segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Labirinto de mentiras - Em nada arrojado, mas ótimo

A Segunda Guerra Mundial é um oceano não totalmente explorado no cinema, representando infindáveis possibilidades. Ocorre que, para gerar interesse, mister apresentar uma abordagem diferente daquelas já conhecidas (ou, evidentemente, histórias completamente inéditas), caso contrário, o filme é fadado ao esquecimento. "Labirinto de mentiras" é um filme alemão pré-selecionado ao Oscar de Melhor Filme (estrangeiro), prêmio que, se ganhar, não será surpresa. Só o fato de termos em cartaz no Brasil um longa alemão já desperta interesse, pois a pluralidade cultural é uma iguaria a ser encarada com distinção.

A história se inicia em 1958 e tem como protagonista o jovem Promotor de Justiça Johann Radmann, que vê em um fato noticiado por um jornalista perante os demais Promotores a chance de crescer na carreira. Até então, Johann era o responsável pelas infrações de trânsito em Frankfurt, e a investigação dos delitos cometidos em Auschwitz representaria uma catapulta para Herr Radmann e para a justiça alemã. Evidentemente, não seria tão simples.

Como se vê, é nuclear a autosuperação alemã, diacronicamente, em dois momentos: à época, ao enfrentar os seus próprios demônios - lembrando tratar-se de uma história baseada em fatos reais -, e mesmo hoje, ao se expor ao mundo. Isto é, o tema é espinhoso e careceu de um roteiro sensível o suficiente para tratá-lo com seriedade e realismo. O objetivo foi atingido, vez que foi mesclada a investigação do Promotor em relação aos atos impunes de Auschwitz e a sua própria vida pessoal, o que concedeu maior leveza, sem retirar-lhe a densidade. Quanto à investigação, são ressaltados os depoimentos das testemunhas (vítimas e investigados) e as dificuldades encontradas por Herr Radmann na empreitada; quanto à sua vida pessoal, a ampliação do seu círculo de amizades (até então, aparentemente, inexistente, pois apenas ao se aproximar do jornalista é que Johann começa a ter vida social), um romance e um desagradável passado na família. Ademais, a grande novidade do roteiro é expor uma Alemanha "caçando" a própria Alemanha, ou, como dito no longa, uma corte alemã julgando alemães por crimes de um pretérito um pouco distante, cometidos fora do seu território - prescritos a maioria, restaram os homicídios. Isto é, o trabalho do Promotor seria, a contragosto de inúmeras autoridades, investigar as atrocidades de Auschwitz através de documentos e depoimentos, para acusar os responsáveis pelos homicídios (e desde aquela época, juridicamente, a acusação dependia de indicações concretas, como vítima certa). Um trabalho hercúleo, como se pode imaginar - até porque alguns acusados já residiam fora da Europa, o que ameaçaria as relações diplomáticas entre os países envolvidos.

Com uma trilha sonora compatível com as respectivas cenas, aptas a ampliar o sentimento transmitido em cada uma delas, "Labirinto de mentiras" conta com Giulio Ricciarelli (sim, ironicamente, um italiano) na direção, fazendo ótima estreia, inclusive. Ricciarelli utiliza inteligentemente o rack focus (mudança no foco) na cena da visita física a Auschwitz, com belos e delicados planos. Mas foi no domínio da mise-en-scène que o diretor acertou: por exemplo, inserindo gradualmente o cigarro e a bebida no cotidiano de Johann - no início, de forma quase imperceptível e meramente social, depois, de forma mais escancarada e dramática -, além da inserção dos objetos nos cenários (sempre bem montados), que são locais sempre cheios (como a sala do Promotor e a sua casa) e minuciosamente detalhados para indicar a vida social zero do protagonista. Além disso, já no título em alemão está presente o labirinto, que é uma metáfora bastante inteligente, representada de forma física diversas vezes - de forma explícita quando Johann sonha, e em sentido figurado em um alerta dado pelo Advogado-Geral, aparentemente autoridade máxima no que se refere ao órgão acusatório. Assim, seu significado é imenso e merece atenção. Uma pena as indispensáveis elipses nas cenas de interrogatórios: pena porque davam um grau exponencial ao drama; indispensáveis porque, caso contrário, o filme duraria muito mais do que o necessário.

O protagonista é Johann Radmann, como dito, um jovem Promotor de Justiça, interpretado por Alexander Fehling. Trata-se de um ator jovem, mas com muito talento, cujo trabalho de atuação teve o ápice na deterioração pessoal, sem retirar o mérito da direção, já destacado. Coube ao diretor dar as pistas dessa condição de Johann: ele se enterrou nas drogas lícitas como uma forma de se evadir da dura realidade com que se deparava no trabalho (além da pressão). Ou seja, a direção contribuiu na formação deste lastimável estado - mas a interpretação de Fehling beirou a excelência ao retratar o declínio de alguém tão promissor. Com uma maquiagem leve e despido de maneirismos, o ator soube representar os dois lados da personagem: um jovem Promotor subestimado em razão da idade, porém destemido, responsável e bastante dedicado; um homem sério e tímido, mas com um charme introspectivo e uma vulnerabilidade inerente à condição humana. Johann é uma personagem rica e com a densidade suficiente para o protagonismo, e o ator abraçou o ímpeto do Promotor a ponto de escancarar a obsessão que a empreitada se tornou, obsessão esta que leva Radmann ao auge e ao declínio profissional. Nem mesmo um gráfico seria tão nítido para demonstrar o câmbio sofrido por ele em suas nuances. Mais que isso, Johann é o representante de uma juventude que queria apagar o passado por meio de um então imprescindível enfrentamento dos responsáveis. Interessante observar que, até então, o que aconteceu em Auschwitz era desconhecido da população alemã (daí a ideia de mentiras, pois, nas aparências, em Nuremberg haviam sido julgados, pelos Aliados, os principais nomes, enquanto que foi Herr Radmann quem descobriu que muitos outros, nazistas por convicção, ainda estavam impunes). A intenção de muitos, inclusive autoridades, era manter as aparências sem revirar o passado fúnebre. O protagonista é fascinante porque esboça uma conduta exemplar, impulsionando a identificação cinematográfica secundária em relação ao herói real. Ainda em relação ao elenco, no geral, os demais artistas também estão bem. A namorada de Johann é Marlene (Friederike Becht), uma mulher que transborda personalidade, logo, combinando com ele. Apesar de aliviar a tensão da narrativa, o romance é tão artificial que quase prejudica a trama principal. Também no círculo de amizades do protagonista figura o jornalista Thomas (André Szymanski), pessoa impulsiva e passional que faz um contraponto com aquele.

Como se vê, "Labirinto de mentiras" praticamente não tem defeitos. Seu único problema talvez seja a timidez, pois não é em nada arrojado, ao revés, conta até mesmo com um romance maquinado. Não obstante, o filme é ótimo.

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