quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Rainha de Katwe -- Ketchup

Sexta-feira, fim de expediente. Diante de tantas opções, nada como um delicioso hambúrguer. Pão de hambúrguer, carne bovina - quiçá duas ou mesmo três fatias -, queijo, molho, bacon, tomate. Para beber, refrigerante. Como acompanhamento, batatas fritas temperadas ao gosto do freguês no ketchup. Um tempero banal, mas que encanta crianças africanas em RAINHA DE KATWE, filme Disney sobre uma enxadrista ugandense, Phiona.

Phiona é uma jovem órfã de pai cuja vida em uma região pobre de Uganda lhe é difícil em vários aspectos: sem acesso à educação, é analfabeta; com moradia precária, dorme praticamente no chão; na escassez de recursos, precisa ajudar a mãe a aumentar a renda familiar para o sustento, o que também limita sua alimentação. Graças a Robert Katende, que faz trabalho voluntário, o mundo de Phiona adquire novas perspectivas dentro do xadrez. Graças ao seu talento, a jovem pode ter uma vida diferente da pobreza que parece inafastável. Sim, mais um filme de protagonista pobre e teoricamente sem futuro que encontra no esporte (no caso de "Rainha de Katwe", o xadrez) um caminho para melhorar a sua vida. Ou seja, um enredo extremamente clichê e conhecido. Não obstante, o colorido Disney alcança um brilho que poucos estúdios conseguem igualar.

Seja pelo roteiro bem elaborado, pela trilha sonora empolgante (as músicas de ritmo africano, além de coerentes com a diegese, alegram qualquer espectador) ou pelo retrato fidedigno da realidade, o filme executa bem a tarefa de entreter. Com isso se conclui que não se trata de uma película no estilo cult, conclusão acertada, o que não significa, por outro lado, frivolidade mainstream.

Mesmo sendo arquetípicas, as personagens encantam de alguma maneira, em especial pelo ótimo trabalho do competente elenco. Phiona é interpretada por uma joia recém descoberta, Madina Nalwanga, que transita com facilidade nas emoções da jovem. É fácil torcer por Phiona e Nalwanga é responsável por ajudar bastante na identificação cinematográfica secundária. Lupita Nyong'o é ganhadora do Oscar, o que a credencia na mesma medida que impõe responsabilidade (de atuar bem). Sua Harriet é uma mulher forte em uma Uganda "onde os fracos não têm vez". Suas filhas são o seu tesouro, o que justifica seu receio em relação ao xadrez e o enfrentamento dos homens que se envolvem com as suas filhas. Nada vale mais que a integridade e a felicidade da sua prole: Harriet é a encarnação do imensurável amor materno. Phiona aprendeu bem as lições da mãe sobre ter uma personalidade inabalável, o que não a permite se deixar magoar quando os colegas reclamam do seu cheiro. Taryn Kyaze não tem o mesmo espaço como filha mais velha, Night, o que é uma lástima, pois seu arco dramático pessoal é o mais denso e complexo. É com Night que o roteiro sugere prostituição e menciona a vulnerabilidade feminina. No primeiro caso, é uma questão de interpretação. No segundo, trata-se da visão machista e ultrapassada de que toda mulher carece de um homem que a proteja e seja o provedor. Com inteligência, o plot ironiza isso em vários momentos, como ao ter uma mulher como protagonista e criada por uma mãe viúva ainda jovem. O girl power é bem delineado e alinhado com a ideologia de empoderamento feminino como subtexto, ou seja, implícito. Harriet precisa cuidar sozinha das filhas, não é uma opção, é uma obrigação que ela abraça sem fugir nem lamentar. Uma coragem e uma independência que Phiona também tem. Na mesma esteira de pensamento, David Oyelowo também atua muito bem como Robert Katende, o coach que ensina Phiona no xadrez é que é um verdadeiro arauto de altruísmo. Seu arco dramático próprio é raso, quase lacunoso, o que não o impede de constituir um coadjuvante coerente.

Tratando-se de uma história real, o desenvolvimento das personalidades das personagens é eficaz e bem arquitetado. Reitera-se: as personagens encantam - e não é apenas em razão das atuações, embora elas sejam ótimas. Contudo, a narrativa é bastante convencional e previsível. Phiona, por exemplo, faz a caminhada padrão de ascensão, queda e retomada, com plot points que são igualmente previsíveis. Provavelmente é esse o grande "calcanhar de Aquiles" do longa.

Não se pode olvidar que Mira Nair é uma diretora de poucas habilidades cinematográficas. Com tomadas mal escolhidas e um plano holandês completamente deslocado, a linguagem do cinema é usada com ampla imperícia. No que Nair acerta, verifica-se apenas o básico: linguagem não-verbal para comunicação entre mãe e filha (na sequência da leitura à noite, que emociona pelo conteúdo, não pela forma), figurino dourado para representar a riqueza imaterial de Phiona e, pela enésima vez na sétima arte, uso da chuva como símbolo de tragédia e desgraça. No entanto, é visível a extrema pobreza dos moradores de Katwe, um local de periferia com muitas pessoas e poucas riquezas materiais, sem tecnologia e com moradores com conhecimento reduzidíssimo da vastidão do mundo em que se encontram. São pessoas para quem um mingau pode ser um manjar, para quem o chão pode ser mais atrativo para dormir que uma cama - afinal, é isso que conhecem. De todo modo, o abismo socioeconômico tem um retrato verossímil e comovente.

A menção do ketchup é apenas um dos vários exemplos pelos quais RAINHA DE KATWE é uma experiência que pouco inova, mas muito emociona. Não é uma fita que entra no rol dos melhores de 2016 do ponto de vista técnico - embora uma indicação de Lupita Nyong'o para o Oscar de atriz coadjuvante não esteja fora de cogitação. É um filme que funciona como o ketchup para a batata frita: não é o principal, mas agrega bastante e, no fundo, faz a diferença.

P.S.: NÃO é preciso conhecer as regras do xadrez para assistir ao filme. Isso talvez permita acompanhar com maior proximidade as batalhas, mas não é essencial.

Nenhum comentário:

Postar um comentário