quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

No coração do mar -- Filme aerado

É inegável o potencial financeiro de um filme após premiações de destaque. Assim, não raras vezes o estúdio posterga o lançamento para datas próximas de eventos (ou em eventos, como em Cannes), com escopo de aumentar a probabilidade de receber benefícios (indicações e prêmios). "No coração do mar" foi filmado há algum tempo, mas foi lançado somente agora justamente para aumentar a chance no Oscar 2016. A chance existe mais nas categorias técnicas visuais do que nas demais.

De fato, "No coração do mar" tem uma fotografia ótima. Com efeito, a direção de arte é feliz do começo ao fim, tendo o trabalho de retratar uma época com características marcantes em um tom levemente sombrio. O resultado é um design de produção bastante competente, ganhando notoriedade não apenas a fotografia como também a maquiagem (em especial nas cenas finais) - em menor escala, um figurino coerente, porém discreto. Apesar de contar com cenários belíssimos (alguns, espetaculares) e fotografia imponente, o 3D utilizado é decepcionante, vez que, ainda que inspirado (não apenas nesse quesito, a bem da verdade) em "As aventuras de Pi" (filme fantástico!), não tem o condão de situar o espectador dentro da imersão desejada, dando a entender que o 3D não foi preocupação autônoma, mas acessória. Nem mesmo os efeitos sonoros são dignos de destaque. Os efeitos visuais, contudo, são tão magníficos que tal fato merece ser mencionado novamente.

O grande defeito de "No coração do mar" é consistir em um filme aerado pela direção. A expressão "filme aerado" designa uma metáfora semelhante a "filme plástico". São vários os erros na direção e na montagem que prejudicam demais a obra. O filme não tem dinâmica o suficiente apta a empolgar na ação para ser aventura, por outro lado, é superficial em demasia para conseguir alguma dramaticidade. Isto é, não convence na dramaticidade em razão do ritmo ruim (erro na montagem), mas também por ser dinâmico demais (priorizar a ação). O dinamismo apontaria para uma aventura, mas os recortes temporais se mostram tão inoportunos que obstam qualquer empolgação. É aqui que reside o aspecto aerado: uma boa cena dramática é cortada por uma sequência de ação, e vice-versa, ficando blocos diversos entre si e um vácuo entre eles. É como se a direção estivesse em dúvida se a prioridade seria um ou outro estilo, optando pelo movimento pendular cujo resultado é quase um enigma. Não se sabe, pois, o mote fílmico, isto é, a direção para a qual brilha o holofote do filme. Pela sobriedade observada no todo, o drama seria a prioridade, porém, a frieza e a objetividade das cenas impede que o filme se torne tocante em alguns aspectos mais densos. São lançados diversos conflitos, mas nenhum deles consegue ser aprofundado, seja pela celeridade desses momentos, seja pela sua escassez, ou mesmo pelo desvio em relação ao que realmente importa. Exceção a isso é o conflito entre o capitão e o primeiro imediato, único verticalizado e verossímil, que convence não apenas por ser reiterado em diversas oportunidades (ignore-se o recomeço artificial entre os dois), mas também porque faz sentido a raiva mútua. Desconhecidos, o rancor entre eles existe porque pertencem a classes sociais diversas, com histórico de vida distinto, um verdadeiro retrato de muitos conflitos sociais existentes mesmo hoje. De todo modo, a imensa maioria dos conflitos se mostra sem necessidade, apenas alongando o filme sem uma abordagem benéfica e reflexiva. Falta convicção em todos eles, como, por exemplo, a carreira de Herman Melville e a relação entre Thomas (o sobrevivente que relata o ocorrido àquele) e sua esposa.

