quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

A Garota Dinamarquesa -- Filme de atuações memoráveis e grandiosas, apenas

A obra pode ser maior que o tema, ou o tema maior que a obra. É possível, a partir de uma temática singela (não necessariamente simples), construir uma película sensacional. Da mesma forma, também é possível reduzir um assunto espinhoso a um longa quadrado. No Oscar 2016, "A Grande Aposta" pega um assunto espinhoso e faz uma obra ótima e didática. Já "A Garota Dinamarquesa" reduz um tema complexo a um drama quase suave - na medida do possível, evidentemente. Um filme muito mais curioso que instrutivo. Porém, é uma oportunidade rara para retratar dignamente pessoas tão marginalizadas (só por isso já vale o ingresso).

Assim, o significado cinematográfico deste longa é mais o símbolo do novo paradigma humanista do que a qualidade inerente a ele. Estamos em novos tempos, um momento em que cineastas se debruçam sobre tópicos antes vistos como tabus - em especial, as discriminações. O caminho a ser percorrido ainda é gigantesco, mas "Carol" e "A Garota Dinamarquesa" enobrecem a causa LGBT como seus competentes representantes. Ainda que não sejam filmes extraordinários em termos cinematográficos, representam que, cada vez mais, o ser humano tenta se preocupar com o alcance da felicidade sem preconceitos. Tal construção é um eterno devir, mas o abandono do paradigma hedonista egoístico e preconceituoso por alguns cineastas já é um passo à frente. É um avanço inegável um filme que trata sobre transexuais estar entre os grandes da safra anual.

"A Garota Dinamarquesa" é inspirado na história real de Lili Elbe, uma das primeiras transexuais da história. Existem divergências em relação à história real, mas, para o presente texto, tal fator é irrelevante - afinal, a análise é do filme, e não da vida de Lili Elbe. Na película (a descrição que segue está no trailer, logo, não se trata de spoiler), Einar Wegener, pintor de relativo sucesso, descobre ser uma mulher (psicologicamente) habitando um corpo masculino (biologicamente) a partir de um episódio em que sua esposa, Gerda (também pintora, de menor prestígio), solicita que ele use roupas femininas para que ela termine uma pintura. Tudo começa com escopo profissional para ela, continuando como brincadeira, depois enfrentamento (pouco) e, por fim, compreensão e apoio. Diversamente, para Einar, a vontade de se realizar como a mulher que sempre fora (mas que nem sempre soube, e nem sempre aceitou) apenas cresce, a ponto de submeter-se a uma controversa (à época) cirurgia para a sua redesignação sexual, que arrisca sua integridade corporal e, claro, sua vida. É aqui que reside o pioneirismo real de Lili, ao enfrentar uma intervenção cirúrgica polêmica visando sua própria felicidade - também são homenageados os corajosos médicos (não apenas os/as pacientes, como Lili) que, enfrentando seus pares, estudaram o tema e audaciosamente tentaram reduzir o sofrimento das pessoas na aflição da insatisfação corporal e de identidade. Em última análise, Lili buscava uma felicidade epicurista ao não temer a morte. O desejo de viver feliz era maior que a chance de falecer tentando. Seu querer era indômito e admirável.

Adentrando no filme, o prólogo é fortemente simbólico: um plano geral com paisagem bucólica e céu nublado. A paisagem bucólica está presente nas pinturas de Einar, totalmente diferentes das de Gerda, que prefere pintar pessoas. Trata-se da representação simbólica da personalidade de cada um: Einar é distante, saudosista e objetivista; Gerda é determinada, subjetivista e prefere ver a beleza nas pessoas (talvez até mais ingênua, no início). Também patente o voyeurismo, como no diálogo entre Gerda e um homem que ela retrata, alem da intensa nudez - opção acertada da direção, afastando quaisquer tabus. A pintura é um voyeurismo inegável que atua de forma diferente em cada um deles, mas está presente em ambos - até Einar substituir pela sua empreitada. Para Gerda, aumenta exponencialmente ao retratar Lili. O céu nublado do prólogo também é simbólico na medida que representa a vida cinzenta do protagonista como Einar, o que é claramente substituído pelo céu mais limpo com o decorrer da trama - o que destaca uma fotografia condizente com a obra. Tudo fica mais claro no visual e na linguagem figurada. Nesse ínterim, o design de produção é no geral acertado, representando o cenário da época (Europa da década de 1920) e maquiagens adequadas, além de figurinos simbólicos (Gerda de preto, Lili realizada com cores claras e Gerda com cores opacas etc.). Não é à toa que o filme concorre ao Oscar de melhor figurino (e de melhor produção): além de tecnicamente precisos, são cinematograficamente simbólicos. Isso sem contar um ótimo trabalho com a luz, destacável em duas cenas: no início, quando Gerda e Einar aparecem como um casal feliz, mas este fica com o rosto na penumbra (indicando que a felicidade talvez não seja plena); e quando aparece o médico responsável pela cirurgia - nesse caso, uma linguagem figurada sagaz, pois o médico é visto pelo casal na direção onde está a luz, e, de fato, ele parece ser a chave para a felicidade de Lili.

