usada não apenas para falar com o público, mas, por exemplo, ao mostrar a lente da câmera (onde gruda uma goma de mascar) - semelhante a (quem diria!) "O Regresso". Após o táxi, ocorre a cena de ação divulgada no trailer: apesar do orçamento reduzido, a ação é razoável e quase não apela para o exagero no CGI, usando sim o tradicional (como aceleração intercalada com câmera lenta), mas retratando o "Deadpool way of fight", que chega a tirar a cueca para lutar (em outra cena). Interessante observar que ele não é um exímio lutador, pois, além de apanhar bastante, erra alguns disparos, desperdiçando projéteis. Ademais, não há exagero nos cortes, pois a direção de Tim Miller não se filia às explosões vorazes de Michael Bay.

Logo se vê que o roteiro é frívolo, pueril e voltado a um público muito específico. As piadas são infantis, havendo sagacidade apenas nas sátiras, tudo em tom exageradamente jocoso - mas do começo ao fim, para ser coerente. Maior inteligência o script teve ao permitir a diferenciação entre Wade e Deadpool, este um passo à frente daquele em tudo. A montagem acertou ao estabelecer duas linhas temporais que depois se juntam, o que fica de fácil compreensão porque a história de Wade é bastante simples. A trama inteira é simples e previsível, e não quer ser diferente - despretensiosa, como já dito. Ou seja, a montagem com duas linhas temporais não soa confuso e torna a narrativa mais dinâmica, embora não permita seu crescimento - assim, não chega a haver clímax em momento algum, por exemplo.

Quanto ao elenco, primeiramente, no que se refere aos coadjuvantes, pode-se dizer que os coadjuvantes acessórios são melhores que os coadjuvantes principais, em todos os sentidos. As duas subtramas efêmeras - do indiano e da idosa - são ótimas, enriquecendo muito o roteiro (aliás, Blind Al é quiçá o zênite do filme, protagonizando com Deadpool cenas hilárias); porém, os vilões são fajutos, o braço-direito é apagado (ainda que majoritariamente engraçado) e Vanessa não empolga. Os vilões são o que há de pior em "Deadpool" (Ed Skrein como o sonolento Ajax e Gina Carano como a monótona Angel) vez que, além de unidimensionais, estão presentes, única e exclusivamente, para dar um objetivo ao protagonista - caso contrário, não haveria filme. Vanessa (Morena Baccarin) tem personalidade forte e a atriz se esforça para um bom desempenho, mas acaba sumindo até praticamente desaparecer - o caminho da personagem é claramente descendente na narrativa. Weasel, braço-direito de Wade, é vivido por T.J. Miller em atuação mecânica, trabalho que qualquer um poderia fazer. O papel de Weasel é engraçado pelo roteiro, não graças a Miller. Colossus (Andre Tricoteux no corpo, com CGI, e outro profissional exclusivo para a voz) e Megasonic (Brianna Hildebrand) são arquétipos bastante claros: ele, o herói padrão, politicamente correto e com discurso valoroso norteado por princípios já muito conhecidos, de outros heróis; ela, a adolescente rebelde indiferente em relação ao que ocorre em seu redor. Ainda em termos de atuação, é claro que Ryan Reynolds é o grande destaque, pois o ator se diverte na personagem tanto quanto a personagem diverte o público. Reynolds é um fã que teve o privilégio de dar vida ao papel, apostando suas fichas na obra (é também produtor) e se doando completamente. Foi um dos seus maiores acertos na carreira.


Mesmo com seus poréns, o roteiro é coerente. Wade afirma que "aparência é tudo", dentre outras falas que comprovam quão superficial ele é. Melhor dizendo, politicamente incorreto. Outro acerto do plot foi inserir as incontáveis referências, a maioria delas do universo nerd, que divertem demais o espectador, tais como: Hugh Jackman, Wolverine e seus filmes, "O Senhor dos Anéis", "Star Wars", "Matrix", Liam Neeson e "Busca Implacável", "127 Horas", "Lanterna Verde" (Wade tira sarro de Reynolds), "Alien", "Curtindo a Vida Adoidado" e muito mais. É por isso que "Deadpool" não tem como não agradar seu público-alvo. Agrada e muito! A língua afiada de Wade Wilson, o mercenário tagarela, não poupa ninguém, ainda que seus ataques sejam brandos, sem soarem ofensivos (ainda bem). Que tal ofender os preconceitos? Ofender a egolatria humana? O abismo social? Nesse ínterim, as piadas não são ofensivas não apenas porque se declaram como piada mas também porque nada é levado a sério - é por isso que tirar sarro de si mesmo ("bad Deadpool") é algo recorrente. São piadas apelativas, relacionadas a sexo, nada de mais. Não obstante, em razão das várias cenas chocantes (muito sangue e muita violência) e de teor erótico (masturbação, nudez, sexo etc.), a censura foi suave com 16 anos, pois o filme merecia censura 18 - acredite, tem várias cenas impróprias para um público adolescente, ainda que seja fato notório que o acesso à internet permite contato com algo muito pior. Não se trata de falso moralismo, e sim de reconhecer que um filme repleto de palavrões, violência, nudez e sexo não é adequado para adolescentes. Até porque algumas referências sequer seriam compreensíveis para pessoas tão jovens.

