domingo, 17 de janeiro de 2016

Carol -- Encantador, mas não extraordinário

O ano é 1952, e a única opção para Patricia Highsmith publicar seu livro "The price of salt" ("O preço do sal"), após algumas negativas editoriais, é com o pseudônimo de Claire Morgan. Em 1990, a obra foi publicada novamente, com novo título: "Carol". Somente agora chega a adaptação cinematográfica. Lamentavelmente, o olhar recebido por uma história que envolve homossexualidade não é muito distinto daquele de 1952. O avanço nos EUA foi substancial, tendo em vista que, hoje, os 50 Estados admitem a união entre pessoas do mesmo sexo. Contudo, até meados de 2015, 13 Estados ainda a vedavam - ou seja, a conquista plena é recente. De toda sorte, o tema é encarado de forma preconceituosa por vários setores sociais (nos EUA e no Brasil), de maneira não muito distinta do olhar dos anos 1950.

A polêmica da narrativa fazia sentido naquela época: Carol Aird, mulher de meia idade, mãe de uma menina e em processo de divórcio, se apaixona por Therese Belivet, moça muito mais jovem e inexperiente que tem apenas um namorado. Como se vê, a história é um romance em que as subtramas praticamente inexistem. Carol ama a sua filha, é uma mãe preocupada e zelosa, porém, infeliz em seu casamento e ciente que o caminho para a sua felicidade não é com o marido. Acaba se encantando por Therese ao comprar o presente natalino da sua filha na loja em que ela trabalha, mas esse interesse poderia ter sido por qualquer outra pessoa - isto é, Therese não é a causa do divórcio de Carol, e isso fica bem claro. Therese não é uma destruidora de lares como os homossexuais são taxados por pessoas retrógradas, mas, ao contrário, um possível caminho para a felicidade de Carol. A dificuldade para elas é óbvia: enfrentar uma sociedade conservadora - provavelmente o divórcio per si já não era bem visto. Se quisessem ficar juntas, as duas teriam de enfrentar um enorme preconceito, inclusive em seu próprio círculo. A situação de Carol é ainda mais complicada, pois o marido tinha a filha para as necessárias chantagens.

Dessa sinopse, dois caminhos são possíveis: o dramático e o romântico. No caminho dramático, haveriam vários embates ideológicos nos quais as duas realmente teriam de enfrentar o mundo ao seu redor para serem felizes juntas. O foco seria a dificuldade de encontrar a paz afetiva pretendida. Contudo, o roteiro (e, supõe-se, o livro) opta pelo caminho romântico, pois o enfoque é muito mais um conflito interno que externo. Carol e Therese encontram mais obstáculos em si mesmas do que nos outros - à exceção do marido de Carol. Dito de outro modo, o que as mantinha receosas era a dúvida que residia em si mesmas, não tanto o olhar das outras pessoas. Isso fica mais claro em Therese, pois Carol sabe que envolver-se com ela poderia prejudicar o contato com a filha, mas há sempre uma cautela ao interagir com a jovem.

Nesse sentido, "Carol" decepciona por não ter nada de revolucionário. É um romance quase que como qualquer outro, não um manifesto a favor da comunidade LGBT. É polêmico hoje pela ignorância de algumas pessoas, pois o filme é muito brando em relação à causa. Carol e Therese representam duas mulheres que se amam em uma época em que isso era encarado sempre como imoralidade, mas elas não representam o preconceito sofrido pelas lésbicas. O longa não é engajado porque enclausura o casal protagonista naquela realidade, deixando subentendida a inegável e previsível discriminação que elas sofreriam. Partindo da premissa da previsibilidade desse preconceito, ele é afastado para enfocar o surgimento desse amor. Assim, o amor crescente entre as duas é destaque maior que os obstáculos que enfrentam, razão pela qual "Carol" não tem nada de extraordinário. "O segredo de Brokeback Mountain", de 2005, por exemplo, vai além, embora também esteja com os pés mais no romance do que no drama. Ocorre que essa opção de "Carol" faz com que o amor ofusque o preconceito como se daria em uma história qualquer de romance improvável. Para a causa LGBT, a película não chega a ser defensora.

Talvez tenha sido o motivo pelo qual "Carol" não foi indicado ao Oscar de melhor filme. Para um Oscar de melhor filme, indispensável ir além, pois são vários os exemplos de romances improváveis. Falta conflito, falta amargor, falta tristeza, falta dificuldade, falta drama. Porém, o filme é muito bom, vez que conduzido com competência.

