quarta-feira, 22 de março de 2017

Power Rangers -- Go, go!

Aviso: o texto seguinte pode conter spoilers, que, contudo, foram inseridos por necessidade, de modo a não reverberar na experiência cinematográfica. Se você é o tipo de leitor que foge até mesmo dos trailers, melhor ler após assistir ao filme; se, porém, você não se incomoda com pequenos spoilers, aqueles meramente relativos à sinopse e/ou a pequenos fatos, eventualmente contidos até mesmo nos trailers, leia tranquilamente.
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Por mais surpreendente que possa parecer, POWER RANGERS é um bom filme. Evidentemente, não se pode esperar uma direção de Kubrick ou um roteiro digno de Oscar. O longa tem um viés leve e pueril, mas sério dentro do seu próprio universo, exatamente como deve ser. Não é um filme que deixa o espectador refletindo durante dias, nem poderia ser. Ao revés, é um entretenimento divertido e altamente nostálgico - ao menos para quem acompanhava a febre que esse fenômeno causou há alguns anos. Aliás, praticamente tudo do universo PR está lá, o que amplifica a nostalgia, dando fidelidade.

O filme tem um prólogo sensacional: é a Terra na Era Cenozoica, com Rangers alienígenas lutando contra a vilã Rita Repulsa. Muito CGI, uma maquiagem azul eficiente no alienígena Zordon e comunicação em um idioma alienígena. Para continuar em bom nível, a montagem simula um corte usando um único elemento para a transição entre planos e a elipse. A técnica não é fácil, mas demonstra criatividade. E o argumento não poderia deixar de ser outro: cinco adolescentes escolhidos pelo destino para salvar o planeta como Power Rangers (que nada mais são que super-heróis).

O roteiro tem por tema nuclear o valor de uma amizade verdadeira. Afinal, é a reunião de fracassados - é assim que eles mesmos se consideram - que se unem para, com base na força da sua amizade e no trabalho em equipe, lutar contra o mal. Não é um plot original, é verdade, mas é o plot que fez sucesso na década de 1990. Agora até mais desenvolvido, pois, antes de serem heróis, eles precisam ser verdadeiros para si mesmos e para os outros, além de criar vínculos afetivos genuínos. Isto é, eles só são heróis quando a amizade se torna verdadeira, o que é uma inteligência do roteiro - porque a união do grupo, obviamente, não é fácil. Como dito, a película é produzida com fidelidade e respeito em relação à obra original, o que agrada aos fãs, embora, cinematograficamente, não apresente inovação substancial.

Isso não quer dizer, porém, que é mal feito. Pelo contrário, a direção de Dean Israelite é muito eficiente e por vezes inventiva. Logo no começo, há uma cena de ação em que a câmera fica dentro de um carro, com a ação efetiva acontecendo fora dele, apenas girando em trezentos e sessenta graus, como se o espectador estivesse junto com a personagem. Trata-se de uma imersão bem pensada e que não teria o mesmo efeito se a filmagem fosse em planos gerais. Mais adiante, Israelite faz uma parede de água, que protege um local seco. Na primeira aparição, além de um CGI de boa qualidade, os enquadramentos são inusitados e variados, com angulações dinâmicas. As coreografias de luta não são boas, mas esse nunca foi o forte da série original - cabe lembrar que, ao invés de sangrar, os Rangers soltavam faíscas quando golpeados. Não obstante, existem convincentes lutas dentro da água, o que requer um cuidado especial para parecer crível. O básico o diretor também faz: quando o grupo finalmente fala "é hora de morfar" (o que demora, pois depende do vínculo afetivo sincero, como já dito), aparecem juntos, em slow motion, andando em um piso levemente íngreme com uma empolgante música eletrônica tocando. Algumas bobagens não poderiam ficar de fora: uma personagem corta o próprio cabelo com uma tesoura em frente a um espelho, deixando o penteado melhor que o trabalho de um cabeleireiro - aliás, a mesma tesoura consegue fincar em uma parede de um banheiro!