"Deadpool" está sendo um sucesso de público porque é divertido, criativo e razoavelmente original. As obscenidades extremas não são ruins, se inserem dentro do seu contexto próprio, tornando-se premissa do filme - e da própria personagem. As referências agregam bastante ao roteiro. A puerícia do longa é o que o prejudica, pois, ainda que despretensioso, poderia cumprir uma função maior, até por albergar um público grande. Ryan Reynolds sugeriu um relacionamento homoafetivo para o inevitável segundo filme. Isso seria ótimo para quebrar paradigmas, até porque, segundo os criadores da personagem, ele é pansexual (e isso aparece nos quadrinhos, ou seja, manteria a fidelidade). Seria uma alternativa para enriquecer e quebrar paradigmas, o que não acontece neste primeiro filme. Para os adultos, mesmo quando é ácido, ele não choca - a não ser, é claro, o público conservador, que provavelmente só vai ao cinema para ver lixos como "Os Dez Mandamentos". De toda sorte, "Deadpool" iria além se seguisse a sugestão de Reynolds, mas este não é o único caminho possível. São várias as alternativas: enfrentar um vilão por motivos não exclusivamente egoísticos, críticas sociais, expor a hipocrisia do ser humano etc. Fato é que, apesar da abordagem heterodoxa, as temáticas inseridas são quadradas. Ser politicamente incorreto per si é fácil. Difícil é dizer algo com isso. O que foi feito foi divertido, mas é falar por falar. Para a continuação, que ele fale para dizer alguma mensagem. É este o caminho para superar o primeiro.

P.S.: me informaram que T.J. Miller criou as piadas, não repetindo um script. Não faz diferença: ele pode ter o mérito de boas ideias para piadas através de improvisações, mas não muda o fato de que sua atuação é fraca. Ele poderia sugerir as piadas para outro ator, não faria diferença.
P.S.(2): me esqueci de mencionar um suave erro quanto ao ritmo do longa. Deadpool já começa como Deadpool, o momento Wade antes de ser Deadpool é muito rápido, de modo que a transição não fica tão perceptível. Isto é, teria sido melhor mostrar mais de Wade Wilson antes de se tornar Deadpool, porque permitiria ao espectador conhecer melhor a personagem e, principalmente, seu histórico. O Wade que aparece é pré-Deadpool.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Tirando o atraso -- Desrespeito ao espectador, de tão desprezível; um dos piores filmes da história

É difícil compreender a razão pela qual ícones da sétima arte se submetem a trabalhos ruins. Anthony Hopkins, Morgan Freeman (este, nem tanto) e Al Pacino são exemplos. Já tiveram o auge na carreira, já conseguiram tudo que quiseram e abraçam projetos duvidosos. Dificilmente algum deles vencerá Robert De Niro com seu "Tirando o Atraso", que representa que De Niro chegou ao fundo do poço - pior, propositalmente.

Trata-se de um road movie em que Dick (De Niro), viúvo, pede ao seu neto Jason (Zac Efron) que dirija para ele até a Flórida, que, a contragosto em razão do momento - véspera do seu casamento com Meredith (Julianne Hough) -, acaba aceitando. O filme acaba se tornando um lixo que mistura, de forma vulgar, ofensiva, indecente e discriminatória, uma série de clichês do humor que nem a pior das comédias conseguiu reunir. Um lixo-rei!

Como um grande ator como Robert De Niro aceita a própria decadência para se expor em situações constrangedoras? Desde o final da década de 1990, ele já estava engajado na comédia (como nos ótimos "Máfia no Divã" e "Ninguém é Perfeito"), agora, aceita os papéis que vierem (inclusive em filmes politicamente corretos, como "Um Senhor Estagiário"). De Niro agora faz qualquer papel, ainda que vergonhoso (a famosa vergonha alheia). Dick (nome sugestivo, mas não criativo) é um verdadeiro dirty grandpa como sugere o título original do longa: preconceituoso, arrogante, politicamente incorreto, enfim, asqueroso. "Se Beber, Não Case" parece um conto de fadas se comparado a "Tirando o Atraso".

É, como dito, um lixo de história que reúne todos os clichês, dos inofensivos aos desprezíveis: piadas visuais (um carro rosa), nudez (Efron praticamente não teve figurino), ofensas ("gordo escroto"), romance artificial e personagens estereotipadas - um gay afeminado, uma noiva controladora, um pseudovilão metido, uma tarada ninfomaníaca, tudo de mais abjeto. As personagens estereotipadas, claro, sofrem todos os preconceitos possíveis, em especial, homofobia, racismo e machismo (um deles, homofobia e racismo concomitantemente).

Zac Efron também não devia aceitar o projeto, se quer ser um ator sério e respeitado. Jason é um frustrado (fez Direito, mas queria fotografia) que se submete a várias ofensas, verbais ("empata-foda", "neta lésbica" e assim por diante) e simbólicas (uma suástica composta de vários pênis pintada na sua testa). Uma cena falsa de abuso sexual de um menor (um mal-entendido, que fique claro) é clichê pequeno perto do resto, tão vil quanto. E, claro, Efron aproveita para expor seus talentos (canta e dança) e seu corpo nu em incontáveis oportunidades. Como conseguir respeito artístico? Efron e De Niro se reúnem por um motivo óbvio: colocar no cinema diferente gerações, para atrair maior público. Entram com seu nome, não seu possível talento - até porque talento não foi necessário para atuar no longa.

