segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

O Sacrifício do Cervo Sagrado -- Menos provocativa

Faltam cineastas como Yórgos Lánthimos na indústria cinematográfica. Poucos têm a sua sagacidade e a sua audácia para tratar de temas complexos e que a sociedade, em geral, não quer enfrentar. O SACRIFÍCIO DO CERVO SAGRADO tem a marca do aclamado diretor grego, mas, no roteiro, Lánthimos deixou a desejar.

No longa, Steven é um cardiologista conceituado, casado com a oftalmologista Anna, com quem tem dois filhos, Kim e Bob. Há algum tempo, Steven mantém contato com Martin, um adolescente cujo pai morreu em uma cirurgia conduzida por ele. Os dois desenvolvem uma relação quase paternal, aumentando gradualmente a proximidade. Porém, algo estranho parece estar prestes a acontecer, o que faz com que Steven tente afastar Martin do convívio da sua família - em um momento, contudo, que pode ser tardio.

É na direção que o longa tem suas maiores virtudes. A mise en scène de Lánthimos é sempre bem pensada e sugestiva: por exemplo, na companhia de Steven, caminhando, o adolescente toma um sorvete, enquanto o médico fuma um cigarro, o que aponta Martin como um adolescente comum, ainda mais próximo da infância que da idade adulta, contudo, na casa de Steven, na companhia de seus filhos (e sem seu "padrinho"), o jovem é quem fuma um cigarro, adotando uma postura muito diferente. Na mesma cena, o texto explicita o seu corpo enquanto um corpo de homem jovem, deixando claro que Martin é bem maduro. Pode parecer que o objetivo é seduzir Kim, filha de Steven - e isso tem fundamento -, mas, na verdade, serve como ponto de virada para afastar a visão angelical de Martin: o garoto é verdadeiramente macabro! A interpretação levemente enigmática de Barry Keoghan, transmitindo uma falsa indiferença, é fundamental para gerar a desconfiança em relação àquele que se confirma como antagonista.

E na verdade é previsível que algo ruim vai acontecer e que Martin não é o bom garoto que parece: só não se sabe o que acontecerá, tampouco as proporções. Com o andar da narrativa, o público fica com a sensação de que algo errado está acontecendo e que alguma tragédia vai acontecer para Steven em razão de Martin, só não sabendo os pormenores. E isso não é erro narrativo, mas uma inteligente criação de atmosfera. Mesmo quando Steven dá um presente para Martin, por exemplo, algo parece errado. A filmagem em planos gerais e abertos nos momentos iniciais induz que eles não estão tão próximos quanto pode parecer. Entretanto, é certamente a trilha sonora que dita o tom da película: ela nunca é agradável, mas combina perfeitamente com o filme e seu ritmo. Quando acontece o principal plot point, nesse sentido, ela fica bizarra e incômoda, assim como a própria narrativa. Na mencionada cena do presente, a música passa uma sensação de suspense e tensão, não de alegria.

Nicole Kidman e Colin Farrell vivem, respectivamente, Anna e Steven, um casal cuja paixão vai esfriando, embora inicie com conteúdo muito mais carnal que afetivo. Lánthimos deve ter orientado o elenco a interpretar seus papéis de maneira fria, pois, à exceção da dupla que interpreta (muito bem, diga-se de passagem) os filhos do casal, todos atuam dessa forma. Kidman mantém Anna como uma mulher passiva, prova disso é que demora para agir em relação aos fatos que agitam a trama. Porém, quando ela age, a personagem ganha um objetivo, aparecendo mais e sua personalidade ganha contornos mais completos. O equívoco é que, enquanto mãe, ela parece fria demais na primeira metade do longa. Farrel repete a parceria com Lánthimos, que deu certo em "O Lagosta" (que é muito superior, tendo em comum, além do protagonista, o realismo fantástico ao fundo), desta vez com uma falta de entusiasmo em relação a tudo, raras vezes apresentando emoções mais fortes - como ao se irritar quando o filho se recusa a se alimentar. O diretor expõe essa ideia ao filmar planos longos em que Steven caminha nos corredores do hospital, acompanhando-o de costas com a câmera, por cima (no alto) e com certa distância, reafirmando justamente o distanciamento da personagem. Contudo, quando o ator é filmado em primeiro plano, com semblante sério, é visível que está refletindo - ou seja, ele não fica despido de emoções.

<< SPOILER ALERT!! Justica versus vingança, de novo? Esse assunto já foi retratado inúmeras vezes na sétima arte e é decepcionante que um cineasta criativo como Lánthimos recorra a um clichê como esse (ainda que em seus moldes heterodoxos). Não se trata de avaliar outros aspectos, mas exclusivamente o script, chegando a uma conclusão inevitável: o roteiro não é nada original. No cerne da trama, a película se apropria do plot de "A Escolha de Sofia", numa versão contemporânea, ao invés de histórica. Ou seja, no fundo, é uma cópia do clássico protagonizado por Meryl Streep, com viés mais sombrio e (bem) menos realista. FIM DO SPOILER >>

Com simbolismos bem pensados no visual, o diretor grego entrega uma produção que não pode ser qualificada como ruim. Na cena final (e isso não é spoiler), o plano-detalhe da batata frita, alimento do qual Martin gosta muito, recebendo ketchup em cima (alusão a sangue, violência etc. no cinema), tem-se um exemplo do apuro metafórico do longa. Trata-se de uma obra tensa, intensa, desconfortável e que chega a dar raiva. É perturbadora, mas um pouco vazia ao final, inclusive menos provocativa e menos ácida que outras da filmografia de Lánthimos. Não é o ponto alto de sua carreira.

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