terça-feira, 5 de julho de 2016

Procurando Dory (e o curta-metragem PIPER) -- Animação divertida e agradável, mas inofensiva

Melhor que perguntar se é necessária é averiguar se a continuação é boa. Em geral, acaba sendo inferior ao longa anterior, especialmente quando não é planejada. Um grande hiato temporal também costuma ser prejudicial. No entanto, essas são ilações meramente teóricas que talvez nem tenham aplicabilidade no universo Pixar. É por isso que, apesar de soar simplista, a síntese desta crítica é cabível da seguinte forma: divertido e inofensivo, "Procurando Dory" é uma animação muito agradável.

Antes, porém, de verticalizar no principal, cabe mencionar que a Pixar (Disney-Pixar) exibe o curta-metragem "Piper" como precedente à obra principal, de qualidade ainda superior. "Piper" é pensado como um "aperitivo", mas supera o "prato principal". Dotado do que se poderia rotular como um "realismo fofo", o plot do curta-metragem de animação (pré-candidato ao Oscar, supostamente) é centrado em um pássaro bebê que descobre o mundo e seus desafios, precisando conseguir a sua própria comida para sobreviver, ainda que arrisque sua integridade. Em outras palavras, são animais fazendo o que a natureza lhes impõe, sem nada fantasioso - no máximo, numa visão edulcorada por um CGI de perfeição técnica impressionante. Com efeito, a praia e seus arredores (rochas, areia, água do mar, grama, ondas), além do que aparece no local (os pássaros, os caracóis etc.), são retratados com uma aparência tão real que flerta com o surreal (sabendo que os efeitos são computadorizados). É assim que a Pixar fascina ao recortar um episódio banal da vida de uma espécie de pássaro (um animal qualquer agindo como um animal qualquer) para fazer uma obra-prima de primeiríssima qualidade. Digno de aplausos!

É na mesma esteira de pensamento que se pode analisar o "prato principal". Preliminarmente, passaram-se os anos e a Pixar aprimorou ainda mais uma tecnologia que já era fantástica. Parece esquisita uma demora de mais de uma década para elaborar uma continuação (que, ao revés, se passa um ano depois), ainda mais depois do sucesso estrondoso de "Procurando Nemo". Não obstante, ainda que perca em relação à originalidade do predecessor, "Procurando Dory" não representa um caça-níquel como a imensa maioria das continuações forçadas. Em 2003, Nemo e sua turma encantaram em razão da dificuldade (à época) de se fazer uma animação totalmente digital em ambiente marinho. Se hoje a dificuldade é reduzida, a riqueza de detalhes no mar e nos animais suavemente antropomorfizados é magnífica. O reflexo de Marlin e Nemo no límpido mar estadunidense (numa área menos profunda) é exemplo da atenção que é concedida, justamente, aos detalhes. Quanto à antropomorfização dos animais, trata-se do oposto ao "Piper", enriquecendo a trama enquanto narrativa - porém, reduzindo a sobriedade visual.

Nesse ínterim, o prólogo é com uma fofíssima Dory ainda criança aprendendo com os pais o que acaba sendo essencial para a sua vida, resumida da seguinte forma: "oi, meu nome é Dory e eu sofro de perda de memória recente". Após várias elipses com Dory adolescente e adulta, ela se perde da família, conhece Marlin e o ajuda a encontrar seu filho Nemo, passando a conviver com eles, como uma nova família. Isso até se lembrar dos pais, momento em que decide assumir a difícil empreitada de encontrá-los novamente (difícil, afinal, de início ela não lembra sequer seus nomes). É quando Dory se separa de Marlin e Nemo que o título faz sentido, iniciando então duas linhas narrativas concomitantes (Marlin e Nemo versus Dory), com vários flashbacks (lembranças da infância com os pais) e participações especiais. Especificamente quanto às participações especiais, além de aparecerem "velhos amigos", novas personagens se tornam engrenagens narrativas relevantes, em especial o polvo Hank, personagem nova mais cativante ao constituir um pseudo-anti-herói interesseiro. Nemo continua sendo o aventureiro que cobra do pai postura mais audaciosa; Marlin continua sendo o pai super-protetor e super-cauteloso que foge de qualquer perigo hipotético, mas que acaba enfrentando-o quando necessário (pois Dory é uma amiga que merece tal enfrentamento); e Dory, agora protagonista, continua sendo a peixe cirurgião-paleta que ganhou a simpatia de gerações. Se houver um terceiro filme, porém, Hank aparece como melhor candidato a protagonista. A personalidade ambígua de Hank concede à trama maior fluidez e mesmo verossimilhança. Nemo é pouco significativo, Marlin é uma âncora de tédio e Dory é a vítima de si. Não havia como o polvo não se destacar.

