sábado, 6 de fevereiro de 2016

O Regresso -- Longa inegavelmente maravilhoso

O objetivo de um filme, em perspectiva diacrônica, é entrar para a história da sétima arte. O plano B é ser considerado memorável. "O Regresso" talvez não consiga entrar pela história por seu conjunto, muito embora não haja exagero em afirmar que o filme é maravilhoso. Um ou outro elemento questionável, mas, no geral, maravilhoso. O problema é que será lembrado como o longa que rendeu o Oscar de Melhor Ator ao Leonardo DiCaprio (ou como o que deveria ter dado em razão da sua atuação de altíssimo nível), e não pelo filme maravilhoso que é. Vai ser "aquele filme com o DiCaprio que lhe garantiu o primeiro Oscar".

Importante destacar que "The Revenant" é muito mais que o filme do Leonardo DiCaprio. Inspirado numa história real e baseado no livro de Michael Punke, o roteiro elaborado a quatro mãos (Mark L. Smith e Alejandro González Iñárritu, este também diretor) narra a história de um homem, Hugh Glass (DiCaprio), que passa por incontáveis adversidades para concretizar uma vingança. Como se percebe, o roteiro é simples e superficial, o que não apaga a qualidade artística extraordinária da película. Como história, não há profundidade, não há crítica social. Glass sofre, vê seu filho ser assassinado e sofre (sim, mais) em busca da vingança contra o assassino. O plot é, apenas e tão somente, a busca pela vingança. Não há nenhum diferencial na trama, nada novo, nada encantador. Despido de criatividade e invenções, o roteiro poderia passar por uma autópsia que pouco seria detectado além disso. Alguns discursos sobre vingança, alguns ensinamentos dos índios arikaras, algumas elipses (no caso, não agregam muito), alguns flashbacks e alucinações com a falecida esposa de Glass - absurdamente desnecessárias, descartáveis e de difícil compreensão dentro do contexto -, nada muito denso.

Isso porque toda a criatividade foi para tudo que não era roteiro. Se o plot não encanta, a experiência de assistir à película é cinematograficamente sensacional em razão de aspectos externos à história. Afinal, vingança já é um tema clichê, havendo outros casos bem mais instigantes - como "Kill Bill". Mas "O Regresso" se torna único pelo que olhos enxergam e ouvidos ouvem, por tudo que sensorialmente se capta, não pelo que intelectualmente se poderia refletir. Isto é, agrada muito mais aos sentidos que à razão. Sendo essa a proposta e sendo o filme fiel a ela, não pode ser descredenciado por esse fator. A trama poderia ser melhor, mas o objetivo não é almejado. E não há filme perfeito. A proposta é uma história concisa retratada lindamente, e o objetivo é cumprido. Cinema é arte, e a arte transborda a razão, muitas vezes repousando exclusivamente nos sentidos. Nem toda arte precisa ter crítica social. Nem toda arte precisa ser profunda. Mas toda arte precisa ser sentida.

