segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Pegando fogo -- Sem grandes lamentos nem exaltações

A culinária não é objeto de muitos filmes, provavelmente porque não chega a ser interessante do ponto de vista financeiro. É necessário um elemento criativo, como se observa em "Ratatouille". "Pegando fogo", diversamente da animação mencionada, aposta em um realismo dramático com uma narrativa que gira em torno do chef Adam Jones. Interessante que o nome do filme, inicialmente previsto, era justamente esse, tendo sido mudado para "Burnt", opção mais acertada (inclusive melhor que a versão brasileira). Com uma fotografia baseada em tons claros, compatível com o ambiente de uma cozinha, e cenários tipicamente londrinos, o filme é razoável, porém, falta algum tempero a mais.

É possível enxergar "Pegando fogo" claramente em perspectiva diacrônica, pois o aspecto temporal é marcante. O passado é revelado aos poucos, mas é central para a construção do presente e do futuro. Fica claro que Adam Jones foi um grande pupilo de um renomado chef francês, atingindo seu auge, passando depois por um declínio que teve como causa o uso de drogas (lícitas, como o álcool, e ilícitas, de todos os tipos). A relevância desse pretérito marcado pela penumbra é que a construção dos eventos que seguem depende apenas de Jones, que pode fracassar novamente ou retornar à fama e ao reconhecimento. É por isso que, no presente, o protagonista investe no abandono parcial do seu pretérito: o que ele teve de bom ele tentou retomar, como o know-how de Michel e os benefícios de Tony (em especial, a estrutura); de ruim, Jones tenta abandonar, em especial as drogas que o atormentaram. Surgem também novos elementos, em especial Helene. Como em um aprimoramento pessoal, Adam Jones quer um recomeço, expurgando a si mesmo de seus males, mantendo, porém, as virtudes. É essa a sua tarefa e o caminho em direção ao seu intento é o objeto do filme. O futuro se mostra em um final decepcionante (spoiler!), transformando o drama em um conto de fadas estupidamente tedioso.

Como já dito, Adam Jones não é apenas o protagonista: ele é a essência do próprio filme. É em torno do chef que tudo gira, com a sua presença constante. Jones é dotado de uma personalidade muito forte, é genioso, exigente (com os outros, mas também consigo mesmo), perfeccionista, crítico, grosseiro e ambicioso. Ele tem pouco tato nos relacionamentos interpessoais, não se importando ao ferir os que o rodeiam - mesmo os que o amam. A personagem é vivida por Bradley Cooper, que, como sempre, tem ótima atuação, provavelmente já acostumado com personagens levemente desafiadoras (que não chegam a exigir mudanças drásticas) e que se mostram centrais nas tramas. Cooper é um dos melhores de Hollywood, notadamente oscarizável; mostrando-se confortável no papel com francês fluente e experiência na cozinha, não deve ser sequer indicado porque a categoria de melhor ator está muito concorrida. Com um figurino que transitou entre o despojado e moderno (em especial uma bela jaqueta de couro azul) e a tradicional roupa de chef, Cooper compreende a necessidade de ser o centro das atenções, hipnotizando o espectador a partir do gênio forte de Adam Jones. Foram três os pilares a partir dos quais foi feita a sua construção: raiva, tendendo à grosseria; ironia, como ao provocar o inimigo; e galanteio acidental, a sombra inevitável do ator. Bradley Cooper foi escolhido a dedo e, se não está em um papel eterno, é por deficiência que a ele não pode ser imputada, mas por limitações inerentes à narrativa.

Adam Jones é central, é dele que parte a história. Como não se trata de um monólogo, as ramificações são as interações de Jones com os coadjuvantes. O grande destaque é Tony, interpretado com excelência por Daniel Brühl, provavelmente só não maior porque o roteiro foi tímido e não se permitiu avançar na subtrama. É Tony quem dá a Adam a oportunidade para recomeçar a carreira, no restaurante que seu pai é dono, dando como justificativa esse fator. Na verdade, há um motivo oculto que embasa a confiança de Tony em Adam, o qual dá um up na subtrama, com dois momentos de destaque. Essa subtrama, ao sair do clichê, dá a entender que surgirá um novo e interessante conflito, quando, lamentavelmente, o roteiro não o verticaliza. O papel de Brühl acaba sendo subestimado provavelmente por força do conservadorismo hollywoodiano, que não permitiu a inserção de um tempero a mais na narrativa. Por sua vez, Emma Thompson atua como a médica de Jones, responsável por acompanhar sua sobriedade. O relacionamento da médica com o chef tem alguns bons momentos, muito mais pelo discurso que pela interpretação. A subtrama é pouco relevante e nada inovadora. Já o cada vez mais famoso Omar Sy atua como Michel, sendo efetivamente importante em apenas uma cena, justamente quando o filme decresce em direção ao tédio - o plot point é inteligente não tanto por surpreender, mas por chacoalhar a narrativa. Matthew Rhys teve a sorte de interpretar um pseudo-vilão, em um trabalho muito bom do ator, com papel coerente e um pouco enigmático. Um defeito é a obscuridade em relação ao passado entre Adam e Reece, todavia, este representa a competitividade sadia imanente ao âmbito profissional - Cooper e Rhys têm ainda um diálogo profundo numa cena rica e muito bem abordada. Depois de Tony, é Reece o coadjuvante que brilha. Uma Thurman faz uma participação minúscula, mas é boa surpresa, não apenas pelo seu talento, mas também por constituir engrenagem central nos planos de Adam. Alicia Vikander vive Anne, affair do protagonista no pretérito, que surge como deus ex machina e, com um passado exageradamente nebuloso com Adam, desaparece para ressaltar sua condição secundária na narrativa. Vikander não pode sequer ter seu trabalho analisado, pois o roteiro parece ter abandonado a ideia inicial de torná-la peça aleatória para gerar dúvidas quanto ao final. Mas é a Sienna Miller quem coube o papel de Helene, a pior personagem, vez que altamente volúvel, instável e desnecessária. A bem da verdade, Helene está lá apenas para justificar um romance óbvio. Clichê e abusivamente previsível, ela prejudica muito o filme, é o oposto de Tony. A atriz deu azar. Último do elenco a merecer destaque individual, Sam Keeley se mostrou promissor como David.

Para um olhar mais exigente, o foco aleatório na comida faz com que "Pegando fogo" não fascine. A gastronomia é retratada de forma lateral, e é apenas assim que deve ser encarada. O diretor tem o mérito de retratar bem a realidade de um restaurante chique (em especial a cozinha), com cenas bem gravadas, ótimo rack focus em alguns diálogos, uma boa direção com uma edição adequadamente veloz - notadamente em algumas elipses já mais para o final do longa, que, alerte-se, não prejudica o ritmo regular. Em síntese, um filme apenas razoável, sem grandes lamentos nem exaltações, que consegue entreter sem encantar. Podia mais, mas não quis.

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