quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Trumbo: Lista Negra -- Grão de areia dentro de uma praia gigantesca

O mundo da internet escancara, mas a intolerância do ser humano não é um mal novo. Ao revés, a química explosiva oriunda da miscelânea entre opinião discordante e arrogância resulta nessa violência ideológica - muitas vezes, até mesmo em violência física. E isso já ocorria na Hollywood das décadas de 1940 e 1950, podendo um retrato parcial ser conferido em "Trumbo: Lista Negra".

O que há de muito bom no filme é o seu protagonista. A história não tem a pretensão de elaborar uma cinebiografia, mas faz um recorte grande (o que explica o subtítulo brasileiro), da década de 1930 até 1975, indo, a bem da verdade, além da vida de Dalton Trumbo. Contudo, o foco é a opressão ideológica em relação a ele: filiado ao Partido Comunista nos anos 30, passou a ser perseguido (pelo Estado e por cidadãos comuns) e preso, tendo enorme dificuldade para conseguir trabalho desde então. A narrativa, portanto, tem dois grandes momentos: antes e depois da prisão de Trumbo.

A representação de tantos anos foi feita bem não pela maquiagem, mas pela direção e, claro, atuação. Bryan Cranston encarna de modo excelente seu protagonista: convincente na ideologia defendida, coerente da formação de uma personalidade e muito eficaz ao demonstrar o resultado do passar dos anos (mérito dele, não da maquiagem fajuta). Não menos importante nesse quesito foi o trabalho do diretor Jay Roach, que se debruçou sobre a mise-en-scène referente a Trumbo. Roach não foi atento a todos os detalhes, mas não pecou com Cranston, inserindo elementos que fizeram a diferença na caracterização, como, por exemplo, as cenas do trabalho na banheira, o recorta-e-cola dos roteiros, a digitação por dois dedos e o cigarro inafastável de Trumbo (o espectador é quase um fumante passivo). Também acertada foi a montagem inicial dinâmica, ampliada pelo jazz instrumental (presente em várias outras cenas, enriquecendo-as), ao fazer algumas cenas em preto-e-branco e com razão de aspecto reduzida (no início e em Washington, sempre tendo um propósito bastante claro e muito coerente). O prólogo é conservador, mas as primeiras cenas geram expectativa alta ao acelerar e dar a entender que haverá um clímax.

O problema é que montagem e direção perdem fôlego à medida que o roteiro encerra seu escopo. Aquela vai para o tradicional, linear e mastigado, esta, para um serviço mecânico. A única cena em que há algo um pouco diferente é um monólogo ao final, ou seja, nada extraordinário. Não se diga que o design de produção é destaque positivo, pois fazer o feijão-com-arroz não pode ser destacado. O roteiro até consegue ser eficaz para representar o sofrimento de Trumbo em razão da intolerância relativa à sua ideologia política no período da Guerra Fria: ele é preso por desacato, pois ideias não podem ser criminalizadas; seu nome integra a Lista Negra por pertencer ao grupo conhecido como "Os Dez de Hollywood"; e a cena em que ele se despe na prisão de forma degradante é ótima (uma das melhores neste excelente trabalho de Cranston). Como tempero adicional, algumas sutilezas cômicas, como a conversa entre Trumbo e a sua filha sobre a sua "condição" (de comunista - ela chega a questionar se, em razão dela, ele seria perigoso) e uma ironia inesperada na prisão.

Contudo, o exagero em frases de efeito, a criação de antagonistas e até heróis coadjuvantes estereotipados e algumas lacunas prejudicam o script. "Os comunistas querem conquistar o mundo" e "comunista bom é comunista morto" não precisavam estar lá, até por ficarem subentendidas. A bebida jogada na face de Trumbo numa das cenas iniciais (o início da película é ótimo) já tem um subtexto expressivo o suficiente. Pior ainda, os dois principais antagonistas formam o arquétipo do vilão clichê e unidimensional: Helen Mirren e seu belíssimo (e bem significativo para ser condizente com o papel) figurino constituem a malvada Hedda Hopper, colunista cujo intuito da vida é combater os comunistas a qualquer custo; e David James Elliott interpreta um corpulento John Wayne reduzido a discursos de alienação (cão que ladra...). Os dois provavelmente roubam doces de crianças, de tão malvados e inescrupulosos. E dois heróis coadjuvantes também são arquétipos unidimensionais: Dean O'Gorman vive um destemido Kirk Douglas, e Christian Berkel atua como um exagerado Otto Preminger. São bravos guerreiros que tirariam gatos do alto de árvores, numa coragem motivante. O elenco não atua mal, o roteiro é que cria mal essas quatro personalidades, todas fundamentais na trama. A própria Cleo Trumbo, esposa de Dalton, é vazia, apesar da escalação da razoável Diane Lane. Coitada, merecia um papel melhor. Ah, sim, as lacunas... fruto das várias elipses, tornam-se praticamente inevitáveis. Por exemplo: o que acontece no período em que Trumbo é preso? Muito pouco é retratado. Por outro lado, a boa atuação de alguns do elenco rende boas cenas, em especial no enfrentamento entre Trumbo e Wayne ao falar sobre a Segunda Guerra e nos vários embates entre Trumbo e Niki (Elle Fanning, naquele que talvez seja o seu melhor papel até agora). A relação entre pai e filha, por sinal, mereceria um parágrafo à parte, pois é uma das poucas subtramas (se não a única) bem desenvolvida. Outro muito bem é John Goodman, brilhando em uma cena específica como um explosivo  e de personalidade forte Frank King.

Assim, "Trumbo: Lista Negra" vale mais pelas atuações e pela curiosidade por se tratar de uma história real pouco conhecida. Porém, uma reflexão robusta permite ir além: quantas pessoas ainda hoje sofrem por situações e condições pessoais encaradas de forma negativa por outras? O longa é um grão de areia dentro de uma praia gigantesca: o homem não aprendeu com os erros do pretérito.

P.S.: aguardem para assistir a uma cena durante os créditos.

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