quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Mad Max: Estrada da Fúria -- Um dos melhores filmes da história do cinema

As críticas mais complexas são as que demandam maior elaboração em razão de o filme representar um extremo, seja ele positivo, seja negativo. Filmes muito bons ou muito ruins são mais difíceis de serem analisados, exigindo cautela especial, inclusive para não cometer alguma injustiça. "Mad Max: Estrada da Fúria" é exemplo de um filme cuja excelência chega a um nível tão alto que redigir uma crítica se torna tarefa ainda mais árdua. Trata-se de uma obra tão extraordinária que qualquer análise se torna reducionista, tamanha a sua grandiosidade. Aliás, o fato de ter sido indicado a tantos prêmios já indica a sua qualidade ímpar - 10 indicações ao Oscar, por exemplo, inclusive na categoria de Melhor Filme.

Para alguns, trata-se de um reboot da franquia da década de 1980, protagonizada por Mel Gibson, agora substituído por Tom Hardy. Mas não, George Miller, cineasta idealizador da história de Max (vale dizer, dos até agora 4 filmes) sustenta ser uma continuação, interpretação plausível pela qual se faz uma analogia com outra famosa e longínqua franquia, a do agente 007. Muda o ator, muda o momento, muda a história, mas não muda o universo. O enredo é lacônico: em uma realidade distópica, o outrora policial Max Rockatansky (Tom Hardy) é capturado para ser usado como doador de sangue em favor de soldados do ditador Immortan Joe (Hugh Keays-Byrne, em seu segundo vilão diferente na franquia); paralelamente, uma das imperatrizes desse mesmo ditador, Furiosa (Charlize Theron), se rebela contra ele e foge, levando consigo algumas das parideiras de Joe. É na perseguição (Joe-Furiosa) que Max e Furiosa se encontram, inicialmente na luta pela liberdade e mesmo pela sobrevivência. Duas tramas paralelas que são unidas por um antagonista, não havendo, portanto, simplicidade na narrativa.

Esta é, por sinal, uma das maiores críticas em relação ao filme. Há quem alegue, equivocadamente, que a história é rasa. Isso não é verdade por diversas razões. Inicialmente, "Mad Max" tem uma virtude cada vez mais rara na sétima arte, que é uma incontestável originalidade - nesse caso, aliada a uma imensurável criatividade. "Mad Max" pode ser comparado com "Mad Max". Os dois primeiros filmes são precursores no gênero de ação, são verdadeiros marcos que influenciaram diversos outros. Não há nada repetido, nada clichê, ao revés, Miller fugiu de todos os clichês imagináveis ao criar uma mitologia distópica singular (à la Tolkien). O universo em que Max está inserido é incomparável a qualquer outra distopia, e seria ousadia demais tentar um resumo - basta mencionar a devoção ao volante, o guitarrista lança-chamas, o Vale Verde, os sorrisos cromados e, claro, Valhala (quem não gostaria de conhecer Valhala!?). E não apenas isso, o plot aborda ainda questões complexas de forma crítica, porém sutil. O público acostumado com roteiros sutis como uma marreta de fato não compreende a suavidade na abordagem temática presente no longa. Merecem destaque a escassez de recursos naturais que são então monopolizados por um cruel ditador (quiçá uma crítica ao modo de produção capitalista, que também cria esse abismo), a coisificação do humano (sendo as parideiras com cintos de castidade e o próprio Max como blood bag representações simbólicas bem evidentes), o instinto humanitário presente apenas em algumas pessoas ("sem mortes desnecessárias"), a inafastável organização hierárquica de um sistema bélico alienante (basta ver o sacrifício almejado pelos soldados) que preza pela manutenção da ordem (as imperatrizes, aparentemente, são equivalentes a generais) quando enfrentada por um esforçado trabalho em grupo, a força potencial nas figuras femininas (Furiosa não tem nada de mocinha indefesa, e as parideiras, em geral, não são tão diferentes) e, claro, a liberdade, objetivo a ser atingido por alguns e valor abdicado por outros (questão mais central representada por Furiosa e as parideiras, além de Max, enquanto que os soldados abdicam - "testemunhe" se torna um mantra). Se isso é um roteiro raso, difícil imaginar o que seria profundo. A densidade da película é peculiar por não escancarar os temas na abordagem, mas isso não é ser raso, é ser sutil. Assim, a abordagem delicada exige do espectador maior sensibilidade que nos filmes ordinários (pois "Mad Max" é extraordinário) - aqueles sutis como uma marreta.

