quarta-feira, 16 de agosto de 2017

O Estranho que Nós Amamos -- Paradigma pluralista

O prólogo soturno com o cabo, a menina e os cogumelos sugere O ESTRANHO QUE NÓS AMAMOS como um suspense ou um drama obscuro. Mas não: o filme é um drama leve e sugestivamente sexual nos dois primeiros atos, abraçando uma atmosfera de tensão no terceiro.

O longa se passa durante a guerra civil estadunidense, no século XIX. Um soldado se fere em território inimigo, encontrando abrigo em um orfanato só para mulheres, onde se recupera. Durante a recuperação, porém, o soldado chama a atenção das moças, inclusive em demasia. É fácil perceber que a trama é bem suave, ao menos até o plot twist, que muda muito o encaminhamento do filme. Tamanha suavidade torna o roteiro insosso - quando não forçoso (as cirurgias pelas quais o soldado passa na casa são difíceis de acreditar, ao menos naquelas condições, sem um profissional habilitado) -, de modo que outros aspectos chamam a atenção.

Um deles é a direção de arte, que encontra seu auge no figurino, prevalecendo nas moças roupas claras e sempre sem decote, preferencialmente fechadas até o pescoço - aliás, mostrar os ombros era excepcionalíssimo. Graças ao belo cenário, a diretora Sofia Coppola apresenta planos de contemplação da natureza: plano-detalhe de teia de aranha, árvore etc. Para acompanhar, também sons diegéticos, como pássaros e vento. Tudo isso para colocar o espectador na casa, junto com as mulheres e o soldado. É, em síntese, o êxito na imersão, tarefa nada fácil para qualquer diretora (ou diretor). Vale dizer, a direção é ótima.

Outra característica bem visível é a sexualidade pulsante, algo que Coppola fez questão de sugerir sem deixar implícito demais, tomando cuidado para não tornar vulgar. Quando uma das moças dá banho no soldado, ele está dormindo, deitado na cama, com uma toalha na região da genitália, enquanto ela passa uma toalha molhada pelo seu corpo. O importante é perceber que ela tem sensações ao banhar o soldado, como se estivesse acariciando sua barriga e suas coxas, prestes a avançar para outras partes. É a sua vontade, é a sua curiosidade, mas seu lado racional intervém e chega a castração freudiana, na forma de água gelada no rosto. Não é à toa que vários objetos fálicos estão presentes na tela: das velas às colunas da casa.

Também não é à toa o tratamento impessoal até aqui. No geral, as personagens não têm um desenvolvimento muito bom no script. Nicole Kidman, muito bem como sempre, interpreta Miss Martha, a "diretora" (não formalmente, mas sim na prática) da instituição, parecendo uma personagem arquetípica, revelando, porém, ser multifacetada. Aparentemente, ela é fria e insensível, todavia, vai se revelando, além de sensível e fraterna, muito inteligente - por exemplo, ao pedir munição. Miss Martha tem noção que parece seca, contudo, diz que precisa ser assim para ensinar as meninas mais novas, pela dureza da realidade "lá fora". É a sua maneira de ser fraterna.

As outras personagens não são tão interessantes. Kirsten Dunst dificilmente atua bem (um trabalho como "Melancolia" é raro), aqui, sua Miss Edwina (a segunda no comando) não ajuda: o papel tem um arco dramático subdesenvolvido, pois apenas sugerido, uma personalidade frágil e um desfecho patético. Miss Alicia é bem interpretada por Elle Fanning, não é culpa da atriz que a personagem é exclusivamente a "jovem sedutora" (leia-se, unidimensional). Quanto a Colin Farrell... ele não foi a melhor escolha para Mr. John McBurney. É um bom ator, que não convenceu nas virtudes da personagem.

Os pronomes de tratamento foram propositais: o filme é fiel aos modos da época, notadamente a forte religiosidade, a formalidade no trato e o machismo. A religião católica é enraizada: o soldado só é ajudado porque "é o que um bom cristão faria". A caridade cristã é mencionada diversas vezes e as moças oram/rezam em incontáveis oportunidades, todas juntas. O tratamento interpessoal é sempre bastante formal, através da utilização dos pronomes Mr. e Miss, independentemente da idade do interlocutor. No que se refere ao machismo, há um acerto: Mr. McBurney diz que as moças precisam de um homem para cuidar da casa, do jardim etc. Porém, elas discordam, nunca tiveram e nunca precisaram. O machismo está presente apenas no homem: as mulheres são autossuficientes.

"O Estranho que Nós Amamos" é um remake que enxerga com olhos contemporâneos um conto já há muito conhecido. No primeiro filme, a narrativa parte da perspectiva do soldado; agora, o ponto de vista é das mulheres. A cronologia não mudou, mas o longa recebeu uma roupagem contemporânea. Não é uma obra-prima, mas é um atestado de um paradigma cinematográfico mais pluralista, que dá voz às mulheres. Portanto, um avanço.

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