quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Os 33 -- É a história real que salva a obra de arte

Hollywood tem adorado a categoria intitulada "filme-catástrofe". São vários do gênero surgindo, um após o outro, de "O impossível" e "Gravidade" ao recentíssimo "Perdido em Marte". O grande marco provavelmente é "Gravidade", pois detém os maiores predicados. Diversamente dos dois últimos e na mesma esteira do primeiro, "Os 33" baseia-se em fatos reais em solo terrestre (Chile, 2010). Nesse caso, terrestre mesmo, pois narra a saga de 33 mineradores que ficaram 69 dias presos a 700 metros de profundidade em razão de um desmoronamento ocorrido em seu local de trabalho. Como se vê, a história é interessante.

A história é interessante, mas isso, per si, não garante nada. Tratar de uma história real, na prática cinematográfica, é uma faca de dois gumes: de um lado, garante a verossimilhança da narrativa, o que indica uma credibilidade apriorística; de outro, exige fidelidade em relação aos fatos e condução capaz de dar a dramaticidade necessária. A fidelidade deixou a desejar logo de início, em razão de não colocar nenhum chileno para atuar em um dos principais papéis - só os mineradores são 33, nenhum deles, porém, é chileno, isso sem contar as demais personagens de relevo, que também não o são. Não bastasse isso, a língua oficial do filme é o inglês, o que indica o mote comercial da obra, mas também retira a fidelidade que seria exigida. Esse foi o primeiro equívoco da diretora Patricia Riggen, mas não o mais grave. O erro mais severo da direção foi implantar cenas reais de documentários sobre o caso, que ficou conhecido mundialmente e foi acompanhado por emissoras de todos os cantos do globo. Ora, a ideia claramente foi retratar um caso real a partir de uma dramaticidade artística, não relatar como fato jornalístico. Assim, os jornalistas reais que aparecem fazendo matérias reais são desnecessárias, pois o filme não é real, ainda que o seja a história. Pior, esse erro causou uma gigantesca incoerência, vez que incompatível com a participação da principal coadjuvante feminina e, principalmente, com uma cena fantasiosa (não detalhada para não gerar spoiler). Esta cena dividiu opiniões, quando, na verdade, é uma das melhores cenas do filme, pois concede a dramaticidade compatível com o filme. Em se tratando de um longa-metragem, e não um documentário, há liberdade artística para flutuar entre o concreto e o fantasioso, ainda que a base seja real. A direção cometeu alguns equívocos, mas a montagem os compensou, pois segue a ordem lógica, sem brilhantismo, mas com competência. Isso porque, de forma didática, indica os dias em que as cenas se passam, sendo fácil visualizar a ordem cronológica e, principalmente, a crescente aflição. Na verdade, para não cometer injustiça, a diretora teve também dois acertos. O primeiro acerto - e principal - se refere ao fato que o início monótono e entediante vai sumindo, de forma que o filme cresce de tensão e expectativa a cada minuto, com o ápice no final. Como se fosse um vinho - se é que isso é mesmo verdade -, o tempo só faz bem a "Os 33", pois a obra melhora com o desenrolar da narrativa. Isso significa que Riggen logrou êxito na empreitada, pois é essa a lógica de um bom drama. Ignorando o início ruim, a atmosfera diegética de desconforto e esperança é bem retratada. Uma das maiores virtudes do produto. Além disso, outro acerto - menor, é verdade - foi a escancarada dualidade dos planos iniciais em relação aos demais: os minutos iniciais apresentam planos gerais e, no máximo, abertos, para depois focar em planos mais fechados, ajudando, justamente, a criar e fazer crescer a atmosfera desagradável do soterramento. Riggen se esforça para sabotar o próprio trabalho, como, por exemplo, ao colocar um carro modelo 2013 (Hilux) numa cena que se passa em 2010. Todavia, o resultado não pode ser visto como ruim. A fotografia também coopera nesse sentido, pois permite que o telespectador abrace a situação dos chilenos.