Outra crítica equivocada se refere à interpretação de Furiosa como protagonista de "Fury Road". Ela é muito importante, peça-chave da narrativa e engrenagem que a faz girar. Engrenagem, não motor, pois motor mesmo é Max. Não por seu nome estar no título, não por ele aparecer como narrador no início, mas porque ele "entra de gaiato" no imbróglio entre Furiosa e Immortan Joe, é ele quem realmente move a trama do começo ao fim. Não obstante, é ainda possível encarar a imperatriz como a protagonista deste filme. A questão é: que diferença faz quem exerce o protagonismo? É ruim Furiosa talvez protagonizar um "Mad Max"? Se as respostas forem afirmativas, o que o filme preza - trabalho em grupo e força feminina - não se acopla à ideologia do espectador. Ademais, afirmar que este longa não é bom por ser exageradamente insano é um erro crasso, vez que insanidade é sua premissa. A premissa de um filme jamais merece agressão intelectual - a não ser, evidentemente, que represente uma violência intelectual, uma afronta a seres munidos de cérebro (como em "The ridiculous six"), o que não é o caso aqui. O que é importante é que o filme seja fiel à sua premissa, coerente com a sua própria mitologia, por mais surreal que ela seja. Não gostar da insanidade de "Mad Max" é perfeitamente aceitável, afirmar que isso o torna ruim é tolice. Seria o mesmo que defender uma má qualidade em "O Senhor dos Anéis" por apresentar seres que não existem na vida real. A premissa pode ser exageradamente surreal, o que não pode é soar incoerente dentro de si mesma.

Os parágrafos acima, por mais surpreendente que possa parecer, são praticamente introdutórios. Um filme indicado a 10 estatuetas na cerimônia do Oscar merece uma análise vertical. Que segue agora.

"Mad Max: Estrada da Fúria" é simplesmente soberbo em seus aspectos sonoros. A trilha sonora é "apenas" boa, todavia, edição e mixagem de som são espetaculares - categorias em que o filme é favorito para angariar duas estatuetas. A edição de som conta com efeitos no deserto e impacto dos carros, mas se destaca para o grande público com os sons da guitarra e de tambores durante a perseguição. O trabalho de mixagem, por conseguinte, foi enorme, porém, exitoso - a dificuldade foi ultrapassada.

Para o espectador comum, o que mais brilha neste longa, sem dúvida, é a sua estética única. E realmente, ele é fantasticamente maravilhoso no visual - concorre ao Oscar de melhor montagem, direção de arte, figurino, maquiagem, fotografia e efeitos visuais. O design de produção é fabuloso e harmônico com a mitologia da obra, com um domínio sem igual no uso das cores, vestimentas e quaisquer aparatos úteis. Nesse ínterim, a fotografia é bipolar ao abusar do azul e do amarelo: de dia no deserto, tons pastéis e dourados prevalecem; à noite, azulados. A maquiagem foi um trabalho louvável - em especial com Furiosa e sua testa preta (metáfora da sua personalidade sombria) e nos soldados de Joe (uma pesadíssima maquiagem em que prevalece o branco no corpo todo, metáfora da sua neutralidade e alienação) -, enquanto que o figurino é indescritível de tão deslumbrante (do ponto de vista artístico, não da moda, evidentemente), mesmo sendo minimalista - compatível com a realidade defendida, afinal, não faria sentido muita vaidade. Max e Furiosa usam vestuário de cor neutra, levemente escurecida e envelhecida, já as parideiras se vestem de branco - no sentido figurado, respectivamente, os sofridos guerreiros e as moças puras. Nux e os demais soldados nem precisam de roupas (e usam poucas), afinal, são meros objetos para Joe, absolutamente descartáveis. De toda sorte, é nos efeitos visuais estonteantes que "Mad Max: Estrada da Fúria" se torna impressionante e admirável: impressiona pela beleza inigualável (a cena da tempestade de areia é uma das mais lindas da história do cinema) e causa admiração por ser tudo real. Sim, essa notícia deixa qualquer um perplexo: George Miller optou por reduzir ao máximo o CGI - inevitável no braço mecânico de Furiosa, por exemplo -, de modo que praticamente tudo que lá é visto representa uma filmagem empírica, dos veículos às lutas, das explosões às capotagens. Tudo foi filmado e apenas embelezado pelo CGI (que, dentre outras, embelezou a fotografia ao enaltecer as cores marcantes), até mesmo o guitarrista piromaníaco. Qualquer produção já exige bastante pessoal, mais ainda ao precisar de tantos recursos - para pegar apenas um elemento, cada veículo lá é real, carecendo a equipe de profissionais tanto para a parte mecânica quanto para a parte de design.

