quinta-feira, 28 de julho de 2016

Mãe Só Há Uma -- Espectador refém da profundidade esperada

MÃE SÓ HÁ UMA é o novo filme da festejada diretora Anna Muylaert, recentemente convidada para integrar a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood (o que significa que ela vota para decidir os vencedores do Oscar) e que chamou a atenção por "Que Horas Ela Volta?". Inicialmente, não é uma produção Globo Filmes, o que é bom indicativo.

O enredo é a história do menino Pedrinho, com alguma pimenta: baseia-se na história real da década de 1990 em que se descobriu que o garoto era criado por uma família que não era a biológica, pois ele tinha sido roubado ainda na maternidade, sem saber, até que a família biológica o encontra; a pimenta é que o garoto é um adolescente que foge do padrão tradicional de conduta bem visto por uma sociedade mais conservadora. Neste olhar conservador, Pierre é um rebelde: aos 17 anos, fuma maconha e tem uma sexualidade bastante aflorada (talvez até demais, chegando ao nível de colocar uma das mãos nas coxas de uma colega - e subir). Ele tem relação sexual com uma garota, que aparentemente não se importa com o fato de ele usar calcinha. Nos momentos íntimos no banheiro, Pierre usa batom e calcinha (e tira fotos), se depila... talvez pudesse ser rotulado como crossdresser, mas não homossexual, embora beije um garoto. É justamente isso: ele não se encaixa em rótulo algum, Pierre é único, como cada pessoa deveria ser encarada. Rótulos são reducionistas, cada ser humano é especial e único da sua própria maneira. Qual a orientação sexual de Pierre? Tanto faz, é o que ele quiser! A proposta da abordagem é apontar para o equívoco social de enquadrar as pessoas em categorias, o que facilita a discriminação. Se Pierre quiser usar vestidos, qual o problema? Ideologicamente, é isso que o filme quer dizer - o que a diretora, inclusive, reconhece, pois quer fazer da sua arte uma ferramenta de evolução social.

O problema é que o longa tem pouco tempo e muitas tramas, tornando-se confuso e inofensivo, além de desconcentrar o próprio espectador. Vida de Pierre, vida de Joca (irmão biológico), atrito familiar, nova vida da irmã (de criação) de Pierre... parece que o roteiro é uma sopa em que foram misturados ingredientes dos mais diversos, tantos que fica imperceptível decifrar cada um deles. E isso acaba impactando na reverberação individual, isto é, torna-se mais difícil refletir quando o filme é curto e muitas são as temáticas abordadas. Dito de outra forma, falta um norte temático ao plot, um mote narrativo, embora as engrenagens estejam todas lá. O filme não é parado, há uma sucessão de eventos, existe começo, meio e um fim (que é, inclusive, bastante delicado). A construção da narrativa é com base em dicotomias, como a família antes da descoberta e a família depois, a irmã de antes e o irmão de depois, as roupas de antes e as roupas de depois, assim por diante. Algo um pouco restrito, ainda mais em um longa-metragem de apenas (cerca de) oitenta minutos, mas nada grave. Ruim é a quantidade de tramas lançadas como se fossem flechas, tornando-se, em visão macro, quase imperceptíveis. Como se espera a reflexão do espectador se é tudo tão horizontal? A ausência de verticalização foi quase fatal.

Quase, porque existem bons elementos. O primeiro deles é o bom trabalho de câmera, priorizando planos fechados e primeiros planos (eventualmente, planos-detalhes). Pode parecer um paradoxo os planos abertos nas casas em que Pierre viveu (família de criação versus família biológica), mas é proposital: o intuito é enaltecer o abismo econômico entre as duas famílias. O garoto sai de uma casa pequena, carente de reformas e claramente pobre, para habitar um lar repleto de aposentos grandes, com uma empregada doméstica - negra e de uniforme, estereótipo que simboliza lamentável incoerência para quem fez "Que Horas Ela Volta?" -, suítes e todo tipo de luxo com que ele não estava acostumado. O abismo não se restringe à esfera econômica: Pierre pode encontrar afeto nos dois lares, mas são muito distintos. Com a mãe de criação, ele é livre, um adulto solto no mundo e que faz praticamente o que quer. A mãe biológica, diversamente, é controladora e invasiva (força a porta, quer ajudar a arrumar a mala - até encontrar um vestido - etc.), só não chega ao conservadorismo do pai, que não aceita a individualidade do filho. A família biológica queria Felipe, por isso que Pierre não os satisfez. Eles tinham expectativas, talvez algo próximo do irmão Joca - gosta de futebol, usa vestimentas para garotos, faz judô -, encontraram um indivíduo que gosta de experimentar, descobrir e ser o que quer, quando quer. Ao querer decidir as novas roupas de Pierre - e ele reage radicalmente, gerando um efeito cascata -, os pais querem tomar as rédeas, simbolicamente, da sua vida como um todo. Porém, o que ele quer é a liberdade que tinha antes, a vida que tinha antes - também rejeita o nome Felipe.