"Tirando o Atraso", a bem da verdade, é um desrespeito ao espectador, de tão desprezível. Mereceria uma nota negativa, apesar de algumas boas músicas ("Time in a bottle" e "I've got a world on a string") e os risos de canto de boca que a maioria das comédias consegue (longe daquele riso agradável do humor de qualidade). Algo como - 9. É um dos piores filmes da história da sétima arte.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

sábado, 6 de fevereiro de 2016

O Regresso -- Longa inegavelmente maravilhoso

O objetivo de um filme, em perspectiva diacrônica, é entrar para a história da sétima arte. O plano B é ser considerado memorável. "O Regresso" talvez não consiga entrar pela história por seu conjunto, muito embora não haja exagero em afirmar que o filme é maravilhoso. Um ou outro elemento questionável, mas, no geral, maravilhoso. O problema é que será lembrado como o longa que rendeu o Oscar de Melhor Ator ao Leonardo DiCaprio (ou como o que deveria ter dado em razão da sua atuação de altíssimo nível), e não pelo filme maravilhoso que é. Vai ser "aquele filme com o DiCaprio que lhe garantiu o primeiro Oscar".

Importante destacar que "The Revenant" é muito mais que o filme do Leonardo DiCaprio. Inspirado numa história real e baseado no livro de Michael Punke, o roteiro elaborado a quatro mãos (Mark L. Smith e Alejandro González Iñárritu, este também diretor) narra a história de um homem, Hugh Glass (DiCaprio), que passa por incontáveis adversidades para concretizar uma vingança. Como se percebe, o roteiro é simples e superficial, o que não apaga a qualidade artística extraordinária da película. Como história, não há profundidade, não há crítica social. Glass sofre, vê seu filho ser assassinado e sofre (sim, mais) em busca da vingança contra o assassino. O plot é, apenas e tão somente, a busca pela vingança. Não há nenhum diferencial na trama, nada novo, nada encantador. Despido de criatividade e invenções, o roteiro poderia passar por uma autópsia que pouco seria detectado além disso. Alguns discursos sobre vingança, alguns ensinamentos dos índios arikaras, algumas elipses (no caso, não agregam muito), alguns flashbacks e alucinações com a falecida esposa de Glass - absurdamente desnecessárias, descartáveis e de difícil compreensão dentro do contexto -, nada muito denso.

Isso porque toda a criatividade foi para tudo que não era roteiro. Se o plot não encanta, a experiência de assistir à película é cinematograficamente sensacional em razão de aspectos externos à história. Afinal, vingança já é um tema clichê, havendo outros casos bem mais instigantes - como "Kill Bill". Mas "O Regresso" se torna único pelo que olhos enxergam e ouvidos ouvem, por tudo que sensorialmente se capta, não pelo que intelectualmente se poderia refletir. Isto é, agrada muito mais aos sentidos que à razão. Sendo essa a proposta e sendo o filme fiel a ela, não pode ser descredenciado por esse fator. A trama poderia ser melhor, mas o objetivo não é almejado. E não há filme perfeito. A proposta é uma história concisa retratada lindamente, e o objetivo é cumprido. Cinema é arte, e a arte transborda a razão, muitas vezes repousando exclusivamente nos sentidos. Nem toda arte precisa ter crítica social. Nem toda arte precisa ser profunda. Mas toda arte precisa ser sentida.

Com base nessa premissa "arte sentida na veia", o cineasta idealizador do longa Alejandro González Iñárritu, atuando como diretor e roteirista, apresenta uma obra absurdamente visceral. Iñárritu, atual oscarizado como melhor diretor, é, sem dúvida, um dos melhores cineastas em atividade. A grandiosidade do seu talento é imensurável, e, assim como já tinha feito com "Birdman (ou a Inesperada Virtude da Ignorância)", utilizou novamente sua habilidade para tirar o melhor de cada plano, com ângulos inesperados e movimentações inteligentes. Usa e abusa do travelling (e das panorâmicas, em menor medida) e, com sua câmera inquieta, fez várias filmagens em plano-sequência (como na caça a um alce e no ataque indígena), repetindo as subidas e descidas (filma o céu e o chão) do longa anterior (entre dois planos-sequência), além de levar a câmera em todos os lugares que se façam necessários, havendo então, por exemplo, várias filmagens dentro da água (ocorrendo imersão). Nesse sentido, a filmagem é tão boa que facilita a imersão do espectador naquela diegese. Ademais, já no prólogo há um close no protagonista, havendo no resto do filme a prevalência de primeiros e primeiríssimos planos, além de planos gerais e abertos, no melhor estilo "tudo-ou-nada". Destacam-se também eventuais quebras da quarta parede, que ocorrem de maneira pouco usual: as personagens encaram a câmera, mas não falam com o espectador, ao revés, a telona fica embaçada (quando a personagem respira de forma ofegante) e há respingos na tela (água e sangue), de tão próxima que a câmera fica - a lente é uma barreira física, mas há a quebra da quarta parede. Isso sem contar a cena chocante em que Glass é brutalmente atacado por uma ursa (que apenas defende seus filhotes), provavelmente a melhor desta película (e também em plano-sequência). É tão magnífica que vale pelo filme todo, poucos diretores a fariam tão bem. É inegável: Iñárritu é um gênio na direção - e nem tanto no roteiro. Há uma queda de produção na última meia hora, soa como cansaço. Nada que chegue a prejudicar. Aproveitando o ensejo, cabe o alerta de que o filme é bastante violento e sangrento, possivelmente sofrendo a influência tarantinesca. O que é ótimo.

