domingo, 22 de novembro de 2015

Jogos vorazes: a esperança - o final -- Acabou mal, mas (ainda bem que) acabou

O capítulo final de uma saga tem o condão de eternizá-la ou sepultá-la na história do cinema. Pode ser o seu ápice, com um grand finale - como é o caso de "O senhor dos anéis: o retorno do rei", por exemplo -, ou uma frustração gigantesca - como o parente "O hobbit: a batalha dos cinco exércitos". Têm razão os que inserem "Jogos vorazes: a esperança - o final" no segundo grupo.

Tratando-se de um epílogo, um olhar diacrônico pode ser um bom começo. A série "Jogos vorazes" se inicia com uma mitologia aparentemente pós-apocalíptica, em que uma nação é dividida em distritos, sendo anualmente escolhido um homem e uma mulher para disputar um jogo. O jogo consiste numa batalha surreal em que apenas o último representante vivo é o vencedor - encerra-se apenas quando todos os demais falecem, seja por assassinato de outro participante, seja por cair nas armadilhas dos organizadores. Tudo isso para representar a paz que a nação (Panem) atingiu há mais de 7 décadas e lembrar o passado sombrio do qual pouco se fala. De certa forma, para enaltecer o pulso firme do líder - além de divertir os cidadãos da capital, que vivem como nobres, ao contrário dos demais. No primeiro filme, são os seguintes fatos de relevo: (i) a protagonista Katniss abandona a sua família se oferecendo para participar do jogo no lugar da sua irmã; (ii) Katniss e Peeta, outro representante do seu distrito, conseguem fingir um romance que faz com que os dois recebam a simpatia da capital, o que é estrategicamente vantajoso; e (iii) Katniss e Peeta ganham a edição que participam. No segundo filme, são chamados os vencedores de todos os distritos - e não participantes quaisquer, como antes -, numa edição chamada "Massacre quaternário" (que remete a uma rebelião contra o sistema, que não deu certo), prometendo uma carnificina ainda maior. O que há de importante em "Jogos vorazes: em chamas" é o crescimento de Katniss como figura forte e de personalidade, e o início de uma rebelião contra o líder, Presidente Snow - o pseudoromance entre Peeta e Katniss permanece. De forma arrogante e gananciosa, os produtores da série imitam a saga Harry Potter, dividindo o último livro em dois filmes (o que também foi feito em outra obra, de qualidade ainda inferior) - arrogante porque não chega aos pés da história criada por J. K. Rowling, gananciosa porque garante maior arrecadação sem se importar com a qualidade do produto oferecido. "A esperança" foi dividido em dois filmes ("parte 1" e "o final"), um pior que o outro (ao menos os filmes), ambos narrando a rebelião contra Snow. O resultado só não é catastrófico porque, no fundo, há uma boa ideia.

Como se percebe, a série pode ser dividida em duas: antes da rebelião (dois primeiros filmes) e depois da rebelião (dois últimos filmes). A primeira fase padece de um mal de correção impossível, vez que parte de uma premissa inaceitável, segundo a qual a humanidade seria capaz de um retrocesso tal que permitiria que uma carnificina fosse encarada como diversão, dentre outras ideias intoleráveis. Por outro lado, há bastante ação e a figura da protagonista recebe o enfoque necessário para fascinar. Já a segunda fase é muito mais inteligente, pois exibe a luta de um povo contra um déspota e a favor de um regime democrático, eliminando o absurdo que os Jogos Vorazes representam. Porém, o primeiro filme é extremamente travado (pouco acontece, o que escancara o objetivo exclusivo de lucro, o que é incoerente com a própria ideologia da história), enquanto que o segundo é simplesmente fraco. De positivo foi o encerramento de uma saga cinematograficamente descartável.

A divisão em dois filmes acabou se mostrando um erro fatal do roteiro, que é claramente escalafobético. Katniss perde seu encanto, Peeta se descaracteriza e a sequência dos fatos é bastante previsível - o que inclui o encerramento em sentido estrito. De nada adianta uma boa montagem - em especial ao unir cenas concomitantes com um pingue-pongue entre planos diversos, o que já foi feito anteriormente e se mostrou um acerto - e uma direção razoável se o roteiro sabota todo o resto. Narrar uma luta em prol da democracia, a frivolidade e o egoísmo humanos e a alma ditatorial de alguns - dentre outros temas interessantes expostos - é uma excelente ideia, não por ser nova, mas por ser densa, complexa e capaz de render ótimos frutos. Ainda mais considerando o público alvo adolescente/jovem. Ocorre que "Jogos vorazes" não quer ir tão longe, prefere uma abordagem horizontal dessa crítica social do que aprofundar e levar o espectador à reflexão. Nem mesmo um leve plot twist no final (que não será revelado para não correr o risco de expor o leitor a um spoiler, mas que é previsível, como todo o filme) consegue envolver o suficiente, pois, apesar do tema adulto, o filme é bastante superficial na temática. A diferença abissal de tratamento entre os moradores da capital e os cidadãos dos demais distritos seria motivo por si só de uma revolta popular, todavia, são os Hunger Games que causam o rancor social. Não que não exista sentido, pois os odiosos jogos seriam sim capaz de revoltar qualquer sociedade. Mas e o abismo social? Há que se recordar que ele ocorre não por um sistema eminentemente econômico, como se poderia alegar a respeito do capitalismo, mas sim pelo regime de governo, pois é o déspota o grande responsável (não apenas pelos jogos como também) por essa situação. Enquanto alguns vomitam para poderem comer mais, outros passam fome, e é Snow o responsável por manter o status quo, apoiado por uma minoria e querendo, na base da força e da repressão, parecer, na pior das hipóteses, um mal necessário. Snow quer convencer a sua população que o sofrimento é o preço a ser pago pela paz. É evidente que a ideia é muito boa.