Nesse ínterim, a opção de misturar passado e presente com Thomas relatando os fatos pretéritos a Melville se mostrou um equívoco escancarado. E por vários motivos, a começar por quebrar o ritmo da narrativa, fazendo o deplorável aerado antes referido. Pior, há um erro infantil em que Thomas revela ao autor muito mais do que presenciou, ou seja, relata como testemunha fatos que não poderia conhecer, como a conversa entre alguns dos tripulantes do seu navio com o capitão espanhol em determinada cena - como poderia relatar, se não estava lá? Soma-se a isso o fato de que intercalar duas narrativas se mostra descartável e prejudicial: descartável porque desinteressante e desnecessária, prejudicial porque afasta a concentração do telespectador do que realmente interessa, que é o Essex. Normalmente, inserir um narrador é uma técnica cinematográfica preguiçosa. Hipoteticamente, retirando-se as cenas com Thomas e Melville, não haveria prejuízo, ao revés, haveria mais tempo para abordar melhor as aventuras de Owen Chase e Moby Dick. Ainda em termos de direção, o renomado diretor Ron Howard constrói planos bonitos dentro do mar, mas a maioria acaba sendo sem sentido, quase aleatório. O plano holandês (câmera torta, dando a ideia de instabilidade, física e/ou metafórica), por exemplo, poderia ser melhor abordado. É uma sequência de erros na direção que desmantela os acertos. De forma mais específica, pode-se dizer que várias cenas são bem feitas em análise individual, mas alguns fatores fizeram com que o conjunto seja fraco. Não se pode olvidar a dificuldade de lidar com toneladas de água (como bem sabe Ang Lee), e a decupagem (planejamento teórico de filmagem para cada tomada de cada cena) foi bem feita para cada cena. Porém, a inserção inoportuna do diálogo insosso entre Thomas e Melville, aliada a um ritmo inseguro e indecisões referentes ao mote fílmico, foram fundamentais para danificar o produto final. Ron Howard, em análise microscópica, foi ótimo, em análise global, todavia, cometeu equívocos claros. Isso tudo sem mencionar elementos sem sentido, como a razão pela qual o adolescente Thomas, sempre acaba sendo chamado para trabalho braçal como remar para pegar as baleias, enquanto outros marinheiros/baleeiros, mais fortes, apenas assistem (por que um baleeiro adulto, saudável e forte não faz esse esforço ao invés do garoto franzino?).

Em síntese, apesar de não chegar ao nível de brilhantismo da inspiração "As aventuras de Pi", o visual de "No coração do mar" é tão belo que justifica uma atenção especial. Felizmente, o filme não se reduz a isso, pois não há ninguém no elenco que destoe da boa qualidade geral. O protagonista Owen Chase é defendido por Chris Hemsworth: defendido, e não interpretado, porque dedicou-se fisicamente (mudou seu corpo musculoso de deus nórdico) e merece aplausos. Vale dizer, Hemsworth não se livrou de alguns maneirismos de Thor, mas a dedicação notória empregada na atuação dá um quê de humano a Chase, conquistando o espectador. Chase tem seus defeitos, mas permite a todos captar a injustiça sofrida ao não ser nomeado capitão a ponto de permitir uma identificação cinematográfica secundária rápida. Fica difícil não se identificar nem torcer por ele. O pseudoantagonista Capitão George Pollard também tem bons momentos na interpretação de Benjamin Walker, que concede as nuances de um capitão inexperiente, mas arrogante, e corajoso, mas inseguro, conforme demandado. Destaca-se a vulnerabilidade constante de Pollard, a qual afasta a personagem de um ódio que seria consequência da sua arrogância. Se Chase é acolhido, Pollard é apenas digno de pena até mesmo em momentos de tolices. Para atenuar sua constante insensatez há o peso de carregar o nome da família, por força do qual já assume uma posição de destaque no Essex (em detrimento de Chase - é aqui que se inicia o conflito entre eles, um dos pontos altos do filme), fatos esses bem explorados por Walker. Existe até mesmo uma dubiedade: mesmo quando Pollard é desprezível, é possível compreender a sua personalidade e suas ações. No elenco também estão Ben Whishaw e Brendan Gleeson, em diálogos inúteis. Como coadjuvantes de destaque, o futuro Homem-Aranha Tom Holland e Cillian Murphy: aquele coube como uma luva no papel; este, impressionou ao aceitar uma personagem tão pequena. Murphy está, como sempre, muito bem na atuação, mas é estranho um ator do seu cacife se contentar com tão pouco. Joy tem relevância ao ajudar Chase, é o amigo que serve como necessário apoio, mas apenas um coadjuvante sem profundidade. Em outras palavras, Murphy foi subutilizado por ter um papel menor que o seu talento.

"No coração do mar" merece ser visto porque é visualmente belíssimo e tem bom elenco. Não recai na obviedade como recriar um "O velho e o mar" de Hemingway. Também não ousa desenvolver reflexões sofisticadas. E erra ao variar os núcleos temporais e fazer um filme aerado. Não prende o espectador, não comove, nem empolga. Contudo, não é ruim. Apenas podia ser melhor. Exceto nos efeitos visuais, que são impecáveis.

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