Em 2014, Emmanuel Lubezki ganhou o Oscar de melhor fotografia em razão da parceria com Alfonso Cuarón em "Gravidade". Em 2015, ganhou com "Birdman" na parceria com Iñárritu. Concorre novamente com o mexicano por "O Regresso", e tem chances enormes de ficar com a estatueta pela terceira vez seguida. Mais uma verdade inegável: sua fotografia é encantadoramente fascinante! Favorecida pela filmagem genial de Iñarritú, é possível visualizar desde montanhas congeladas até um corvo em primeiro plano - além de cachoeiras e diversos outros animais. O diretor propôs o grande desafio de trabalhar apenas com luz natural - o que fez com que precisassem de um meteorologista na equipe -, e as lindíssimas e reais paisagens (gélidas, mas belas) encantam qualquer um, amante ou não da natureza. Não seria desmedido afirmar que a natureza exerce papel de personagem em "O Regresso", não apenas por ser uma adversidade com a qual Glass precisa lidar, mas também pela demonstração da sua exuberância no aspecto visual. É também uma interpretação possível aquela segundo a qual o filme é uma homenagem ao meio ambiente - o diálogo entre um índio e um francês reforçam este ponto de vista -, embora o foco realmente seja a vingança como motor da sobrevivência do protagonista. Ainda no aspecto visual, o figurino discreto deixa espaço para um fantástico trabalho de maquiagem em penteado, em especial com o protagonista e com o antagonista. Em suma, tudo que está na tela é bastante aprazível aos olhos.

Mas não apenas, pois "O Regresso" é também bastante aprazível aos ouvidos. A edição de som precisava de efeitos oriundos da natureza (reais), o que não é um trabalho tão complexo. Ao revés, a ótima mixagem de som foi trabalhosa, pois teve de unir a música predominantemente instrumental com efeitos sonoros dos mais diversos - além das poucas falas, é claro. Ela é inclusive muito detalhista, pois se percebe, além da água corrente dos rios (por cima e embaixo do rio, nos momentos de mergulho) e cachoeiras, da chuva e dos trovões, os sons dos animais vistos e não vistos - isso faz parte da imersão na diegese, pois vai além do óbvio. Fazer o óbvio é inserir o som de búfalos correndo e colocá-los na tela; ir além do óbvio é colocar a imagem de uma personagem na floresta silenciosa, ouvindo-se o som de animais que sequer aparecem (aves, em especial). É tão detalhista que até mesmo sons de pisada (quando Glass está sozinho na floresta "silenciosa") e de fogueira são perceptíveis. Outra verdade incontestável: olhos e ouvidos ficam fascinados com o filme.

Colabora com esse fascínio o excelente trabalho do elenco. Começa com os coadjuvantes menores (por terem menos aparições ou menor relevância na narrativa), como os indígenas e os franceses - entre eles há uma cena descartável de estupro -, perpassa os coadjuvantes de maior importância e termina com o protagonista. O jovem Will Poulter faz uma atuação mais robusta que nos trabalhos pretéritos, mas é Domhnall Gleeson o principal nome dos coadjuvantes (excluindo o antagonista). Seu capitão Andrew Henry surpreende não pela interpretação competente do ator, pois isso já é costume (ele é muito promissor!), mas pela inesperada virtude da profundidade da sua personalidade. No início, precisa decidir sobre qual caminho a equipe tomará (se ficam no barco, se levam as peles), estando no topo da hierarquia do grupo, mas é quando retorna, já ao final, que cresce, motivado pela raiva - sentimentos negativos motivam mais nesta película. Ainda melhor está Tom Hardy ao viver o antagonista John Fitzgerald, com interpretação de altíssima qualidade, que lhe garantiu a indicação ao Oscar (de melhor ator coadjuvante). Hardy teve a sorte de trabalhar nos dois melhores filmes da atual safra, sendo o protagonista em um ("Mad Max: Estrada da Fúria"), e o antagonista em outro (objeto da presente crítica). Percebe-se o seu enorme talento ao atentar que Fitzgerald e Max têm em comum apenas seus olhos verdes (há uma cena em que ele aparece em close próximo a uma fogueira, destacando-se a sua pupila dilatada), pois, de resto, o ator construiu duas personalidades muito distintas. Isso é fruto de dedicação e talento, evidenciada também com o sotaque elaborado para o papel - é difícil para um britânico fazer o agudo sotaque do velho oeste. Fitzgerald é apresentado, é claro, por um plano-sequência (e depois aparece em um rodopio), mostrando-se sempre inescrupuloso e sagaz: invoca uma divindade nos discursos ególatras e usa o ataque como defesa contra Bridger (Poulter) - para depois elogiá-lo perante o capitão, por ser conveniente para o momento. A personagem é uma das que mostra melhor construção, tanto na narrativa quanto na perspectiva empírica (inclusive com um penteado bem interessante e criativo). Expressar pavor e apreensão em alguns momentos é difícil para a maioria, mas pareceu fácil para Hardy. Que trabalho estupendo!

