sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

O clã -- Máfia argentina

Mais um filme sobre máfia? É necessário algum diferencial. "O clã" relata a história real de uma família mafiosa argentina especializada em sequestros na década de 1980 (sequestravam pessoas eventualmente próximas, como vizinhos, para, posteriormente, extorquir seus familiares para receber um alto montante pelo resgate). Ao menos não é uma máfia italiana ou estadunidense, na verdade, suas práticas têm proporções comparativamente reduzidas (em relação àquelas), o que, evidentemente, não reduz a censurabilidade das suas condutas atrozes. Um diferencial é o pano de fundo, um contexto de efervescência política, notadamente a transição de uma ditadura militar bastante rígida para um regime democrático. Ainda que se trate de elemento circunstancial, tem relevância à medida que aparece também lateralmente: primeiro, pela inserção de cenas reais (mais detalhes adiante); além disso, porque explica a ocultação de alguns crimes e a impunidade (até certo prazo) dos mafiosos. Ao invés de reduzir o filme às atividades ilícitas, o roteiro expõe a conjuntura, recebendo maior densidade (sem a necessidade de aprofundar).

Tendo em vista a participação maior de dois atores, pode-se questionar quem é o protagonista de "O clã". Nesse sentido, a melhor resposta parece ser a vida criminosa da família. Do ponto de vista cinematográfico, esse questionamento não é simplório, pois, por exemplo, nem sempre uma personagem é protagonista, podendo ser, por exemplo, um sentimento (como a raiva no maravilhoso e também argentino "Relatos selvagens"). O protagonista é o elemento nuclear, pessoa ou coisa latente na obra inteira, sobre a qual o universo diegético gira e que move as ações do filme. No caso de "O clã", apesar de o líder da família soar como exercente de tal função, na verdade, tendo em vista a narrativa ser subdividida em 3 sequestros e o pós-prisão, são as atividades criminosas e a sua defesa perante as autoridades que se mostram centrais, logo, o protagonismo é exercido pela vida criminosa das personagens. Central é o cometimento dos delitos, seu modus operandi, seu planejamento e execução, suas consequências, e assim por diante. Também poder-se-ia defender como protagonista a sua hipocrisia ou cinismo, pois a família Puccio, em diversos momentos, tenta aparentar normalidade (leia-se honestidade e licitude), enquadramento retratado em vários momentos no filme. O chefe da família trata os sequestros como uma carreira (é essa a palavra exata usada), exigindo o auxílio dos seus filhos - e os que se negam são encarados como ingratos. Arquímedes Puccio, inclusive, age normalmente no seu cotidiano, chegando até a lavar a calçada, afinal, ele é um cidadão comum. Isso tudo sem contar a oração antes das refeições, pois mesmo os criminosos são religiosos. (Spoiler!) Arquímedes, coerente, na frente das autoridades, inclusive um juiz, nega a condição de criminoso, defendendo, ao revés, que é vítima de outras pessoas, que o coagiram a atuar daquela forma. Portanto, a insistência em retratar a família Puccio como uma qualquer que "apenas" opta por uma vida à margem da legalidade torna possível advogar pelo protagonismo da hipocrisia. No entanto, esse argumento cai por terra à medida que o lado humano dos Puccio é frequentemente reiterado, como se eles quisessem convencer a si mesmos que sua vida criminosa não fosse extraordinariamente reprovável, isto é, são pessoas que cometem delitos sabendo dessa condição mas acreditando não agir de maneira tão monstruosa. Parecem viver outra realidade - em especial, é claro, Arquímedes.

No que se refere à atuação, a personalidade das personagens e a medida da sua exibição se mostram fundamentais. Guillermo Francella interpreta Arquímedes Puccio, o patriarca da família e cérebro da máfia. Cabe destacar logo de início tratar-se de um comediante atuando em um papel dramático/sério, e Francella tem ótimo desempenho, certamente o melhor do elenco. O ápice é atingido quando Arquímedes briga com seu(s) filho(s) (em especial Alejandro), diversamente da sua faceta costumeiramente afetuosa. Na verdade, Francella entendeu a importância do lado humano da personagem, tendo a sensibilidade para marcar as gradações emotivas de cada momento, do racional e tranquilo na "carreira" até o revoltado e agressivo com Alejandro. Arquímedes é o cérebro do clã, o que não significa que seja despido de emoções - e o ator compreendeu essa condição de maneira magistral. Por sua vez, Peter Lanzani interpretou Alejandro, se mostrando aquém do parceiro Francella ao não conseguir atingir a dramaticidade exigida do papel. Lanzani cresce apenas no conflito, e, mesmo assim, não convence. O papel é maior que o ator, e até Guillermo (Franco Masini), de participação menor, tem melhor desempenho. Para tirar os holofotes de Alex, surge Maguila (Gastón Cocchiarale), que aparece menos, mas reforça o lado familiar dos Puccio (sem olvidar as atividades delituosas).

"O clã" conta com um design de produção milimalista e verossímil em tons envelhecidos para ressaltar a época (década de 1980). Tem ainda uma edição de som razoável, contraposta à mixagem de som defeituosa, que peca pelo exagero. Aliás, a trilha sonora tem enorme destaque, mas está muito alta. É uma trilha sonora que surpreende ao fugir do clichê pois mesmo nas cenas mais tensas a música é sempre agitada (como um rock leve e de época), evitando que o filme se torne um drama cansativo, concedendo leveza e divertindo. Uma pena a prevalência quase absoluta do inglês.

Ademais, a maior virtude do filme reside na direção. Rack focus (mudança de foco) nos momentos certos, boa montagem e ótimo ritmo - exceto o início lento, que poderia ser mais direto. O auge é atingido com um plano-sequência belíssimo a formar um grand finale.  É a melhor cena! Inteligente também a inserção de cenas reais com falas de políticos na televisão, quase como se fosse um documentário, situando o espectador e destacando o realismo histórico - uma ótima ideia. Pablo Trapero saiu do trabalho com um saldo altamente positivo, tendo já recebido merecidos prêmios. Talvez "O clã" não tenha potencial para uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro (foi pré-indicado como representante argentino), pois o recente "Relatos selvagens" é muito superior (um dos melhores da década). Ainda assim, é um ótimo filme.

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