sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Três Anúncios Para um Crime -- Oscar bait de qualidade

"Oscar bait" é a expressão utilizada para designar filmes idealizados para conseguir indicações no Oscar e, preferivelmente, vencer nas categorias indicadas, pois quem trabalha na indústria já sabe as características mais atrativas para a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood (lembrando que bait significa isca, em inglês). Um filme Oscar bait, em síntese, é um filme pensado para se dar bem na premiação mais badalada na indústria cinematográfica. O grande exemplo da temporada é TRÊS ANÚNCIOS PARA UM CRIME, indicado em sete categorias - Melhor Filme, Melhor Atriz (Frances McDormand), Melhor Ator Coadjuvante (Woody Harrelson e Sam Rockwell), Melhor Roteiro Original, Melhor Montagem e Melhor Trilha Sonora Original. E o filme é tudo isso?

Antes de falar do filme em si, prosseguindo nessa ótica de Oscar bait, há que se mencionar que o fato de o longa ser Oscar bait não é ontologicamente ruim, mas axiologicamente questionável. Em outras palavras, embora, em princípio, fazer um filme pensando em ganhar os principais prêmios da área não seja negativo em si mesmo - afinal, em tese, a Academia premia os filmes de qualidade, então, ao agradar a Academia, a produção deve ter qualidade (embora a teoria nem sempre corresponda à prática) -, não é exatamente elogiável, do ponto de vista artístico, produzir uma obra pensando em premiações. Em que pese não se poder afirmar peremptoriamente um escopo da arte, certamente receber prêmios não o é - isso pode ser consequência, não objetivo. É por isso que uma história sobre uma mulher valente e sofrida, que enfrenta o mundo sozinha, se preciso for, para fazer justiça após a morte da sua filha, é um truque barato para conseguir a reverência da Academia. Artisticamente, não é louvável ir pelo caminho que todos sabem que vai dar certo, sem inovações, sem subversões, sem se filiar a um gênero, sem polêmicas, sem riscos. Com um elenco afinadíssimo e um diretor minimamente competente, era óbvio que esse filme seria do agrado dos votantes do Oscar. E é por isso que se torna favorito na categoria de Melhor Filme, em especial no momento de empoderamento feminino - e nem é preciso dizer que as questões político-ideológicas preponderam sobre a qualidade em si na competição. O filme é bom, mas não é extraordinário, principalmente por não sair da zona de conforto da grande maioria, mesmo que seja um drama pesado (justamente o que a Academia adora!).

Pois bem. Passadas essas premissas, o longa é protagonizado por Mildred Hayes, uma mulher que, indignada com a negligência policial em relação ao homicídio hediondo de sua filha, aluga três outdoors em uma estrada pouco utilizada, para chamar a atenção sobre o caso. Nos outdoors, ela relata detalhes do caso e expõe o delegado Willoughby, enquanto responsável pela ineficaz investigação policial. O filme então prossegue narrando as repercussões da publicidade na cidade e, em especial, para Mildred, para o delegado e para Jason, policial  de conduta nada elogiável apadrinhado pelo delegado.

Cabe frisar: o filme é muito bom, com um argumento instigante e um plot que revela suas camadas aos poucos. Trata-se de um drama pesado, pois nada teria acontecido se não houvesse uma morte. Porém, existe a preocupação em colocar um alívio cômico, certamente um dos pontos altos da película, monopolizado por uma personagem: Jason Dixon, vivido brilhantemente por Sam Rockwell, tem uma personalidade bastante peculiar, com um humor curioso. É um papel difícil, pois a comicidade precisa ser verossímil mesmo nos momentos tensos, como quando Jason se expõe, revelando-se um verdadeiro poço de discriminação. É um pouco paradoxal um policial torturador de negros colocar "Chiquitita", do ABBA, em sua playlist, mas é assim que ele é. Rockwell dá um show de interpretação, sendo genuinamente engraçado, sem ser hilário, e ainda assim convincente. Sua interação com Sandy Martin, que faz a mãe de Jason, é uma atração à parte.