Contudo, é evidente que o maior destaque é do protagonista Hugh Glass, interpretado por Leonardo DiCaprio em atuação grandiosa, uma das melhores, se não a melhor, da sua carreira (o favoritismo ao Oscar não é à toa). Com poucas falas, o desafio era demonstrar as emoções com linguagem corporal, que vai desde o esforço físico para a locomoção (em razão do corpo debilitado, inclusive sem as pernas) até um olhar expressivo. Hugh Glass fala pouco, mas diz muito. DiCaprio protagoniza não apenas cenas impressionantes como a do ataque da ursa, como outras, mais simples - por exemplo, comendo um peixe cru recém-pescado (com as escamas) e olhando para um horizonte (metáfora do recomeço). Recursos técnicos apenas agregam ao seu trabalho: maquiagem de neve em sua barba, o frio representado na câmera cuja lente fica embaçada de tão próxima, a água que desce pela sua garganta para fora com sangue, e assim por diante. Logo, DiCaprio talvez seja o sol do sistema, mas existem planetas também muito virtuosos que não podem ser olvidados.

O filme é longo e cansativo, mas vale ser visto ao menos uma vez. Não apenas pela curiosidade que qualquer cinéfilo deveria ter em razão de um filme tão "badalado" e com perspectivas tão boas na principal premiação do cinema, mas é uma obra de arte maravilhosa, ainda que não perfeita (até por tal condição ser utópica). Dentro da sua proposta e dos seus objetivos, "O Regresso" tem êxito enorme e os prêmios são apenas símbolos da consagração dos competentes e dedicados profissionais envolvidos. Talvez pudesse ser mais curto, até por perder fôlego com o passar do tempo. Talvez pudesse ter um roteiro melhor. Isso tudo são elucubrações. Fato é que este longa é inegavelmente maravilhoso.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Mad Max: Estrada da Fúria -- Um dos melhores filmes da história do cinema

As críticas mais complexas são as que demandam maior elaboração em razão de o filme representar um extremo, seja ele positivo, seja negativo. Filmes muito bons ou muito ruins são mais difíceis de serem analisados, exigindo cautela especial, inclusive para não cometer alguma injustiça. "Mad Max: Estrada da Fúria" é exemplo de um filme cuja excelência chega a um nível tão alto que redigir uma crítica se torna tarefa ainda mais árdua. Trata-se de uma obra tão extraordinária que qualquer análise se torna reducionista, tamanha a sua grandiosidade. Aliás, o fato de ter sido indicado a tantos prêmios já indica a sua qualidade ímpar - 10 indicações ao Oscar, por exemplo, inclusive na categoria de Melhor Filme.

Para alguns, trata-se de um reboot da franquia da década de 1980, protagonizada por Mel Gibson, agora substituído por Tom Hardy. Mas não, George Miller, cineasta idealizador da história de Max (vale dizer, dos até agora 4 filmes) sustenta ser uma continuação, interpretação plausível pela qual se faz uma analogia com outra famosa e longínqua franquia, a do agente 007. Muda o ator, muda o momento, muda a história, mas não muda o universo. O enredo é lacônico: em uma realidade distópica, o outrora policial Max Rockatansky (Tom Hardy) é capturado para ser usado como doador de sangue em favor de soldados do ditador Immortan Joe (Hugh Keays-Byrne, em seu segundo vilão diferente na franquia); paralelamente, uma das imperatrizes desse mesmo ditador, Furiosa (Charlize Theron), se rebela contra ele e foge, levando consigo algumas das parideiras de Joe. É na perseguição (Joe-Furiosa) que Max e Furiosa se encontram, inicialmente na luta pela liberdade e mesmo pela sobrevivência. Duas tramas paralelas que são unidas por um antagonista, não havendo, portanto, simplicidade na narrativa.

Esta é, por sinal, uma das maiores críticas em relação ao filme. Há quem alegue, equivocadamente, que a história é rasa. Isso não é verdade por diversas razões. Inicialmente, "Mad Max" tem uma virtude cada vez mais rara na sétima arte, que é uma incontestável originalidade - nesse caso, aliada a uma imensurável criatividade. "Mad Max" pode ser comparado com "Mad Max". Os dois primeiros filmes são precursores no gênero de ação, são verdadeiros marcos que influenciaram diversos outros. Não há nada repetido, nada clichê, ao revés, Miller fugiu de todos os clichês imagináveis ao criar uma mitologia distópica singular (à la Tolkien). O universo em que Max está inserido é incomparável a qualquer outra distopia, e seria ousadia demais tentar um resumo - basta mencionar a devoção ao volante, o guitarrista lança-chamas, o Vale Verde, os sorrisos cromados e, claro, Valhala (quem não gostaria de conhecer Valhala!?). E não apenas isso, o plot aborda ainda questões complexas de forma crítica, porém sutil. O público acostumado com roteiros sutis como uma marreta de fato não compreende a suavidade na abordagem temática presente no longa. Merecem destaque a escassez de recursos naturais que são então monopolizados por um cruel ditador (quiçá uma crítica ao modo de produção capitalista, que também cria esse abismo), a coisificação do humano (sendo as parideiras com cintos de castidade e o próprio Max como blood bag representações simbólicas bem evidentes), o instinto humanitário presente apenas em algumas pessoas ("sem mortes desnecessárias"), a inafastável organização hierárquica de um sistema bélico alienante (basta ver o sacrifício almejado pelos soldados) que preza pela manutenção da ordem (as imperatrizes, aparentemente, são equivalentes a generais) quando enfrentada por um esforçado trabalho em grupo, a força potencial nas figuras femininas (Furiosa não tem nada de mocinha indefesa, e as parideiras, em geral, não são tão diferentes) e, claro, a liberdade, objetivo a ser atingido por alguns e valor abdicado por outros (questão mais central representada por Furiosa e as parideiras, além de Max, enquanto que os soldados abdicam - "testemunhe" se torna um mantra). Se isso é um roteiro raso, difícil imaginar o que seria profundo. A densidade da película é peculiar por não escancarar os temas na abordagem, mas isso não é ser raso, é ser sutil. Assim, a abordagem delicada exige do espectador maior sensibilidade que nos filmes ordinários (pois "Mad Max" é extraordinário) - aqueles sutis como uma marreta.

Outra crítica equivocada se refere à interpretação de Furiosa como protagonista de "Fury Road". Ela é muito importante, peça-chave da narrativa e engrenagem que a faz girar. Engrenagem, não motor, pois motor mesmo é Max. Não por seu nome estar no título, não por ele aparecer como narrador no início, mas porque ele "entra de gaiato" no imbróglio entre Furiosa e Immortan Joe, é ele quem realmente move a trama do começo ao fim. Não obstante, é ainda possível encarar a imperatriz como a protagonista deste filme. A questão é: que diferença faz quem exerce o protagonismo? É ruim Furiosa talvez protagonizar um "Mad Max"? Se as respostas forem afirmativas, o que o filme preza - trabalho em grupo e força feminina - não se acopla à ideologia do espectador. Ademais, afirmar que este longa não é bom por ser exageradamente insano é um erro crasso, vez que insanidade é sua premissa. A premissa de um filme jamais merece agressão intelectual - a não ser, evidentemente, que represente uma violência intelectual, uma afronta a seres munidos de cérebro (como em "The ridiculous six"), o que não é o caso aqui. O que é importante é que o filme seja fiel à sua premissa, coerente com a sua própria mitologia, por mais surreal que ela seja. Não gostar da insanidade de "Mad Max" é perfeitamente aceitável, afirmar que isso o torna ruim é tolice. Seria o mesmo que defender uma má qualidade em "O Senhor dos Anéis" por apresentar seres que não existem na vida real. A premissa pode ser exageradamente surreal, o que não pode é soar incoerente dentro de si mesma.

Os parágrafos acima, por mais surpreendente que possa parecer, são praticamente introdutórios. Um filme indicado a 10 estatuetas na cerimônia do Oscar merece uma análise vertical. Que segue agora.

"Mad Max: Estrada da Fúria" é simplesmente soberbo em seus aspectos sonoros. A trilha sonora é "apenas" boa, todavia, edição e mixagem de som são espetaculares - categorias em que o filme é favorito para angariar duas estatuetas. A edição de som conta com efeitos no deserto e impacto dos carros, mas se destaca para o grande público com os sons da guitarra e de tambores durante a perseguição. O trabalho de mixagem, por conseguinte, foi enorme, porém, exitoso - a dificuldade foi ultrapassada.

Para o espectador comum, o que mais brilha neste longa, sem dúvida, é a sua estética única. E realmente, ele é fantasticamente maravilhoso no visual - concorre ao Oscar de melhor montagem, direção de arte, figurino, maquiagem, fotografia e efeitos visuais. O design de produção é fabuloso e harmônico com a mitologia da obra, com um domínio sem igual no uso das cores, vestimentas e quaisquer aparatos úteis. Nesse ínterim, a fotografia é bipolar ao abusar do azul e do amarelo: de dia no deserto, tons pastéis e dourados prevalecem; à noite, azulados. A maquiagem foi um trabalho louvável - em especial com Furiosa e sua testa preta (metáfora da sua personalidade sombria) e nos soldados de Joe (uma pesadíssima maquiagem em que prevalece o branco no corpo todo, metáfora da sua neutralidade e alienação) -, enquanto que o figurino é indescritível de tão deslumbrante (do ponto de vista artístico, não da moda, evidentemente), mesmo sendo minimalista - compatível com a realidade defendida, afinal, não faria sentido muita vaidade. Max e Furiosa usam vestuário de cor neutra, levemente escurecida e envelhecida, já as parideiras se vestem de branco - no sentido figurado, respectivamente, os sofridos guerreiros e as moças puras. Nux e os demais soldados nem precisam de roupas (e usam poucas), afinal, são meros objetos para Joe, absolutamente descartáveis. De toda sorte, é nos efeitos visuais estonteantes que "Mad Max: Estrada da Fúria" se torna impressionante e admirável: impressiona pela beleza inigualável (a cena da tempestade de areia é uma das mais lindas da história do cinema) e causa admiração por ser tudo real. Sim, essa notícia deixa qualquer um perplexo: George Miller optou por reduzir ao máximo o CGI - inevitável no braço mecânico de Furiosa, por exemplo -, de modo que praticamente tudo que lá é visto representa uma filmagem empírica, dos veículos às lutas, das explosões às capotagens. Tudo foi filmado e apenas embelezado pelo CGI (que, dentre outras, embelezou a fotografia ao enaltecer as cores marcantes), até mesmo o guitarrista piromaníaco. Qualquer produção já exige bastante pessoal, mais ainda ao precisar de tantos recursos - para pegar apenas um elemento, cada veículo lá é real, carecendo a equipe de profissionais tanto para a parte mecânica quanto para a parte de design.