Com base nessa premissa "arte sentida na veia", o cineasta idealizador do longa Alejandro González Iñárritu, atuando como diretor e roteirista, apresenta uma obra absurdamente visceral. Iñárritu, atual oscarizado como melhor diretor, é, sem dúvida, um dos melhores cineastas em atividade. A grandiosidade do seu talento é imensurável, e, assim como já tinha feito com "Birdman (ou a Inesperada Virtude da Ignorância)", utilizou novamente sua habilidade para tirar o melhor de cada plano, com ângulos inesperados e movimentações inteligentes. Usa e abusa do travelling (e das panorâmicas, em menor medida) e, com sua câmera inquieta, fez várias filmagens em plano-sequência (como na caça a um alce e no ataque indígena), repetindo as subidas e descidas (filma o céu e o chão) do longa anterior (entre dois planos-sequência), além de levar a câmera em todos os lugares que se façam necessários, havendo então, por exemplo, várias filmagens dentro da água (ocorrendo imersão). Nesse sentido, a filmagem é tão boa que facilita a imersão do espectador naquela diegese. Ademais, já no prólogo há um close no protagonista, havendo no resto do filme a prevalência de primeiros e primeiríssimos planos, além de planos gerais e abertos, no melhor estilo "tudo-ou-nada". Destacam-se também eventuais quebras da quarta parede, que ocorrem de maneira pouco usual: as personagens encaram a câmera, mas não falam com o espectador, ao revés, a telona fica embaçada (quando a personagem respira de forma ofegante) e há respingos na tela (água e sangue), de tão próxima que a câmera fica - a lente é uma barreira física, mas há a quebra da quarta parede. Isso sem contar a cena chocante em que Glass é brutalmente atacado por uma ursa (que apenas defende seus filhotes), provavelmente a melhor desta película (e também em plano-sequência). É tão magnífica que vale pelo filme todo, poucos diretores a fariam tão bem. É inegável: Iñárritu é um gênio na direção - e nem tanto no roteiro. Há uma queda de produção na última meia hora, soa como cansaço. Nada que chegue a prejudicar. Aproveitando o ensejo, cabe o alerta de que o filme é bastante violento e sangrento, possivelmente sofrendo a influência tarantinesca. O que é ótimo.

Em 2014, Emmanuel Lubezki ganhou o Oscar de melhor fotografia em razão da parceria com Alfonso Cuarón em "Gravidade". Em 2015, ganhou com "Birdman" na parceria com Iñárritu. Concorre novamente com o mexicano por "O Regresso", e tem chances enormes de ficar com a estatueta pela terceira vez seguida. Mais uma verdade inegável: sua fotografia é encantadoramente fascinante! Favorecida pela filmagem genial de Iñarritú, é possível visualizar desde montanhas congeladas até um corvo em primeiro plano - além de cachoeiras e diversos outros animais. O diretor propôs o grande desafio de trabalhar apenas com luz natural - o que fez com que precisassem de um meteorologista na equipe -, e as lindíssimas e reais paisagens (gélidas, mas belas) encantam qualquer um, amante ou não da natureza. Não seria desmedido afirmar que a natureza exerce papel de personagem em "O Regresso", não apenas por ser uma adversidade com a qual Glass precisa lidar, mas também pela demonstração da sua exuberância no aspecto visual. É também uma interpretação possível aquela segundo a qual o filme é uma homenagem ao meio ambiente - o diálogo entre um índio e um francês reforçam este ponto de vista -, embora o foco realmente seja a vingança como motor da sobrevivência do protagonista. Ainda no aspecto visual, o figurino discreto deixa espaço para um fantástico trabalho de maquiagem em penteado, em especial com o protagonista e com o antagonista. Em suma, tudo que está na tela é bastante aprazível aos olhos.

Mas não apenas, pois "O Regresso" é também bastante aprazível aos ouvidos. A edição de som precisava de efeitos oriundos da natureza (reais), o que não é um trabalho tão complexo. Ao revés, a ótima mixagem de som foi trabalhosa, pois teve de unir a música predominantemente instrumental com efeitos sonoros dos mais diversos - além das poucas falas, é claro. Ela é inclusive muito detalhista, pois se percebe, além da água corrente dos rios (por cima e embaixo do rio, nos momentos de mergulho) e cachoeiras, da chuva e dos trovões, os sons dos animais vistos e não vistos - isso faz parte da imersão na diegese, pois vai além do óbvio. Fazer o óbvio é inserir o som de búfalos correndo e colocá-los na tela; ir além do óbvio é colocar a imagem de uma personagem na floresta silenciosa, ouvindo-se o som de animais que sequer aparecem (aves, em especial). É tão detalhista que até mesmo sons de pisada (quando Glass está sozinho na floresta "silenciosa") e de fogueira são perceptíveis. Outra verdade incontestável: olhos e ouvidos ficam fascinados com o filme.

