quarta-feira, 20 de julho de 2016

Caça-Fantasmas -- Obrigatório para quem gosta do estilo

Provavelmente a censura ao trailer de CAÇA-FANTASMAS seja onde resida uma das maiores idiossincrasias dos tempos atuais. A humanidade tem sim evoluído, o desenvolvimento ocorre em progressão geométrica. Contudo, a bobagem da reprovação prévia (antes de assistir) ao reboot, em especial em razão de escolherem mulheres como protagonistas, representa o quão imbecis algumas pessoas conseguem ser - e cruel, pois o racismo sofrido por Leslie Jones em seu twitter é moralmente repugnante. Aliás, qualquer discriminação de conotação negativa é repugnante. Nesse sentido, é pertinente mencionar que o protagonismo feminino é mero reflexo do contemporâneo, pois, hoje, a mulher mais e mais exerce funções em que antes não era admitida (por motivos vários). Todavia, a misoginia ainda existe, por mais lamentável que seja tal constatação. No caso específico deste filme, tanto faz: as quatro atrizes dão conta do recado, e com folga.

Feitas as necessárias observações preliminares, pode-se dizer que CAÇA-FANTASMAS é um filme razoável: possui alguns atributos positivos, mas nada que consiga revolucionar a sétima arte. Houve uma visível preocupação em respeitar o legado do original, o que prejudicou a criatividade na elaboração do roteiro. Ou seja, apesar de se tratar de um reboot, reiniciando a saga - cabe agora torcer para que não haja uma continuação, afinal, o desejável é inovação, não apenas renovação -, a verdade é que o argumento e a estrutura narrativa do longa de 1984 são repetidos em 2016. É mais ou menos o que fizeram com o Episódio VII de Star Wars: uma nova roupagem para as mesmas ideias. É evidente que o mote (caça aos fantasmas) seria inafastável, mas fato é que faltou criatividade para elaborar uma trama que fosse mais charmosa, em especial para o espectador que conhece o clássico. O que parece é que o script confundiu homenagear o original com plagiar o original. Assim, despiciendo afirmar que a construção narrativa é o calcanhar de Aquiles da película.

Importante ressaltar que "construção narrativa" é apenas um dos elementos do roteiro, que com ele (como um todo) não se confunde. Com efeito, a sequência que é dada ao enredo é previsível e um pouco entediante, pois tudo aquilo já foi visto - e, ainda que não fosse, é mais do que esperado, ou mesmo óbvio. No entanto, o roteiro tem dois pontos positivos (apesar deste grande aspecto negativo mencionado). O primeiro deles consiste nas boas piadas: nada genial ou hilário, mas um humor leve e palatável a um público heterogêneo (do tipo "Sessão da Tarde"). Nessa linha de raciocínio, percebe-se que não foi grande a ambição da fita nas minúcias do seu texto. Outro elemento positivo é a boa construção das personagens, que, ainda que unidimensionais isoladamente consideradas, apresentam boas interações. Em outras palavras, apesar de não passarmos a conhecer cada uma delas a fundo, elas são expostas o suficiente para que seja traçado um perfil básico, em especial em razão da atuação em conjunto do grupo.

Nesse sentido, a escolha do elenco principal é impecável. Algumas participações especiais são interessantes (como de Bill Murray e Sigourney Weaver, em tributo ao de 84), outras, nem tanto (a que Andy Garcia foi se submeter!?). Mas Melissa McCarthy, Kristen Wiig, Leslie Jones e Kate McKinnon interpretam excelentes personagens principais. Tudo começa com Erin (Wiig), que vai atrás da "ex-amiga" ("ex" por afastamento natural) Abby (McCarthy) querendo exterminar do mercado o livro que escreveram em conjunto sobre fantasmas, e em razão do qual a promissora carreira de Erin fica ameaçada. Ao procurar Abby, Erin acaba conhecendo Holtzmann (McKinnon), responsável pelas invenções tecnológicas usadas nas pesquisas conduzidas ao lado de Abby, que ainda aposta nos fantasmas. E ocorre o óbvio: uma experiência com um fantasma real une as três para novas pesquisas. Patty (Jones) entra "de gaiato", quase que impondo a própria presença com o argumento de que conhece Nova Iorque mais que as outras e que, apesar de não ser uma cientista de conhecimento invejável como as demais (na verdade, ela trabalhava em um metrô), agrega à equipe em razão justamente do conhecimento sobre a cidade. A equipe fica completa com Kevin (Chris Hemsworth), personagem mais do que fascinante. Abby e Erin são motores da trama, e McCarthy e Wiig dividem bem o posto central, cada qual à sua maneira: a primeira, mais contida que o habitual, mas ainda divertida; a segunda, concedendo seriedade ao papel exceto ao interagir com Kevin, quando ela fica comicamente consternada. McKinnon faz um interessante trabalho de linguagem corporal, com postura despojada e nonsense, mas um pouco aquém das colegas no que se refere à interpretação (exceto, reitera-se, na linguagem corporal) e nas piadas. Leslie Jones é responsável pela personagem mais interessante do quarteto em razão de destoar das outras: diante de um marasmo de discursos pseudocientíficos (afinal, é uma ficção) e paixão pela paranormalidade, Patty representa a pessoa comum, "gente como a gente", que tem medo de fantasmas - aliás, é a única que foge de uma assombração - e que não domina temas como Gaiola de Faraday (dentre outros). Em síntese, Patty enriquece o plot muito mais que as outras, e o humor impresso por Jones dá o colorido necessário para a diversão. De todo modo, o quarteto junto é bastante afinado e consegue entreter de maneira satisfatória - a partir da proposta, evidentemente. Entretanto, por mais paradoxal que seja em um filme de mensagem subliminar ideologicamente feminista, o Kevin de Chris Hemsworth ganha os holofotes no pouco que aparece, tanto pela personagem em si quanto pelo trabalho de Hemsworth. Isso porque Kevin consiste na inversão de um estereótipo preconceituoso e ultrapassado (e que rendeu incontáveis piadas discriminatórias), pelo qual as mulheres loiras são bonitas e burras. Kevin cristaliza a mudança de paradigma por ser homem, bonito, loiro e burro - a crítica é inteligente, as piadas, engraçadíssimas. Algumas piadas até extrapolam o nível plausível da burrice, como a piada das lentes dos óculos, todavia, no geral, ele protagoniza as melhores piadas da película inteira, ao menos em termos de saldo. Mais do que isso, a escolha de um ator como Chris Hemsworth para o papel se revelou acertada porque pode explorar seu visual para a inversão paradigmática. O tradicional seria colocar, por exemplo, Scarlett Johansson (de cabelos loiros) como a secretária burra, mas preferiram um homem loiro (e também bonito) no papel. E a sagacidade vai além ao colocar Kevin como vítima de assédio sexual no trabalho (fato lamentavelmente comum para as secretárias), como cereja do bolo na crítica injetada ali. Enquanto Erin investe em um affair com ele (que nem percebe), o público se diverte, quando, na verdade, o cotidiano real não é daquela maneira e não é divertido.