E é aqui que a crítica ingressa em um elemento nuclear do longa, fator que não pode ser olvidado: o trabalho de George Miller na direção é um dos melhores da história dos filmes de ação - até porque este é um dos melhores filmes de ação de todos os tempos, que já nasceu clássico. A empreitada idealizada pelo cineasta claramente seria extremamente difícil, e a dificuldade aumentou exponencialmente pela decisão de evitar o CGI. Logo, a filmagem se tornou um trabalho hercúleo que apenas um cineasta com um talento gigantesco poderia abraçar e fazer um trabalho formidável como o de Miller. A indicação ao Oscar de melhor diretor não foi exagero, e apenas Iñárritu é capaz de vencer. O filme também foi indicado a melhor montagem, que é eficiente e veloz na medida necessária - pois ele todo é bastante veloz -, mas talvez não seja o maior destaque.

Como se não bastasse, o longa elabora uma rica construção das personagens, que se torna ainda mais rica com a estética e os sons inseridos na película. Furiosa não seria a mesma sem o seu braço mecânico, metáfora clara do seu pretérito sofrido e superado (ou talvez contornado dentro das possibilidades encontradas). Sim, Charlize Theron fez um ótimo trabalho de atuação, mas foi favorecida pela personagem. Já Max sofreu críticas variadas, mas a verdade é que Miller idealizou um Max sem vaidade, altruísta e atormentado pelo seu passado, portanto, a interpretação contida de Tom Hardy é totalmente compatível com a proposta. Não caberia um overacting ou uma eletricidade na personalidade porque a personagem tem uma carga sóbria e sombria, não representa o herói tradicional que procura os holofotes. Max e Tom são discretos porque a discrição é necessária, caso contrário, soaria incoerente. Dos coadjuvantes, além do antagonista fascinante, também Nicholas Hoult e seu Nux brilha enormemente, não apenas pela transição obrada, mas, em especial, por ser a personagem mais vulnerável e frágil - além do carisma do ator, tudo favorecendo a identificação cinematográfica secundária. Nux é encantador porque soa mais real que os demais. Até mesmo as parideiras têm densidade: algumas são mais corajosas que outras - compare-se Toast (Zöe Kravitz) e Splendid (Rosie Huntington-Whiteley) com Fragile (Courtney Eaton), que são destaque constante (as duas primeiras, pela força, esta, não somente pelo nome, mas por querer se render), ou mesmo com a religiosa (?) The Dag (Abbey Lee) e a romântica Capable (Riley Keough). Cada uma é um arquétipo diferente, sem se enquadrar em estereótipos entediantes. Kravitz e Huntington-Whiteley são os maiores destaques em razão da experiência maior. Note-se que são várias as personagens, mas todas têm espaço para acrescentar algo no conjunto.

É com isso que se pode afirmar (reiterar) que "Mad Max: Estrada da Fúria" é um dos melhores filmes de ação de todos os tempos. A rigor, ultrapassa as barreiras do seu gênero por abusar da ficção (flerta com o gênero aventura), tornando-se talvez um dos melhores filmes da história do cinema - 97% de aprovação no Rotten Tomatoes expressam um pouco essa condição. Tecnicamente impecável, original, criativo, belo e extraordinário, indica que a sétima arte ainda pode inovar e encantar. Pode não agradar a todos os gostos em razão do caráter fictício, mas é maravilhoso. Negar isso seria um crime cinematográfico.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Trumbo: Lista Negra -- Grão de areia dentro de uma praia gigantesca

O mundo da internet escancara, mas a intolerância do ser humano não é um mal novo. Ao revés, a química explosiva oriunda da miscelânea entre opinião discordante e arrogância resulta nessa violência ideológica - muitas vezes, até mesmo em violência física. E isso já ocorria na Hollywood das décadas de 1940 e 1950, podendo um retrato parcial ser conferido em "Trumbo: Lista Negra".

O que há de muito bom no filme é o seu protagonista. A história não tem a pretensão de elaborar uma cinebiografia, mas faz um recorte grande (o que explica o subtítulo brasileiro), da década de 1930 até 1975, indo, a bem da verdade, além da vida de Dalton Trumbo. Contudo, o foco é a opressão ideológica em relação a ele: filiado ao Partido Comunista nos anos 30, passou a ser perseguido (pelo Estado e por cidadãos comuns) e preso, tendo enorme dificuldade para conseguir trabalho desde então. A narrativa, portanto, tem dois grandes momentos: antes e depois da prisão de Trumbo.

A representação de tantos anos foi feita bem não pela maquiagem, mas pela direção e, claro, atuação. Bryan Cranston encarna de modo excelente seu protagonista: convincente na ideologia defendida, coerente da formação de uma personalidade e muito eficaz ao demonstrar o resultado do passar dos anos (mérito dele, não da maquiagem fajuta). Não menos importante nesse quesito foi o trabalho do diretor Jay Roach, que se debruçou sobre a mise-en-scène referente a Trumbo. Roach não foi atento a todos os detalhes, mas não pecou com Cranston, inserindo elementos que fizeram a diferença na caracterização, como, por exemplo, as cenas do trabalho na banheira, o recorta-e-cola dos roteiros, a digitação por dois dedos e o cigarro inafastável de Trumbo (o espectador é quase um fumante passivo). Também acertada foi a montagem inicial dinâmica, ampliada pelo jazz instrumental (presente em várias outras cenas, enriquecendo-as), ao fazer algumas cenas em preto-e-branco e com razão de aspecto reduzida (no início e em Washington, sempre tendo um propósito bastante claro e muito coerente). O prólogo é conservador, mas as primeiras cenas geram expectativa alta ao acelerar e dar a entender que haverá um clímax.

O problema é que montagem e direção perdem fôlego à medida que o roteiro encerra seu escopo. Aquela vai para o tradicional, linear e mastigado, esta, para um serviço mecânico. A única cena em que há algo um pouco diferente é um monólogo ao final, ou seja, nada extraordinário. Não se diga que o design de produção é destaque positivo, pois fazer o feijão-com-arroz não pode ser destacado. O roteiro até consegue ser eficaz para representar o sofrimento de Trumbo em razão da intolerância relativa à sua ideologia política no período da Guerra Fria: ele é preso por desacato, pois ideias não podem ser criminalizadas; seu nome integra a Lista Negra por pertencer ao grupo conhecido como "Os Dez de Hollywood"; e a cena em que ele se despe na prisão de forma degradante é ótima (uma das melhores neste excelente trabalho de Cranston). Como tempero adicional, algumas sutilezas cômicas, como a conversa entre Trumbo e a sua filha sobre a sua "condição" (de comunista - ela chega a questionar se, em razão dela, ele seria perigoso) e uma ironia inesperada na prisão.

Contudo, o exagero em frases de efeito, a criação de antagonistas e até heróis coadjuvantes estereotipados e algumas lacunas prejudicam o script. "Os comunistas querem conquistar o mundo" e "comunista bom é comunista morto" não precisavam estar lá, até por ficarem subentendidas. A bebida jogada na face de Trumbo numa das cenas iniciais (o início da película é ótimo) já tem um subtexto expressivo o suficiente. Pior ainda, os dois principais antagonistas formam o arquétipo do vilão clichê e unidimensional: Helen Mirren e seu belíssimo (e bem significativo para ser condizente com o papel) figurino constituem a malvada Hedda Hopper, colunista cujo intuito da vida é combater os comunistas a qualquer custo; e David James Elliott interpreta um corpulento John Wayne reduzido a discursos de alienação (cão que ladra...). Os dois provavelmente roubam doces de crianças, de tão malvados e inescrupulosos. E dois heróis coadjuvantes também são arquétipos unidimensionais: Dean O'Gorman vive um destemido Kirk Douglas, e Christian Berkel atua como um exagerado Otto Preminger. São bravos guerreiros que tirariam gatos do alto de árvores, numa coragem motivante. O elenco não atua mal, o roteiro é que cria mal essas quatro personalidades, todas fundamentais na trama. A própria Cleo Trumbo, esposa de Dalton, é vazia, apesar da escalação da razoável Diane Lane. Coitada, merecia um papel melhor. Ah, sim, as lacunas... fruto das várias elipses, tornam-se praticamente inevitáveis. Por exemplo: o que acontece no período em que Trumbo é preso? Muito pouco é retratado. Por outro lado, a boa atuação de alguns do elenco rende boas cenas, em especial no enfrentamento entre Trumbo e Wayne ao falar sobre a Segunda Guerra e nos vários embates entre Trumbo e Niki (Elle Fanning, naquele que talvez seja o seu melhor papel até agora). A relação entre pai e filha, por sinal, mereceria um parágrafo à parte, pois é uma das poucas subtramas (se não a única) bem desenvolvida. Outro muito bem é John Goodman, brilhando em uma cena específica como um explosivo  e de personalidade forte Frank King.

Assim, "Trumbo: Lista Negra" vale mais pelas atuações e pela curiosidade por se tratar de uma história real pouco conhecida. Porém, uma reflexão robusta permite ir além: quantas pessoas ainda hoje sofrem por situações e condições pessoais encaradas de forma negativa por outras? O longa é um grão de areia dentro de uma praia gigantesca: o homem não aprendeu com os erros do pretérito.

P.S.: aguardem para assistir a uma cena durante os créditos.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Cinema com Rapadura, estreia com "Caçadores de Emoção - Além do Limite"

Prezados leitores,

Iniciei na presente semana um trabalho novo, agora como crítico do site Cinema com Rapadura (conheça aqui). Minha primeira crítica publicada no CcR foi do filme "Caçadores de Emoção - Além do Limite", para o qual dei nota 4 (em escala de 0 a 10). O texto pode ser conferido clicando aqui.

Meu trabalho como crítico no CcR, porém, não apaga tudo que foi feito até agora aqui no Recanto. Pelo contrário, minha seleção para o site apenas enaltece o trabalho efetuado aqui, o que significa, inclusive, que não pode parar. Além disso, há que se recordar que o Recanto é um blog de críticas, mas um blog de cinema, o que permite textos diversos de críticas, desde que sobre cinema - como já ocorreu, em relação à análise inicial do Oscar).

Portanto, o Recanto do Cinéfilo continua sendo o meu meio de comunicação principal para tratar de cinema e veicular as minhas críticas. A única diferença é que agora sou crítico também do Cinema com Rapadura, honra que enobrece a dedicação obrada aqui. É com alegria e empolgação que integro a equipe do CcR, site em que trabalham ótimos críticos.

Em termos práticos, a maioria das minhas críticas ficarão aqui no Recanto. Quando eu escrever para o CcR, postarei o link como fiz neste post. Isto é, o texto inédito integral fica aqui, e remeto aos textos publicados no CcR quando isso ocorrer. Assim, não faltarão críticas para os leitores, tanto aqui como lá. Acompanhando o blog, será possível ler todas as críticas de minha autoria, tanto as que ficam apenas aqui quanto as publicadas no CcR (nesse caso, com link remissivo). A atividade não vai cessar, estejam certos! Portanto, não deixem de acompanhar diariamente o Recanto do Cinéfilo, pois aqui sempre haverão novidades!