sábado, 31 de outubro de 2015

Ponte dos espiões -- No mínimo ótimo

Fruto de uma parceria promissora no papel, "Ponte dos espiões" é um dos raros filmes que consegue superar as já elevadas expectativas. Não há como esperar um produto inferior ao muito bom, e, de fato, o filme é, no mínimo, ótimo.

É evidente que qualquer "film by" Steven Spielberg é pré-candidato a inúmeras premiações. A bem da verdade, a direção não é genial porque pouco há de original em "Ponte dos espiões". Quiçá seja um filme tradicional, até porque tem muitos elementos tradicionais, tais como a visão romântica dos EUA, a demonização dos países comunistas e um recorte temporal bastante preciso. Por outro lado, o renomeado diretor conduz bem o produto (exceção à elipse para o novo chamamento do protagonista para trabalhar no caso após o primeiro fracasso), pois, sabendo que pouco pode inovar, é singelo no que lhe cabe executar. Spielberg sabe que "menos é mais", e só essa sabedoria é suficiente para indicar a qualidade do seu trabalho. Sobre a montagem, se destaca apenas uma cena em que aparece um juiz na corte para, em seguida, em outro local, crianças se levantarem e cantarem o hino estadunidense, uma analogia entre a corte e a escola, seguindo a regra em que há uma única autoridade a que todos que lá estão se subordinam.

Em "Ponte dos espiões", sem dúvida, o maior destaque positivo é o roteiro, simplesmente genial. De tão dotado de virtudes, torna-se difícil mencionar todas. A narrativa é extremamente inteligente - se fosse possível resumir o filme com uma palavra, inteligente seria ela -, com argumentos sagazes e conflitos excelentes. Há um brilhantismo ímpar ao criar premissas das quais saem consequências preciosas. Da premissa pela qual todos têm direito a um defensor capacitado - verdade jurídica universal em Estados democráticos - sai a consequência de que isso não necessariamente significa um julgamento justo, pois pré-conceitos podem conduzir a um pré-julgamento inevitável (isto é, um bom advogado pode garantir as aparências de uma defesa, ficando apenas nas aparências quando o réu está previamente condenado por quem irá julgá-lo). Da premissa segundo a qual o sigilo do advogado é inviolável surge a vontade da sua violação por parte de terceiros (do governo, é claro). Da premissa principal do protagonista, qual seja, o abraço dado à causa, resulta toda a narrativa, pois o protagonista tem seus princípios e ideais e a eles é fiel do início ao fim. Soma-se a tudo isso uma acidez em críticas pontuais (que até surpreendem), em especial a ausência de senso de humanidade da sociedade estadunidense da época, que abunda no protagonista. O povo (e mesmo o juiz!) quer a morte do espião russo, mas sequer tem a certeza de que ele realmente é um espião. Piedade não há, restando ao advogado apresentar argumentos convincentes para salvar (a vida de) seu cliente. Como se não bastasse tudo isso, há momentos de alívio (levemente, mas também agradavelmente) cômico, uma verdadeira jogada de mestre - segundo especulam, contribuição dos irmãos Cohen. É bem verdade que a exaltação à nobreza estadunidense também está presente, como o não abandono dos seus ideias e, em especial, o fato de não torturarem um representante do "inimigo" (ao contrário do que este faz). Se o filme tem pouca ação, isso não significa que não há tensão: sem ser chato ou monótono, é o texto que reluz, pois, ao menos nas ideias, é uma obra-prima.

É Tom Hanks (grande parceiro de Spielberg) que vive o inteligentíssimo protagonista. Apesar de premiado, Hanks é um ator de qualidade duvidosa, em especial pela baixa versatilidade (baixa, mas não nula). Desta vez, inegavelmente, a interpretação é muito boa: se é verdade que ele teve sorte ao atuar como uma personagem fascinante - James Donovan é um dos (cada vez mais) raros protagonistas que toma as rédeas da narrativa mesmo quando a situação em que se encontra tende a impedir, além, é claro, do apego aos seus valores -, não é menos verdade que Hanks foge do lugar-comum ao seguir o mestre Spielberg com o "menos é mais". A dramaticidade aparece nos momentos certos, e a indicação do ator a mais prêmios não será surpresa - provavelmente não os vencerá porque lhe falta ser memorável ("Ponte dos espiões" é memorável, James Donovan não). Por sua vez, Mark Rylance se destaca ao exibir a melhor atuação vista na tela. Um Oscar não será surpresa, pois o Rudolf Abel de Rylance é um coadjuvante sensacional: contido sem ser insosso; dúbio sem ser confuso (nem enigmático); inteligente sem ser arrogante; e provocador (em especial com o reiterado questionamento retórico "isso ajudaria?") sem ser irritante. Hanks sozinho é ótimo, Hanks com Rylance é fantástico. Mais uma vez, mérito do roteiro, sem olvidar a competência dos atores.

A montagem deixa a desejar pela lentidão, e a elipse da nova tarefa de Donovan é mal feita. Além disso, de forma geral, os efeitos sonoros são absurdamente modestos: ainda que se leve em consideração a preocupação de não permitir que imagens e sons ofusquem a inteligência da narrativa, edição e mixagem (esta mais) de som se tornam quase imperceptíveis. A edição de som se salva apenas em razão de alguns detalhes da natureza (chuva e neve, respeitados também pela direção em todos os momentos) e por colocar "Unforgettable" instrumental como mensagem subliminar para apontar a importância de todo e qualquer ser humano em uma das cenas. Aliás, os detalhes foram o diferencial, chegando ao nível de retratar a fragilidade de saúde de Donovan diante do clima pouco amigável da Alemanha. No visual, o design de produção é impecável, pois, dentro do pouco que a história exigia, conseguiu reproduzir bem a tensão da Guerra Fria, além do ambiente sombrio da Alemanha. Note-se que não foram usados efeitos visuais mirabolantes, vez que dispensáveis, prova que uma boa história (bem conduzida) basta por si mesma.

Como nem tudo são flores, o espectador acaba vendo algumas cenas piegas, com sentimentalismo familiar e afetivo (Abel e Donovan não são amigos) superficial e nada convincente e um desfecho previsível. Contudo, nem esses poucos elementos negativos conseguem macular a nova obra de Spielberg, que, se não é a melhor, no mínimo, pode ser considerada como um ótimo filme.

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