Da mesma forma, o roteiro tem furos e obviedades: locomoção sem explicação (não, não foi por teletransporte), o truque de enganar alguém simulando uma situação e assim por diante. Também tem piadinhas tolas, como aquela do trailer, que só é engraçada em inglês ("I'm black!"). O próprio plano da vilã, conquistar o universo, é um clichê imensurável, o que significa, em tese, falta de criatividade. Contudo, é oportuno reiterar a novidade que o texto traz: antes de serem heróis, os jovens são amigos. A consequência disso é bastante óbvia, bem como as dificuldades que enfrentam, mas essa união afetiva verdadeira como premissa para tudo dar certo não é tão clara na obra original. E vai além, porque a transição dos poderes (em relação à humanidade obsoleta anterior) é lenta, o que dificulta a jornada dos heróis. O final é previsível, todavia, o itinerário não é fácil como era na série. Eles precisam não apenas merecer a condição de Rangers como aprender a lidar com os poderes (e como usá-los).

Com tantos apontamentos negativos, parece que o script é ruim. Entretanto, o roteiro constrói personagens um pouco mais complexas do que se espera do maniqueísmo do subgênero (filme de super-heróis). A fotografia escura pode facilitar a confusão entre Kimberly e Trini, pois as atrizes são um pouco parecidas, todavia, a personalidade dos cinco é bastante distinta. Jason é o herói valente, mas frustrado, que vê seu sonho ruir em razão de um ato próprio. Ele acaba desenvolvendo um senso de liderança em razão das circunstâncias, crescendo enquanto pessoa. É, sem dúvida, a personagem cuja personalidade é a mais desenvolvida (é o que mais se aproxima da figura de protagonista). Ele assume, inclusive, uma posição de irmão mais velho para Billy, onde começa a surgir a amizade que é vetor principal da trama. Billy é o nerd atrapalhado, mas muito inteligente, dividindo-se entre o alívio cômico e o coração do grupo. Coração, pois existem momentos mais introspectivos, o mais longo é o que brilha Trini, cujo arco dramático é o mais inovador. Infelizmente, Jason e Billy usam espaço demais para que os outros apareçam. Mesmo Kimberly, que também tem arco dramático pessoal, não desenvolve tanto a própria personalidade, mas é importante porque indica que mesmo heróis são imperfeitos - passa a mensagem de que todos são humanos e, como tais, falhos. Por fim, Zack é o mais misterioso sobre si, revelando apenas um fator familiar como peculiaridade.

Na atuação, os cinco são bastante satisfatórios: Dacre Montgomery é o galã sério que Jason (Ranger Vermelho) precisa ser; RJ Cyler não é o negro coadjuvante que só serve para fazer piadas - isso até existe, mas seu Billy (Ranger Azul) é fundamental na fita -; Naomi Scott é uma Kimberly (Ranger Rosa) comedida (talvez a única abaixo do nível ideal); Becky G dá a Trini (Ranger Amarelo) o tom introverso que precisa; e Ludi Lin é a encarnação de um Zack (Ranger Preto) extrovertido, intenso e insano. Bryan Cranston é de difícil análise, pois Zordon é quase que apenas um trabalho de voz - em uma personagem razoavelmente equivocada: arrogante, grosseiro e egoísta, salvo por um único momento. O Zordon clássico é um arauto de sabedoria, este é um ranzinza que só sabe reclamar e cobrar. Já a Rita Repulsa vivida por Elizabeth Banks é a que melhor atua em todo o elenco, pois Banks mostra estar confortável e mesmo empolgada com o papel, passando a verossimilhança que a vilã merece.

Cabe mencionar, ainda, a ótima trilha sonora: coerente e contemporânea, com pops eletrônicos bem atuais, mas também a consagrada "Stand by me", em uma versão belíssima. A música-tema também toca, mas é pouco percebida, exceto para os fãs. Em uma cena, é feito um trocadilho com "Survivor", da extinta Destiny's Child. Não, o filme não pode ser ruim. Aliás, um filme que menciona Transformers de uma maneira discretamente jocosa já merece bastante crédito.

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