domingo, 11 de outubro de 2015

A travessia -- Aplausos ao artista

São inúmeros os filmes que tratam sobre a realização de um sonho. Incontáveis os que criam um clima de tensão. Também vários que unem a tensão ao objetivo do protagonista. "A travessia" é mais um exemplar de qualidade: narra a história real (já retratada no documentário "O equilibrista", vencedor do Oscar) de um equilibrista que atravessou as Torres Gêmeas (WTC) se equilibrando em um cabo.

Considerando tratar-se de uma história real e a opção de o próprio protagonista narrar a sua história, o final é sabido. O que interessa, portanto, é a travessia em si. A primeira parte, mais suave, é uma introdução à história, relatando como o protagonista se uniu aos seus "cúmplices" (termo usado por ele mesmo), além de apresentar o espectador às personagens. Nessa primeira parte, a narração é mais presente e há pouca utilização de cores, para ressaltar a referência ao pretérito. A ideia é aproximar o espectador em especial ao protagonista e ao seu objetivo. O segundo ato, muito mais (in)tenso, retrata toda a preparação para concretizar a façanha. E há, é claro, um grand finale, com a travessia em si - que gera surpresas para quem não conhece detalhadamente a história (como era o meu caso).

Philippe Petit é um protagonista muito carismático, boa parte graças à interpretação do já carismático Joseph Gordon-Levitt. Se o bom humor de Petit é real (se sua natureza realmente é essa) não se sabe, mas a dramaticidade cede espaço para a tensão do desafio, e não à psique do inabalável herói. Petit é uma pessoa determinada, talvez até de uma forma obsessiva, mas não deixa de ser exemplo da máxima "quem acredita sempre alcança". Gordon-Levitt é ótimo e visivelmente dedicado ao papel, embora o sotaque deixe a desejar. Vale dizer, o ator, cuja primeira língua é o inglês estadunidense, vive um francês (cuja primeira língua é o francês) que fala um inglês em nível intermediário e com sotaque. Ele teria de disfarçar sua facilidade com a língua-mãe (inglês) e fingir que domina o francês, além de "afrancesar" a primeira. Para quem conhece ambas, o resultado não é convincente, pois a pronúncia no inglês é muito mais aberta que no francês, e Gordon-Levitt não se desprende dessa característica. É até interessante a insistência na variação do idioma (ora um, ora outro), mas a ressalva é necessária. Evidente e justamente, os holofotes ficam com ele, havendo um único coadjuvante que merece menção: Ben Kingsley. O veterano e versátil ator interpreta Papa Rudy, mentor de Petit. Kingsley, como sempre de forma genial, sutilmente expõe a dubiedade da personagem, que varia entre um equilibrista experiente, brabo e impaciente e um tutor paternalista e preocupado. Não apenas essencial na história, Rudy/Kingsley é uma estrela que faz Petit/Gordon-Levitt brilhar ainda mais. O resto do elenco é minimamente necessário como engrenagem.

Roteiro e montagem são competentes - o primeiro não é original, mas, partindo da premissa da qual parte, não poderia ser; a segunda, inclusive, teve a sabedoria de não cortar o ápice da obra, a travessia em si, gerando a tensão compatível com a proeza. É o momento com ação, e não narração. Sábio também foi o diretor Robert Zemeckis, com um ótimo 3D e um excelente trabalho de câmeras (quase como numa montanha-russa em algumas cenas). Visualmente, o filme impressiona não tanto pela fotografia, que não se destaca, mas pela identificação cinematográfica primária (o que vemos com a câmera), pois a inserção do espectador na diegese (universo do filme) é inegável. A tensão não fica só na tela. Isso sem contar a visualização de algumas metáforas, como a do caixão e a das nuvens. A mixagem de som é simplória, exceto quando toca "Für Elise", de Beethoven.

Importante mencionar a supervalorização da cultura estadunidense praticamente em detrimento da francesa. O WTC é visto como um monumento ainda maior do que realmente foi. Não apenas no idioma, mas a cultura francesa é vista de forma rasa. Contudo, exigir isso de um filme hollywoodiano seria demais. Afinal, o homenageado já é francês.

"A travessia" não chega ao cinema como um marco, uma obra sensacional. É ótimo, mas não único. Impressiona graças ao feito único e histórico de Philippe Petit. E serve como uma homenagem a esse corajoso artista, que merece muitos aplausos. Sua façanha já está na história. O filme, por outro lado, dificilmente entrará. É um ótimo produto, todavia, despido da originalidade necessária para ser grande.

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