sábado, 17 de junho de 2017

Neve Negra -- Aquém

O cinema argentino já rendeu pérolas como "O Segredo dos Seus Olhos" e "Relatos Selvagens", ambos com Ricardo Darín. O ator já é sinônimo de qualidade, mesmo já tendo feito filmes de qualidade, no mínimo, questionável, como o vergonhoso "Delirium" - os ruins são minoria quase inexistente em sua carreira, é verdade. NEVE NEGRA está no nível de "Elefante Branco": razoável, mas muito aquém do talento do grandioso ator.

Na trama, Darín interpreta Salvador, um homem cheio de traumas e recluso na Patagônia até a chegada de seu irmão Marcos (Leonardo Sbaraglia) e de sua cunhada Laura (Laia Costa). Com o falecimento de seu pai, Marcos pretende resolver a divisão da herança, já que Salvador mora na propriedade que é deles e também de sua irmã Sabrina (Dolores Fonzi), internada em um hospital. O problema é que Salvador não está disposto a discutir isso e o retorno de Marcos traz à tona a morte acidental de Juan, irmão deles falecido ainda criança.

O roteiro tem uma boa ideia que, contudo, não é plenamente bem conduzida. Parte pela direção pouco envolvente, parte pelo script morno no segundo ato, fato é que os dois primeiros atos não geram fortes emoções no espectador, exceto a expectativa. Fica clara a sensação de que algo será revelado, de que há algo muito maior do que as aparências, de que haverá uma enorme revelação, quiçá um plot twist, mas, até esse momento chegar, a espera é um pouco aflitiva. Por outro lado, o texto induz a certas conclusões, fazendo com que o espectador desconfie que há algo errado, podendo até mesmo tirar alguma conclusão acertada, mas certamente sem desvendar por completo o desfecho. Entretanto, existem alguns plot holes, o principal referente a Sabrina, pois não se explica exatamente o que ela tem e a razão pela qual foi parar onde está.

Martín Hodara já trabalhou bastante com Darín (inclusive em "Nove Rainhas" e em "Aura"), mas como assistente, tendo em "Neve Negra" seu segundo longa como diretor. A prevalência de planos longos corrobora o realismo que prevalece no longa, ficando visível a habilidade do diretor na criação de uma atmosfera: de um lado, o enredo é dramático (irmã afastada por doença, pai recém falecido, trauma do irmão morto ainda criança por acidente e irmão isolado há anos), de outro, o clima de suspense é palpável - trilha sonora minimalista (majoritariamente instrumental, inclusive mixagem de som com poucos efeitos), fotografia bem natural, cenários frios (afinal, é a Patagônia) e figurino explicitando o frio. A música sempre sugere mistério e, de fato, existem segredos naquela família - como diz uma personagem em certo momento, "que família!". A casa onde ficam é um local com pouca iluminação, Hodara filma no primeiro ato em planos fechados e investe em sons de vento "soprando", pena que no segundo ato não consegue manter a atenção - o roteiro, reitera-se, colabora. Interessante ainda a maneira pela qual o diretor usa os flashbacks, fazendo com que um mesmo plano sirva como conectivo entre o presente diegético e o flashback visto pelo espectador (normalmente, por uma panorâmica com a câmera).

Embora o plot crie bem as personagens, é a excelente dupla principal que brilha muito. Ricardo Darín é uma das maiores estrelas contemporâneas do cinema latino-americano, indubitavelmente um dos melhores atores em atividade, quiçá no geral - inclusive, melhor que muitos Matts Damons. A caracterização de Salvador é bem diferente do que o público está acostumado a ver de Darín: rosto bronzeado, barba grisalha e comprida, cabelo comprido e semblante sempre sério. É difícil discorrer muito sobre a personagem ser incorrer em spoilers, bastando afirmar que sua personalidade forte é vivida com ímpeto pelo ator, numa interpretação convincente ao não recair no overacting. Salvador não consegue chamar Sabrina de "nossa irmã" para Marcos, chamando-a de "sua irmã", ele não se considera parte da família; ele não é capaz de parabenizar Marcos pela gravidez da esposa mesmo quando este claramente espera algo do tipo; claramente é uma pessoa com cicatrizes profundas de um passado triste que o tornou amargurado. Diferente de Marcos, interpretado também de maneira eficiente por Leonardo Sbaraglia, de perfil menos misterioso e mais comum. Laia Costa atua como Laura, esposa de Marcos, encarnação viva da curiosidade humana, aproveitando-se da solidão para vasculhar os segredos alheios - o que acaba sendo fundamental na trama.

Assim, o filme acaba valendo pelo desfecho e pela atuação do sempre imperdível Darin, ainda que distante do seu potencial (graças, reitere-se, ao roteiro). Não é o melhor exemplar do cinema argentino, nem ficará na memória do espectador por muito tempo.

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