No cinema, contudo, uma ideia boa nem sempre basta. O diretor Francis Lawrence fez um ótimo trabalho de câmeras, no qual prevalece o primeiro plano (close nas personagens, em especial, claro, Katniss), alternando com poucos planos gerais - esses ocorrem apenas para mostrar a atuação devastadora de Snow. Além disso, Lawrence até conduz bem o filme, errando em especial no ritmo - estava, porém, fadado a tal equívoco, em razão da divisão em dois filmes -, conseguindo ser claro nos enfoques que deseja. Claro, mas não ácido, isto é, despido da acidez que um filme tão crítico demandaria. Snow é um vilão aterrorizador, mas não chega a ser odioso. O ditador é interpretado com maestria por Donald Sutherland, e não podia se esperar menos de um ator do seu quilate. Mas Snow apenas assusta, e não revolta. Nem Snow nem Sutherland têm culpa da monotonia imprimida pela direção, algo incoerente em relação ao que se espera de uma guerra civil. Isso tudo sem contar a indecisão quanto ao gênero, pois "o final da esperança" é um blend de ação, romance, suspense, terror, ficção e drama - um filme que quer ser tudo acaba sendo nada.

Também a ótima atuação de Jennifer Lawrence não evita o fiasco. Sua Katniss consegue crescer com o decorrer da saga, sendo prejudicada agora, pois a personagem se esvazia demasiadamente. A protagonista surge como corajosa e imprudente, além de fria, amadurecendo a cada filme. É em "a esperança: o final" que esse amadurecimento é descartado, pois Katniss regride para uma guerreira insegura (ou não tão segura quanto outrora) sobre si, ainda que corajosa. Ela move o filme, mas sem exercer o fascínio de antes, sem convencer ao representar o Tordo, aquilo que a população esperaria dela. Os outros grandes nomes não deixam a desejar no que lhes cabia, em especial Josh Hutcherson (teve o azar de a personalidade de Peeta, a exemplo da protagonista, se esvair com o roteiro, que o tornou inconstante e de menor relevância), Julianne Moore (prejudicada pela obviedade de Coin), Philip Seymour Hoffman (fará falta no cinema, R. I. P.), Jeffrey Wright (Beetee foi a única personagem que se manteve estável, importante e interessante), Elizabeth Banks (Effie foi a única personagem que cresceu na narrativa, em especial pelo caminho da futilidade para o amadurecimento pessoal, social e afetivo, do primeiro ao último filme), Sam Claflin (Finnick enfim tem importância) e Woody Harrelson (de participação diminuta). Liam Hemsworth é o pior, demonstrando que é discípulo de Kristen Stewart. Por sua vez, Elizabeth Banks é a melhor, até pelo privilégio de interpretar a melhor coadjuvante da história.

Não existem aspectos técnicos que merecem grande destaque. O figurino é simplório e inferior aos anteriores, e o design de produção é constantemente sombrio, o que não condiz com o título (melhor dizendo, deveria ser apenas preponderantemente sombrio, não quase que exclusivamente). A mixagem de som é paupérrima em razão da edição de som discreta e óbvia. De positivo, apenas o cenário, que continua encantando por ser tão heterodoxo. É pouco.

Diante de uma infinidade de olhares que "Jogos vorazes" permite, um olhar imparcial (distante do fanatismo, em especial dos leitores da trilogia original escrita) aponta pela insignificância da saga e pelo desprezo em relação ao epílogo. Desprezo por ser chato, monótono, incoerente e decepcionante. É chato porque muito previsível, monótono porque despido da ação característica, incoerente porque aniquila premissas prévias (em especial no que se refere a Katniss, que deveria estar no seu auge), e decepcionante porque a boa ideia foi desperdiçada. De forma sintética, o desprezo se materializa pela cena ridícula em que zumbis atacam os heróis, cena esta artisticamente asquerosa para um filme que pretendia ser minimamente sério. Até a última cena é desnecessária - definitivamente merecia ter sido excluída. Se os problemas fossem esses, "Jogos vorazes" seria finalizado de forma respeitável. Mas um filme que mescla, de forma estúpida, mais de um gênero, sem qualidade em nenhum deles, não merece esse respeito. Acabou mal, mas (ainda bem que) acabou.

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