Como nem tudo são flores, o diretor Tom Hooper não obtém êxito ao retratar a transição de Einar em Lili. Não se pode culpar o roteiro, pois existem cenas de Einar sem cogitar Lili; tampouco o ator, que é um espetáculo à parte. Alguns elementos ficam soltos para indicar quando o que é mostrado é Einar e não Lili - ou Lili e não Einar. Em especial, a maquiagem e o figurino. No entanto, pouco se sabe sobre Einar antes da cena do vestido, não ficando claro quem ele realmente é. A personalidade de Lili se torna frágil à medida que Einar é obscuro. Quem é Einar? O roteiro foca na transição em si, e Hooper é sutil como uma marreta: Einar não sabe sequer a colocar as meias, se nega a colocar o vestido (ao menos no início), considerando ultrajante travestir-se de mulher para acompanhar sua mulher em um baile. Há enfoque total na transição de Einar para Lili, esta, da clandestinidade para o objetivo de vida, ignorando o que se passava antes de tudo isso, no pretérito próximo. O que Oola representa para o casal? Ora, se o objetivo é retratar uma transição, colocar as barreiras do antes e do depois seria fundamental. Grosso modo, Hooper dá a entender que, do dia para a noite, Einar aceita ser Lili, quando, na verdade, é evidente que não foi tão fácil. É tudo tão veloz que soa artificial demais, incomoda. Por sinal, Hooper repete a clássica, porém piegas, cena de uma personagem inconsolável na chuva. Talvez a escolha do diretor não tenha sido a mais acertada, pois seu trabalho em "O Discurso do Rei" foi melhor.

Tendo em vista que os conflitos são mais internos que externos em "A Garota Dinamarquesa", o resultado é, basicamente, um filme de atuações. O casal principal é de um talento imensurável! De um lado, o gigante e já consagrado Eddie Redmayne recebe uma seguida (e novamente justa) indicação ao Oscar em razão de mais um trabalho maravilhoso. Redmayne tem chamado a atenção desde "Sete Dias com Marilyn" (em que recebeu papel de destaque em um filme com bom marketing pela primeira vez), apenas crescendo desde então. Covardemente, alguns afirmam que ele tem assumido papéis para aparecer no Oscar. Que ator não quer aparecer no Oscar? Fato é que, mais uma vez, ele assume uma personagem que exige dedicação física intensa (e exposição corporal mediante nudez frontal), mas também - again! - atenção aos detalhes. É nisso que ele é maravilhoso: sabe transmitir o deslumbramento surpreendente ao colocar o vestido em frente ao seu corpo pela primeira vez, bem como uma alegria incompreensível (naquele momento). A curiosidade de Einar cresce, e Redmayne é penetrante para demonstrar tudo que ocorre: da busca extracorpórea - nudez e vestuário - ao que é imanente ao físico - os trejeitos femininos, o fascinante estudo das outras mulheres (que rende cenas belíssimas, como a da cabine), o caminhar, os olhares... a atuação de Redmayne é tão preciosa que, novamente, cada mínimo movimento agiganta o que representa. Poucos atores poderiam fazer este papel tão bem. Exemplo desta joia da atuação é o trabalho feito com a voz: ao invés de ir para o lugar-comum com falsetes que distinguiriam Lili de Einar (até porque ele tem uma voz bem grave), opta por diminuir o tom da voz e suavizá-la, ainda assim permitindo a distinção. Genial!

Justiça seja feita, o trabalho de Alicia Vikander, também indicada ao Oscar, também é excelente, embora um pouco menos desafiador. Longe de desmerecer o que a revelação sueca (que também poderia ter sido indicada por "Ex Machina") fez, Redmayne teve barreiras maiores a enfrentar, como se despir do seu jeito másculo, mostrar o próprio corpo nu e convencer como uma transexual. Já Gerda é uma personagem mais simples, cuja complexidade reside na dúvida entre aceitar e apoiar o marido na transformação rumo à felicidade, ou insistir em querer o marido como (em tese, pois não é mostrado) o conheceu. Ela é minimalista como tem de ser ao interpretar uma mulher corajosa que é Gerda. Vikander domina Gerda com maestria, e exemplo do seu talento é a cena em que, apesar de perplexa e aparentemente sem reação, deixa escorrer uma lágrima em seu rosto. Ainda quanto ao elenco, os coadjuvantes são módicos - tanto as personagens quanto os artistas. O Henrik de Ben Whishaw pouco mostra a que veio, a não ser, talvez, dar um pequeno empurrão para Lili mais no começo (e depois praticamente some); o Hans de Matthias Schoenaerts é um arauto da bondade e altruísmo, figura que dificilmente existiria naquela realidade (mas seu carinho por tudo e todos não deixa de ser encantador); a Oola de Amber Heard é tão superficial que se torna descartável; e o médico de Sebastian Koch é exageradamente sério.

Como se percebe, "A Garota Dinamarquesa" é um produto que, embora quisesse, não conseguiu alcançar a genialidade. O trabalho tem qualidade, tem muitas virtudes, mas peca demais em construções relevantes. A narrativa se torna rocambolesca ao insistir em Einar querendo ser Lili, algo que fica claro desde o início. Parece querer martelar uma proposta cuja compreensão era fácil. Por que anular a orientação sexual de Lili? Einar vai perdendo o desejo sexual, que retorna com Henrik, sumindo depois. Seria Lili bissexual? Não se sabe. A Lili real, por exemplo, poderia engravidar, e isso é sugerido de forma efêmera no longa. Exceto pelos médicos - que, em geral, tratavam transexuais como insanos e esquizofrênicos - e por uma cena que não chega a impressionar, são poucos os conflitos externos. Teria agregado muito um embate entre Henrik (homossexual cisgênero pouco aproveitado) e Lili. Mas não, a ousadia não chegou a tanto. Melhor apostar no design de produção e nas atuações formidáveis. Razão pela qual é um filme de atuações memoráveis e grandiosas, apenas. É pouco para uma história de um pioneirismo tão ilustre. Entretanto, representa muito em uma indústria que costuma ser conservadora. Saldo? Copo meio cheio.

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