No que se refere à dublagem brasileira, as principais vozes antigas permanecem, exceto a de Nemo - o que não afeta tanto, afinal, ele agora é coadjuvante menor. É bem verdade que a inusitada participação de Marília Gabriela é charmosa (não pelo trabalho em si, mas pelo papel), contudo, Antônio Tabet é gratíssima surpresa cedendo uma voz a Hank - melhor dizer "uma voz", e não "a sua voz", pois, ao contrário de Gabriela, Tabet não interpreta a si mesmo na dublagem.

Como é fácil perceber, "Procurando Dory" é uma animação de um gênero híbrido ao alternar momentos de ação, humor, aventura e mesmo drama. Serve para um público variado ao elaborar uma miscelânea tão plural. Ou seja, trata-se de uma mescla bem elaborada que mexe com as emoções do espectador em razão do trânsito nos gêneros. O viés de ação é o mais empolgante, ainda que cansativo, com direito a uma cena épica (quiçá a melhor do longa) moldada em slow motion e com a voz inconfundível de Louis Armstrong na imortal "What a wonderful world" (embora a versão de Sia para "Unforgettable" chame mais a atenção por surpreender mais). É Dory a responsável pela imensa maioria das piadas, todas pesadamente infantis e ingênuas (e quase todas em razão do seu problema de perda de memória recente). De modo geral, o argumento é do gênero aventura, tudo para justificar mensagens pueris (destaque para a valorização da família e dos amigos), sempre voltadas ao público infantil. A mensagem de valorização do meio ambiente, com ápice no "tanque do pavor", é salutar em tempos hodiernos, não há nada de errado, todavia, ao retrato inofensivo faltou uma acidez que seria mais digna de elogios - vale dizer, o longa torna-se quase insosso neste quesito. No olhar mais rigoroso, ao filme faltou uma pitada intelectual e reflexiva que as boas animações gostam de ter. Não se pode nivelar por baixo, não é?

Entretanto, não se pode afirmar que o filme é completamente raso. Os detalhes biológicos são curiosidades interessantes (como as anêmonas constituindo lares da espécie peixe-palhaço como Nemo e Marlin - ensinamento presente no primeiro filme -, a característica dos polvos de ter três corações etc.), mas eventualmente sem o rigor científico exigível, criando ilusões - as belugas até podem ter um senso de localização apurado, mas não naquele nível, a mesma lógica se aplica aos polvos, que se camuflam, mas não daquela maneira fantasiosa.

As anunciadas polêmicas que quase geraram veto ao filme não se concretizam. Não há nada que aponte para a transexualidade da arraia. Além disso, o possível casal de lésbicas é irrelevante, pois são figurantes que aparecem num piscar de olhos.

Como saldo, o que fica é que "Procurando Dory" é uma animação divertida e agradável, ainda que inofensiva. Perto de "Divertida Mente" ou "Zootopia", tão intelectualmente superiores, trata-se de uma animação menor. Não é ruim, não é uma animação qualquer. Apenas... faltou ambição. A Pixar pode mais, muito mais.

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