E é aqui que a crítica ingressa em um elemento nuclear do longa, fator que não pode ser olvidado: o trabalho de George Miller na direção é um dos melhores da história dos filmes de ação - até porque este é um dos melhores filmes de ação de todos os tempos, que já nasceu clássico. A empreitada idealizada pelo cineasta claramente seria extremamente difícil, e a dificuldade aumentou exponencialmente pela decisão de evitar o CGI. Logo, a filmagem se tornou um trabalho hercúleo que apenas um cineasta com um talento gigantesco poderia abraçar e fazer um trabalho formidável como o de Miller. A indicação ao Oscar de melhor diretor não foi exagero, e apenas Iñárritu é capaz de vencer. O filme também foi indicado a melhor montagem, que é eficiente e veloz na medida necessária - pois ele todo é bastante veloz -, mas talvez não seja o maior destaque.

Como se não bastasse, o longa elabora uma rica construção das personagens, que se torna ainda mais rica com a estética e os sons inseridos na película. Furiosa não seria a mesma sem o seu braço mecânico, metáfora clara do seu pretérito sofrido e superado (ou talvez contornado dentro das possibilidades encontradas). Sim, Charlize Theron fez um ótimo trabalho de atuação, mas foi favorecida pela personagem. Já Max sofreu críticas variadas, mas a verdade é que Miller idealizou um Max sem vaidade, altruísta e atormentado pelo seu passado, portanto, a interpretação contida de Tom Hardy é totalmente compatível com a proposta. Não caberia um overacting ou uma eletricidade na personalidade porque a personagem tem uma carga sóbria e sombria, não representa o herói tradicional que procura os holofotes. Max e Tom são discretos porque a discrição é necessária, caso contrário, soaria incoerente. Dos coadjuvantes, além do antagonista fascinante, também Nicholas Hoult e seu Nux brilha enormemente, não apenas pela transição obrada, mas, em especial, por ser a personagem mais vulnerável e frágil - além do carisma do ator, tudo favorecendo a identificação cinematográfica secundária. Nux é encantador porque soa mais real que os demais. Até mesmo as parideiras têm densidade: algumas são mais corajosas que outras - compare-se Toast (Zöe Kravitz) e Splendid (Rosie Huntington-Whiteley) com Fragile (Courtney Eaton), que são destaque constante (as duas primeiras, pela força, esta, não somente pelo nome, mas por querer se render), ou mesmo com a religiosa (?) The Dag (Abbey Lee) e a romântica Capable (Riley Keough). Cada uma é um arquétipo diferente, sem se enquadrar em estereótipos entediantes. Kravitz e Huntington-Whiteley são os maiores destaques em razão da experiência maior. Note-se que são várias as personagens, mas todas têm espaço para acrescentar algo no conjunto.

É com isso que se pode afirmar (reiterar) que "Mad Max: Estrada da Fúria" é um dos melhores filmes de ação de todos os tempos. A rigor, ultrapassa as barreiras do seu gênero por abusar da ficção (flerta com o gênero aventura), tornando-se talvez um dos melhores filmes da história do cinema - 97% de aprovação no Rotten Tomatoes expressam um pouco essa condição. Tecnicamente impecável, original, criativo, belo e extraordinário, indica que a sétima arte ainda pode inovar e encantar. Pode não agradar a todos os gostos em razão do caráter fictício, mas é maravilhoso. Negar isso seria um crime cinematográfico.

Um comentário:

  1. Concordo com cada palavra. Antes de Fury Road eu estava órfão do gênero ação... muito bom me sentir acolhido novamente. Assisti 4 vezes no cinema e mais 3 vezes no sofá de casa. Filme simplesmente extraordinário! Parabéns pela crítica, muito bem feita.

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