segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Deadpool -- Comédia obscena e pueril com incontáveis referências

Se fosse possível resumir "Deadpool" em poucas palavras, seriam as seguintes: comédia obscena e pueril com incontáveis referências. E não é muito mais que isso, na verdade, é só isso, sabe que é só isso e usa tal fator em seu favor. Despretensioso, o longa não finge ser o que não é, ao revés, explora sua superficialidade de modo a fazer dela uma vantagem. E faz, pois isso foge completamente do tradicional - aliás, de tradicional "Deadpool" não tem nada. Talvez não seja a película mais original da história ("Kick Ass" e "Guardiões da Galáxia" que o digam), nem o melhor filme de herói. Porém, não se pode negar que criatividade não faltou.

A Fox conseguiu se redimir após o fracasso do novo "Quarteto Fantástico". Sem maniqueísmo, "Deadpool" é um filme de herói torto - de forma mais precisa, um anti-herói politicamente incorreto -, pois Wade Wilson é um cara mau que enfrenta caras piores que ele (é assim que ele mesmo se descreve). Após descobrir ter pouco tempo de vida em razão de um severo câncer, Wade se submete a um procedimento que estraçalha sua aparência, mas o cura do câncer e o dá fantásticas habilidades de cura, surgindo então Deadpool, segunda identidade de Wilson. É um filme de origem, mas diferente dos demais. Já nos créditos iniciais percebemos que é diferente do que já foi feito, através de expressões como "uma gostosa" e "um filme de babaca", isto é, tirando sarro dos próprios envolvidos, do elenco ao diretor. Há também a indicação da linguagem livre adotada, com palavras de baixo calão, termos chulos e obscenidades sem fim. A música dessa cena é "Angel of the morning", de Juice Newton, sugerindo também que haverá uma agradável e nostálgica trilha sonora - o que se concretiza depois, com, por exemplo, "Hit the road, Jack" (usar Ray Charles foi golpe baixo para conquistar este crítico!) e "Careless whisper" (Wham!).

A cena inicial escancara a personalidade de Deadpool: infantil até ser quase imbecil, franco, agitado e até mesmo bondoso (como ao aconselhar o taxista). Sincero a ponto de afirmar "posso ser super, mas não sou herói", ele vive em um mundo fantástico em que seriedade passa longe - algum outro super usa uma mala da Hello Kitty? Ah, sim: muito sarcástico e irreverente, este é Deadpool. Também ocorre neste momento a quebra da quarta parede, recorrente no filme e usada não apenas para falar com o público, mas, por exemplo, ao mostrar a lente da câmera (onde gruda uma goma de mascar) - semelhante a (quem diria!) "O Regresso". Após o táxi, ocorre a cena de ação divulgada no trailer: apesar do orçamento reduzido, a ação é razoável e quase não apela para o exagero no CGI, usando sim o tradicional (como aceleração intercalada com câmera lenta), mas retratando o "Deadpool way of fight", que chega a tirar a cueca para lutar (em outra cena). Interessante observar que ele não é um exímio lutador, pois, além de apanhar bastante, erra alguns disparos, desperdiçando projéteis. Ademais, não há exagero nos cortes, pois a direção de Tim Miller não se filia às explosões vorazes de Michael Bay.

Logo se vê que o roteiro é frívolo, pueril e voltado a um público muito específico. As piadas são infantis, havendo sagacidade apenas nas sátiras, tudo em tom exageradamente jocoso - mas do começo ao fim, para ser coerente. Maior inteligência o script teve ao permitir a diferenciação entre Wade e Deadpool, este um passo à frente daquele em tudo. A montagem acertou ao estabelecer duas linhas temporais que depois se juntam, o que fica de fácil compreensão porque a história de Wade é bastante simples. A trama inteira é simples e previsível, e não quer ser diferente - despretensiosa, como já dito. Ou seja, a montagem com duas linhas temporais não soa confuso e torna a narrativa mais dinâmica, embora não permita seu crescimento - assim, não chega a haver clímax em momento algum, por exemplo.

Quanto ao elenco, primeiramente, no que se refere aos coadjuvantes, pode-se dizer que os coadjuvantes acessórios são melhores que os coadjuvantes principais, em todos os sentidos. As duas subtramas efêmeras - do indiano e da idosa - são ótimas, enriquecendo muito o roteiro (aliás, Blind Al é quiçá o zênite do filme, protagonizando com Deadpool cenas hilárias); porém, os vilões são fajutos, o braço-direito é apagado (ainda que majoritariamente engraçado) e Vanessa não empolga. Os vilões são o que há de pior em "Deadpool" (Ed Skrein como o sonolento Ajax e Gina Carano como a monótona Angel) vez que, além de unidimensionais, estão presentes, única e exclusivamente, para dar um objetivo ao protagonista - caso contrário, não haveria filme. Vanessa (Morena Baccarin) tem personalidade forte e a atriz se esforça para um bom desempenho, mas acaba sumindo até praticamente desaparecer - o caminho da personagem é claramente descendente na narrativa. Weasel, braço-direito de Wade, é vivido por T.J. Miller em atuação mecânica, trabalho que qualquer um poderia fazer. O papel de Weasel é engraçado pelo roteiro, não graças a Miller. Colossus (Andre Tricoteux no corpo, com CGI, e outro profissional exclusivo para a voz) e Megasonic (Brianna Hildebrand) são arquétipos bastante claros: ele, o herói padrão, politicamente correto e com discurso valoroso norteado por princípios já muito conhecidos, de outros heróis; ela, a adolescente rebelde indiferente em relação ao que ocorre em seu redor. Ainda em termos de atuação, é claro que Ryan Reynolds é o grande destaque, pois o ator se diverte na personagem tanto quanto a personagem diverte o público. Reynolds é um fã que teve o privilégio de dar vida ao papel, apostando suas fichas na obra (é também produtor) e se doando completamente. Foi um dos seus maiores acertos na carreira.