Nesse sentido, a grande força do roteiro indubitavelmente reside em suas personagens, em especial, é claro, na sua protagonista. Mildred Hayes é uma mulher sofrida, ela já tem cicatrizes, contudo, vai revelando ter mais do que se sabia, em um processo que não parece terminar. Implacável, não se deixa comover com discursos fáceis e óbvios (como o do padre em sua casa), tampouco com a vulnerabilidade alheia (no caso do anão James e do próprio Willoughby). Frances McDormand atua com ferocidade quase assustadora, pois Mildred reúne bravura e energia norteadas pela máxima maquiavelina. É uma interpretação que impressiona pela intrepidez, não tem suavidade simplesmente porque não deve ter. Sua música-tema deveria ser "Rock You Like a Hurricane", porque ela é o furacão em pessoa.

Com inteligência, o roteiro não esquece os coadjuvantes secundários - a expressão pode soar tautológica, mas não é: Mildred é a protagonista, Willoughby e Jason são coadjuvantes, mas existem outros coadjuvantes, de menor relevância, mas que têm seu espaço, ainda que o filme seja claramente dela. Além dos já mencionados, Red (Caleb Landry Jones) é uma das personagens interessantes da película: apesar de ser um dos perseguidos por Jason após os outdoors (já que é o dono da agência de publicidade responsável por eles), demonstra não ter medo do policial, da mesma forma que se vê, adiante, em uma situação irônica em relação a ele. Lucas Hedges é outro que faz uma participação pequena, mas não sem importância, fornecendo mais humanidade ao longa como o outro filho de Mildred.

O filme tem uma trilha sonora bem agradável, com viés country (referência aos westerns, o que também é feito na fotografia). Isso faz sentido, pois, figurativamente, a protagonista atuaria na posição de cowgirl solitária e destemida. No belíssimo prólogo, o que se ouve é uma música lírica em voz feminina, aparecendo os outdoors em meio a uma neblina. São outdoors velhos, meio destruídos e desgastados. Em seguida, de dia, com maior visibilidade, chega Mildred, sozinha: ela dá ré para vê-los bem, rói uma unha e reflete. Fica nítido que está tendo um insight, que é precisamente o argumento da película. O diretor Martin McDonagh é competente na escolha, por exemplo, do visual dos outdoors, utilizando cores que representam luto e sangue, bem como da sua apresentação ao espectador - ao invés de mostrá-los de uma só vez, o faz gradualmente, o que acaba fazendo parte da narrativa, revelando o enredo aos poucos. Ainda assim, no que se refere ao seu trabalho por excelência, o diretor conduz bem o elenco e o filme, mas nada que se compare aos outros grandes da temporada, salvo em um esplendoroso plano-sequência vivido por Red e Jason.

Há algo de ruim em "Três Anúncios Para um Crime"? A resposta forçosamente é afirmativa. Apesar da salutar mensagem altruísta de que a solução dos problemas através do ódio não soluciona verdadeiramente nada e de que o ódio se multiplica, essa mensagem acaba sendo incoerente com o desfecho, que, pior ainda, é morno. Ou seja, ou o filme é contraditório, ou sugere que abraçar o ódio através da violência é algo positivo. Na primeira hipótese, há um grave problema de roteiro; na segunda, a mensagem não é das melhores. Pior: não é esse o calcanhar de Aquiles do longa. Existe nele um grave problema narratológico, que talvez tenha sido um erro do roteiro, talvez da montagem, talvez da direção - para determinar com certeza o setor responsável, apenas acompanhando os bastidores e detalhes da obra, como lendo o roteiro. Consiste na subtrama do delegado Willoughby, um arco dramático pessoal que não tem grande utilidade, exceto enquanto engrenagem narrativa (na verdade, só serve para movimentar Jason mais ao final), mas que atrapalha a narrativa principal. Em certo momento, o filme esquece a trama prioritária (de Mildred), enfocando em demasia no subplot do coadjuvante, que tem outro viés, é muito menos interessante, completamente previsível e lento. Isto é, o coadjuvante vira protagonista e a subtrama vira trama única. Quando o longa retorna para a trama principal e volta para a sua real protagonista é que o espectador pode perceber o quão descolada a película ficou de seu próprio núcleo, deixando seu público disperso e desconcentrado. Em síntese, é um problema de desvio de foco, praticamente criando um curta-metragem dentro do longa.

Muito embora exista quem enxergue "Três Anúncios Para o Crime" uma perfeição cinematográfica, talvez o filme não seja bem isso. É um Oscar bait de qualidade, mas que dificilmente entrará para a história da sétima arte.

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