O brilho de Kevin não apaga a ideologia feminista e a mensagem vanguardista do filme. Do ponto de vista ideológico, ao conceder o protagonismo a um grupo de mulheres, a mensagem simbólica que o longa passa é a de que as mulheres podem fazer tudo que os homens fazem, tão bem quanto ou melhor. A esperança indica que tais afirmações soem com naturalidade no leitor, porém, é cediço que nem todos pensam assim. Afinal, há um deputado brasileiro que defende que existem mulheres merecedoras de estupro e que as mulheres deviam receber salários menores (como se já não recebessem) porque podem engravidar (e com isso, em tese, lesar o empregador). Vale dizer, a igualdade que vem sendo conquistada pela mulher é uma luta constante que ainda sofre a resistência de alguns. Não se trata, pois, de retórica politicamente correta ou de ideologia orientada em um sentido predeterminado. Trata-se de humanização social, de um ponto de vista que privilegia uma sociedade perfeita, utopia que deve ser norte para todos. Relacionando especificamente com CAÇA-FANTASMAS, tirar homens do centro e colocar mulheres no "trabalho" outrora exclusivamente masculino é o símbolo da nova realidade, a que busca um mundo melhor, mais igualitário e menos discriminatório. Não consiste na destruição de um produto da infância, e sim da representação da realidade contemporânea, que não é a mesma de 1984. Um filme de 1984 reflete a realidade do seu tempo, ainda que o enredo seja praticamente o mesmo, um filme de 2016 deve ser atualizado. A mesma lógica se aplica ao secretário Kevin, crítica mais ácida à misoginia que impõe a incontáveis mulheres o sofrimento de violência não apenas física, como também moral e social, por exemplo. A pessoa que afirma sofrer desconforto na (representação da) realidade atual é o indivíduo retrógrado, preso em crenças e valores anacrônicos merecedores de abandono, que não aceita a (r)evolução social e que deveria isolar-se da sociedade caso insista em rejeitar este admirável novo mundo, única solução para tal problema. Sugestão para uma pessoa assim: aceita que dói menos.

Após mais uma breve digressão, retornando ao filme CAÇA-FANTASMAS (que não recebeu o artigo definido "as" em razão de uma provável covardia da distribuidora), Paul Feig faz um ótimo trabalho de direção. Em primeiro lugar, ao dominar o elenco e colaborar o timing cômico das cenas, o que é crucial numa comédia - com um roteiro melhor, este mesmo elenco faria um trabalho sensacional. Além disso, Feig é bastante eficaz nas filmagens das cenas de ação, que, todavia, poderiam estar em maior quantidade - na verdade, prevalecem diálogos e explicações dispensáveis que concedem à película uma morosidade desagradável, resultando em um filme longo e um pouco cansativo para o gênero. Há muita "gordura" que merecia ter sido "cortada", e uma montagem mais econômica teria sido mais eficaz. Ao invés de duas horas de projeção, uma hora e quarenta minutos seriam mais que suficientes. Enfim, é na linguagem 3D aplicada aos ótimos efeitos visuais que Feig esbanja talento: os efeitos visuais são eficazes na diegese (uma cena específica pode até assustar o espectador mais desatento - e é essa a intenção), e o 3D ativo e passivo alterna adequadamente, mas o extraordinário uso suave do fora-de-campo, mais precisamente o letterbox (faixas pretas na parte de cima e na de baixo da tela), é fantástico: ao sair do campo e ignorar a separação com o letterbox, o 3D amplifica a sensação de realidade vez que os elementos da tela extrapolam o campo, como se pudessem realmente sair dos limites da tela.

CAÇA-FANTASMAS não é um filme que deixará uma marca na história do cinema. Entretanto, pode ser nivelado por cima em razão da ótima direção, do excelente 3D, do elenco afinado e de alto nível e das piadas razoáveis. Se a narrativa decepciona, é possível encontrar no filme bons elementos que, a depender do gosto do espectador, poderão justificar o ingresso. Para quem gosta do estilo (e que não tem a mentalidade parada na Idade Média), é um filme obrigatório.

P.S.: o vilão é péssimo. Não chega a estragar o longa, mas prejudica a dinâmica. Também não ofusca o empoderamento feminino, mas reduz o impacto do heroísmo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário