segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Ruth & Alex -- Mais que um romance light e sem ambição

Existem alguns nomes no cinema que são considerados medalhões, artistas que, quando citados, são, em tese, garantia de qualidade. Na prática, isso nem sempre ocorre, pois são cada vez mais raros os atores seletivos. Alguns deles, inclusive, abraçam projetos inofensivos, que ficam em um limbo do "nem bom, nem ruim, muito pelo contrário". Provavelmente é neste limbo que reside "Ruth & Alex" (no original, "5 flights up", nome alterado também em outros países), drama levemente cômico que conta a história de um casal da terceira idade que decide, após muitos anos, mudar de residência. Visto por alguns como "típico filme no estilo 'Sessão da tarde", talvez não seja bem assim. A rigor, vale mais que muitos blockbusters que muito arrecadam sem muito representar cinematograficamente. Encarado com seriedade e atenção, "Ruth & Alex" pode ser mais que um romance light e sem ambição.

O grande trunfo do filme não pode deixar de ser o elenco: o carisma inigualável de Morgan Freeman e Diane Keaton praticamente ofuscam todos os outros elementos técnicos, como se o ingresso se justificasse para ver os dois medalhões. Não estão na sua melhor forma, todavia, ainda assim, dão um banho de interpretação em relação à maioria que se expõe, mesmo em grandes projetos. Isso sem contar que o casal é um pouco inusitado.

Justamente por se tratar de um "casal inusitado" (não me recordo de nenhum filme com essa dupla, isso sem contar que Keaton, de 69 anos, costuma fazer papéis um pouco mais "jovens", ao contrário de Freeman, que tem hoje 78 e não é tão afim com os romances) é que o roteiro tem como carta na manga - o que não é central, mas se torna um diferencial - a sutil menção ao preconceito quanto a casais vistos pela sociedade como diferentes. A sutil crítica social cai bem em uma narrativa teoricamente despretenciosa, ocorrendo em vários momentos em relação ao casal principal e em outro específico com outro casal. Ruth e Alex expõem que, quando se casaram, há 40 anos atrás, o casamento entre uma branca e um afrodescendente era legalmente proibido em 30 Estados nos EUA. Hoje, eles encaram com normalidade e o público jovem talvez se assuste com tamanha imbecilidade legislativa. A mera representação deste preconceito e a singela homenagem aos corajosos amantes que desafiaram a discriminação da época já merece aplausos. Embora nos dias atuais uma lei como esta seja vista de forma risível, de tão idiota, lamentavelmente, não estamos muito distantes dessa realidade, afinal, há quem queira aplicar a mesma lógica (preconceituosa) aos casais homossexuais (no futuro, este preconceito também será risível). Esta é a outra crítica social presente em "Ruth & Alex", que não vou aprofundar para não gerar um little spoiler. Enfim, essa excrecência social que se chama preconceito não é nuclear no filme, mas é encarada da melhor forma possível, qual seja, com desprezo. Ruth, ainda jovem, chega a dizer para a sua mãe que, se a família não aceitar seu relacionamento com o amado Alex simplesmente por ele ser afrodescendente, ela se afastaria da família para ser feliz com ele. É assim que a sociedade evolui.

O que é realmente nuclear é a ideia de uma nova vida na terceira idade. Pode até parecer um tema simples, mas o tratamento dado aos idosos, por exemplo, é tão espinhoso quanto os preconceitos antes mencionados - talvez, apenas, menos nocivo, pois os idosos, de forma geral, ao menos são respeitados. Ruth e Alex são respeitados pelas outras pessoas, mas são inseguros em relação ao futuro que querem enfrentar. Ruth é otimista, mas, ao mesmo tempo, bastante medrosa, cabendo ao racional (porém levemente pessimista) Alex conceder-lhe a solidez de que necessita. As duas personagens são dotadas de alguma profundidade, que é transpassada apenas em momentos pontuais. Os flashbacks feitos com o casal auxiliam bastante para que o espectador os compreenda melhor, sendo possível perceber, inclusive, que ela era mais decidida quando jovem, e ele, mais ingênuo. Com vaivéns temporais, fica evidente que o casal tem uma bela história, repleta de dificuldades, prevalecendo o seu amor. Hoje, experientes, decidem tomar um novo rumo, respirar novos ares e, com isso, vender seu imóvel. Contam com Cynthia Nixon  intepretando uma corretora de imóveis que, apesar de parente de Ruth (sobrinha), não é lá muito gentil nem tampouco atenciosa. Novamente com leveza, o mercado imobiliário é visto com viés crítico: muitas pessoas interessadas em ver um imóvel, mas sem interesse real na aquisição; corretores que encaram seus clientes como produtos; a dificuldade do desprendimento do lar etc. Como plano de fundo, um possível terrorista nos arredores do imóvel, inserido, provavelmente, apenas para dificultar a venda (e alongar o filme, é claro). De todo modo, o mote do filme é o medo em relação ao novo, natural do ser humano - e, na terceira idade, não seria diferente -, que, apesar disso, se enfrentado, pode ter resultados saudáveis. Há inclusive uma metáfora para isso, concretizada na cadela do casal, que fica doente, surgindo a dúvida quanto ao seu destino (mostrando que é possível injetar ainda mais carisma em um filme com Keaton e Freeman).

"Ruth & Alex" pode até ser um romance comum no que tange à direção (Richard Loncraine) e efeitos (visuais e sonoros). Nenhum destaque espalhafatoso, nenhum ponto fora da curva do comum. Não é essa a pretensão. Em verdade, a obra não aspira grandes reflexões, afinal, tirando o tema principal, tudo é moldado en passant. Há suavidade até na reflexão feita por Alex, segundo a qual seu velho apartamento vale (financeiramente) mais que os quadros que pintou (ele é pintor profissional), a obra da sua vida. É isso mesmo, bens materiais impessoais têm valor maior que outros de conteúdo artístico e eventualmente privado (ou ao menos com significado pessoal). Há muito mais um gentil convite à reflexão que um amargor às fragilidades humanas. Se comparado com obras vazias e sem significado algum, "5 flights up" soa como profundo. É leve, sem dúvida. Mas muito mais denso que outros blockbusters sucessos de bilheteria.

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