A atuação também foi um acerto, pois, no geral, não há ninguém que destoe da boa qualidade geral. Para nós brasileiros, é mais um filme hollywoodiano com Rodrigo Santoro, que, desta vez, interpreta bem o Ministro das Minas do governo chileno. Foi uma das personagens melhor abordada em relação aos que estão fora da mina, porque destaca, de um lado, sua motivação política - inclusive com a pressão do Presidente -, e, de outro, sua alma humanitária - ele está realmente preocupado com as vítimas do acidente. A dicotomia "político interesseiro - pessoa preocupada" é encarnada no Ministro Laurence vivido por Santoro, e ele, repetindo a montagem, faz seu trabalho sem brilhantismo, mas com competência. Há um notório crescimento do ator em Hollywood, que assim continue, pois enfim mostrou que pode (melhor dizendo, talvez possa, para evitar precipitação) ser capaz de viver um coadjuvante de algum destaque. Há ainda outra dicotomia de destaque, entre o Ministro Laurence e Andre Sougarret - interpretado por Gabriel Byrne, é o encarregado técnico por salvar os mineradores -, pois, enquanto este é racional e ligeiramente pessimista, Laurence é passional e bastante otimista. Só não tão otimista quanto Mario Sepúlveda, líder dos 33, em que Antonio Banderas claramente se destaca na atuação. Sepúlveda é uma personagem que enriquece o filme não por ser o líder do grupo (e, em razão disso, unir seus integrantes e comandar as tarefas "burocráticas", como o racionamento da comida), o senso de liderança e o respeito dos demais são elementos relevantes, mas o que é reluzente é a voracidade da personagem. Tudo em Sepúlveda é em tamanho macro, em especial suas emoções, sem recair em tom piegas. Sua perfeição é duvidosa, mas o bom-humor lhe concede um carisma que torna este fato insignificante - sem contar, evidentemente, o talento de Banderas, que, desta vez, fica inegável. Se ele não é lá muito premiado, é por abraçar projetos fracos, não por falta de talento. Poucos dos outros 32 recebem destaque, não por falta de generosidade do protagonista, mas porque a entrega do ator inafastavelmente ofuscou os que estavam perto (até porque, com um número tão grande, impossível haver espaço para todos). Também Juliette Binoche tem bons momentos - exceto uma terrível cena em que ela canta em espanhol (apesar de falar inglês) -, pois sua María, irmã de um dos mineradores, é convincente como parente responsável. É a irmã mais velha que se sente no dever de cuidar do caçula, ainda que ele não queira, e Binoche soube andar na corda bamba para não recair no desespero irracional - exceto ao dar um tapa em Laurence.

Como o filme cresce, ele consegue minimamente comover o espectador. Apesar do final feliz, fato público e notório (portanto, não é spoiler), o clima de tensão está presente e é bem retratado. Não chega a emocionar a ponto de levar o público às lágrimas - longe disso -, mas mantém alguma curiosidade, principalmente sobre a maneira como tudo termina. Porém, há dois erros que comprometem demais o filme. O primeiro erro reside no som, especificamente a trilha sonora, que é deplorável: repetitiva, cansativa, algumas vezes incoerente (música alegre em momentos de tensão) e simplória (as melhores músicas se repetem tanto que se tornam odiosas). Isso sem contar a terrível canção que sujeitaram Juliette Binoche a cantar. O outro erro, crucial, foi o roteiro, que é pouco criativo, mecânico, raso e desprezivelmente ideológico sobre religião. De positivo no roteiro merece destaque a comédia inserida em cenas pontuais (como a esposa e a amante de um dos mineradores e o próprio jeito de Mario Sepúlveda), e apenas isso. É pouco criativo porque não sai do previsível no gênero, tornando-se simplório e mecânico. Tirando a cena fantasiosa já mencionada, tudo fica na cartilha básica dos "filmes-tragédia", sem nenhuma cena memorável. Pior, o roteiro é raso, vez que poderia ter explorado muito mais o aspecto psicológico dos mineradores - são poucas as cenas de conflito, mesmo quando uma das personagens anuncia que isso vai acontecer, porque é o lógico (exceto se considerarmos o astronauta de "Perdido em Marte", de humor inexplicavelmente e, portanto, inverossímil, inabalável), e o medo de tratar de política impediu um aprofundamento da temática. A história podia mais, merecia mais. Por fim, há uma tentativa subliminar de doutrinação religiosa: ao invés de valorizar os envolvidos - tanto quem estava fora e obrou para salvar o grupo quanto quem estava dentro e teve de se manter esperançoso em relação à salvação, apesar das incontáveis adversidades -, houve uma manifesta preferência por destacar a fé e a crença deísta como muleta e quiçá justificativa para o desfecho. Há muitas referências à religião cristã e ao deísmo, de forma injustificadamente repetitiva, o que, por óbvio, leva à conclusão de um intento ideológico-doutrinário - evidentemente desnecessário. São erros que apenas não fazem de "Os 33" um filme ruim porque a história é boa. E é a história real que salva a obra de arte diante de tantas tentativas de sabotar o produto final.

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