Competência mostrada pelo diretor já na primeira cena com um belo plano-sequência que objetiva a ambientação. O trabalho de Todd Haynes não chega à excelência da direção, mas é ótimo, principalmente nas sutilezas. Trata-se de um filme para ser apreciado (ainda mais que os outros) nos detalhes, como o toque de Carol no ombro direito de Therese na cena do jantar (o lado direito, nosso lado da segurança, do conforto e da confiança), como a cidade em que o longa dá um grande passo, Waterloo (representando a mudança do status quo como representou também para Napoleão), ou mesmo como a neve simboliza a infelicidade da vida das duas, diminuindo cada vez mais. Haynes também é bastante eficaz ao expor a faísca que vira uma enorme chama, isto é, a narrativa é tão bem conduzida que o afeto crescente entre o casal soa sempre natural - mesmo as investidas de Carol em Therese, que surpreenderiam (para aquele contexto), não espantam porque o diretor deixa claro que inibição não faz parte da personalidade da loira. Essa evolução do afeto entre as duas tem uma ardência que não frustra expectativa alguma. O diretor foi inteligente, também, ao adotar uma estratégia de montagem circular, idêntica àquela usada por Tarantino em "Pulp fiction". É um filme de detalhes técnicos, o que Haynes, no geral, dominou - inclusive na cena de sexo, filmada com nudez, mas sem vulgaridade, dotada de uma delicadeza que apenas a verdadeira arte é capaz de retratar. Não apenas ele, mas também a equipe responsável pelo magnífico figurino, indicada com justiça ao Oscar. Cate Blanchett já tem uma elegância natural, que é apenas multiplicada por roupas de cores vivas, em especial vermelho e verde, além de casacos quentes, como um casco para camuflar sua vulnerabilidade. Já Therese usa um vestuário mais simplório, também compatível com a personalidade da personagem. Além do figurino estonteante, também a trilha sonora de Carter Burwell é belíssima, certamente pensada para esse longa porque representa as nuances de tudo que acontece - dos momentos mais suaves aos mais intensos. Figurino e trilha sonora concorrem ao Oscar, bem como o roteiro (adaptado por Phyllis Nagy) e a fotografia - esta, talvez indicação exagerada.

Da mesma forma, o casal protagonista também concorre ao Oscar por suas atuações impecáveis. Carol e Therese são opostos que se atraem até se misturar: Carol é uma leoa de apetite voraz prestes a se alimentar da frágil e indefesa ovelha Therese, mas a leoa também tem fragilidades, e a ovelha também tem sua força. No início, Carol tem uma personalidade expansiva: é ela quem toma decisões, quem faz convites (inclusive convidando a si mesma para visitar Therese na casa desta), quem decide o que comem ou bebem e aonde vão. Therese é insegura, de personalidade rasa (praticamente não reage quando beijada por um rapaz que não é seu namorado) e timidez. A introspectiva Therese, porém, vai conhecendo a forte Carol e percebendo que ela também é vulnerável, em especial quando se trata da filha. Da mesma forma, é a experiente Carol que tira Therese do casulo e faz daquela moça uma mulher. O relacionamento faz bem a ambas. Fica claro que é a loira quem tem as rédeas do laço afetivo que está se formando, todavia, isso vai se reduzindo - exemplo é na festa de ano novo: a cerveja fica com Carol, o champanhe, com Therese (invertendo-se a lógica preliminar). Na lógica das sutilezas, a sempre maravilhosa Cate Blanchett expressa de maneira fabulosa que a decidida Carol também tem seu calcanhar de Aquiles; Rooney Mara, mais discreta, faz bem o papel da menina que vira mulher (o que se inicia ao enfrentar o namorado). As duas têm uma química visível, mas Blanchett brilha mais não apenas porque Carol é mais entusiasta como também porque consegue transformar um olhar insinuante em um tiro arrebatador. Seu talento é imensurável.

"Carol" é um romance que encanta olhos e ouvidos, reconforta o espectador, ávido por uma bela história de um verdadeiro amor. Repleto de atrativos muito sedutores: da atuação à direção, da trilha sonora ao figurno. Entretanto, admirar a beleza nunca foi dificuldade para o ser humano, que o faz desde a Grécia antiga. Dificuldade mesmo é enfrentar o preconceito. É isso que "Carol" não faz.

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