Colabora com esse fascínio o excelente trabalho do elenco. Começa com os coadjuvantes menores (por terem menos aparições ou menor relevância na narrativa), como os indígenas e os franceses - entre eles há uma cena descartável de estupro -, perpassa os coadjuvantes de maior importância e termina com o protagonista. O jovem Will Poulter faz uma atuação mais robusta que nos trabalhos pretéritos, mas é Domhnall Gleeson o principal nome dos coadjuvantes (excluindo o antagonista). Seu capitão Andrew Henry surpreende não pela interpretação competente do ator, pois isso já é costume (ele é muito promissor!), mas pela inesperada virtude da profundidade da sua personalidade. No início, precisa decidir sobre qual caminho a equipe tomará (se ficam no barco, se levam as peles), estando no topo da hierarquia do grupo, mas é quando retorna, já ao final, que cresce, motivado pela raiva - sentimentos negativos motivam mais nesta película. Ainda melhor está Tom Hardy ao viver o antagonista John Fitzgerald, com interpretação de altíssima qualidade, que lhe garantiu a indicação ao Oscar (de melhor ator coadjuvante). Hardy teve a sorte de trabalhar nos dois melhores filmes da atual safra, sendo o protagonista em um ("Mad Max: Estrada da Fúria"), e o antagonista em outro (objeto da presente crítica). Percebe-se o seu enorme talento ao atentar que Fitzgerald e Max têm em comum apenas seus olhos verdes (há uma cena em que ele aparece em close próximo a uma fogueira, destacando-se a sua pupila dilatada), pois, de resto, o ator construiu duas personalidades muito distintas. Isso é fruto de dedicação e talento, evidenciada também com o sotaque elaborado para o papel - é difícil para um britânico fazer o agudo sotaque do velho oeste. Fitzgerald é apresentado, é claro, por um plano-sequência (e depois aparece em um rodopio), mostrando-se sempre inescrupuloso e sagaz: invoca uma divindade nos discursos ególatras e usa o ataque como defesa contra Bridger (Poulter) - para depois elogiá-lo perante o capitão, por ser conveniente para o momento. A personagem é uma das que mostra melhor construção, tanto na narrativa quanto na perspectiva empírica (inclusive com um penteado bem interessante e criativo). Expressar pavor e apreensão em alguns momentos é difícil para a maioria, mas pareceu fácil para Hardy. Que trabalho estupendo!

Contudo, é evidente que o maior destaque é do protagonista Hugh Glass, interpretado por Leonardo DiCaprio em atuação grandiosa, uma das melhores, se não a melhor, da sua carreira (o favoritismo ao Oscar não é à toa). Com poucas falas, o desafio era demonstrar as emoções com linguagem corporal, que vai desde o esforço físico para a locomoção (em razão do corpo debilitado, inclusive sem as pernas) até um olhar expressivo. Hugh Glass fala pouco, mas diz muito. DiCaprio protagoniza não apenas cenas impressionantes como a do ataque da ursa, como outras, mais simples - por exemplo, comendo um peixe cru recém-pescado (com as escamas) e olhando para um horizonte (metáfora do recomeço). Recursos técnicos apenas agregam ao seu trabalho: maquiagem de neve em sua barba, o frio representado na câmera cuja lente fica embaçada de tão próxima, a água que desce pela sua garganta para fora com sangue, e assim por diante. Logo, DiCaprio talvez seja o sol do sistema, mas existem planetas também muito virtuosos que não podem ser olvidados.

O filme é longo e cansativo, mas vale ser visto ao menos uma vez. Não apenas pela curiosidade que qualquer cinéfilo deveria ter em razão de um filme tão "badalado" e com perspectivas tão boas na principal premiação do cinema, mas é uma obra de arte maravilhosa, ainda que não perfeita (até por tal condição ser utópica). Dentro da sua proposta e dos seus objetivos, "O Regresso" tem êxito enorme e os prêmios são apenas símbolos da consagração dos competentes e dedicados profissionais envolvidos. Talvez pudesse ser mais curto, até por perder fôlego com o passar do tempo. Talvez pudesse ter um roteiro melhor. Isso tudo são elucubrações. Fato é que este longa é inegavelmente maravilhoso.

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