No lar inicial, o pai é morto, havendo apenas a mãe e a irmã (e depois uma tia, pouco significativa). No novo lar, há um irmão, um pai e uma mãe. A ideia de usar a mesma atriz para fazer dois papéis (mãe de criação e mãe biológica) foi simplesmente genial: além de justificar o nome da obra - que, inclusive, é uma expressão bastante conhecida como senso polular -, faz um jogo metafórico. No visual, é fácil perceber a gigantesca diferença: figurino e penteado absurdamente distintos. Infelizmente, a discussão sobre a maternidade fica na superfície. A atriz é apenas uma, o carinho é o maternal, mas elas não são a mesma pessoa. Quem é a mãe? O roteiro deixa um vácuo a esse respeito.

Também acertado foi o elenco, com uma exceção. Naomi Nero é o responsável por dar vida a Pierre. Nero expõe o corpo, mas sua expressão blasé é aquém do que o protagonista exigiria. Por outro lado, os atores que interpretam seus pais são excelentes. Dani Nefussi interpreta Aracy e Glória: embora o visual colabore, o trabalho da atriz como duas mães diferentes é fenomenal. Aracy transborda tensão na cena do exame de DNA, mas não olvida do carinho que sempre nutriu por Pierre, acariciando-o: mérito da linguagem corporal executada por Nefussi. O olhar de Glória ao, com bastante afeto, analisar o filho após tanto tempo, é de um texto eloquente, apesar das poucas palavras da personagem naquele momento - ou seja, a atriz transmite uma mensagem com os olhos. Matheus Nachtergaele atua como o pai Matheus, deixando claro, novamente, que Nachtergaele é um enorme talento desperdiçado pela Globo. Ele não é um ator exclusivo de comédia, sua versatilidade e qualidade estão em "Mãe Só Há Uma", em que ele faz um papel mais másculo, sério, tradicional e fechado que o costumeiro. A barriga falsa quase passa despercebida. O elenco mirim também é competente, embora o aprofundamento - se é que tal palavra se aplica a este longa - nos seus arcos dramáticos seja prejudicial ao produto final (a não ser que todos os arcos, como dito, fossem verticalizados, ganhando mais tempo).

Figurino, direção de arte e trilha sonora são também bons elementos. A aposta no visual gritante de Pierre dá certo, seu ar de rockeiro é de fácil percepção (prevalência de camisetas ou regatas neutras e lisas, calças escuras e coladas, cabelo comprido, maquiagem nos olhos e unhas pintadas), e totalmente diverso ao que ele adota no terceiro ato. Há demora para a primeira música extradiegética, mas o "free yourself" do rock indie da banda do protagonista passa uma mensagem bastante clara.

Muylaert tem bastante talento, é um fato inegável. A cena da prisão de Aracy na frente dos filhos com uma câmera acompanhando-a, sequência em slow motion e sons diegéticos de xingamentos é primorosa, e a coragem do prólogo cru (festa, bebida, "pegação", sexo e - cereja do bolo - calcinha) é raro no cinema brasileiro. A acidez da abordagem também se faz presente: uma menina, ainda criança, assistindo a uma propaganda de um produto contra a celulite não está lá à toa (aponta para a ditadura do padrão de beleza culturalmente imposto) - sem contar a "rebeldia" do protagonista, evidentemente. Todavia, todo o talento, desta vez, ficou camuflado em meio a um filme que, ao invés de se debruçar sobre matérias complexas e controversas, prefere sugerir temáticas variadas, deixando o espectador refém da profundidade esperada.

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