Mesmo com seus poréns, o roteiro é coerente. Wade afirma que "aparência é tudo", dentre outras falas que comprovam quão superficial ele é. Melhor dizendo, politicamente incorreto. Outro acerto do plot foi inserir as incontáveis referências, a maioria delas do universo nerd, que divertem demais o espectador, tais como: Hugh Jackman, Wolverine e seus filmes, "O Senhor dos Anéis", "Star Wars", "Matrix", Liam Neeson e "Busca Implacável", "127 Horas", "Lanterna Verde" (Wade tira sarro de Reynolds), "Alien", "Curtindo a Vida Adoidado" e muito mais. É por isso que "Deadpool" não tem como não agradar seu público-alvo. Agrada e muito! A língua afiada de Wade Wilson, o mercenário tagarela, não poupa ninguém, ainda que seus ataques sejam brandos, sem soarem ofensivos (ainda bem). Que tal ofender os preconceitos? Ofender a egolatria humana? O abismo social? Nesse ínterim, as piadas não são ofensivas não apenas porque se declaram como piada mas também porque nada é levado a sério - é por isso que tirar sarro de si mesmo ("bad Deadpool") é algo recorrente. São piadas apelativas, relacionadas a sexo, nada de mais. Não obstante, em razão das várias cenas chocantes (muito sangue e muita violência) e de teor erótico (masturbação, nudez, sexo etc.), a censura foi suave com 16 anos, pois o filme merecia censura 18 - acredite, tem várias cenas impróprias para um público adolescente, ainda que seja fato notório que o acesso à internet permite contato com algo muito pior. Não se trata de falso moralismo, e sim de reconhecer que um filme repleto de palavrões, violência, nudez e sexo não é adequado para adolescentes. Até porque algumas referências sequer seriam compreensíveis para pessoas tão jovens.

"Deadpool" está sendo um sucesso de público porque é divertido, criativo e razoavelmente original. As obscenidades extremas não são ruins, se inserem dentro do seu contexto próprio, tornando-se premissa do filme - e da própria personagem. As referências agregam bastante ao roteiro. A puerícia do longa é o que o prejudica, pois, ainda que despretensioso, poderia cumprir uma função maior, até por albergar um público grande. Ryan Reynolds sugeriu um relacionamento homoafetivo para o inevitável segundo filme. Isso seria ótimo para quebrar paradigmas, até porque, segundo os criadores da personagem, ele é pansexual (e isso aparece nos quadrinhos, ou seja, manteria a fidelidade). Seria uma alternativa para enriquecer e quebrar paradigmas, o que não acontece neste primeiro filme. Para os adultos, mesmo quando é ácido, ele não choca - a não ser, é claro, o público conservador, que provavelmente só vai ao cinema para ver lixos como "Os Dez Mandamentos". De toda sorte, "Deadpool" iria além se seguisse a sugestão de Reynolds, mas este não é o único caminho possível. São várias as alternativas: enfrentar um vilão por motivos não exclusivamente egoísticos, críticas sociais, expor a hipocrisia do ser humano etc. Fato é que, apesar da abordagem heterodoxa, as temáticas inseridas são quadradas. Ser politicamente incorreto per si é fácil. Difícil é dizer algo com isso. O que foi feito foi divertido, mas é falar por falar. Para a continuação, que ele fale para dizer alguma mensagem. É este o caminho para superar o primeiro.

P.S.: me informaram que T.J. Miller criou as piadas, não repetindo um script. Não faz diferença: ele pode ter o mérito de boas ideias para piadas através de improvisações, mas não muda o fato de que sua atuação é fraca. Ele poderia sugerir as piadas para outro ator, não faria diferença.
P.S.(2): me esqueci de mencionar um suave erro quanto ao ritmo do longa. Deadpool já começa como Deadpool, o momento Wade antes de ser Deadpool é muito rápido, de modo que a transição não fica tão perceptível. Isto é, teria sido melhor mostrar mais de Wade Wilson antes de se tornar Deadpool, porque permitiria ao espectador conhecer melhor a personagem e, principalmente, seu histórico. O Wade que aparece é pré-Deadpool.

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