quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Olhos da justiça -- Sombra discreta e digna de esquecimento

Surpreendentemente, "Olhos da justiça", remake hollywoodiano do fabuloso "El secreto de sus ojos", filme argentino vencedor do Oscar em 2010, foi razoavelmente bem recebido pela crítica. Longe de ser aclamado, mas bem recebido. A surpresa reside em dois aspectos: a presunção de inferioridade da cópia em relação ao original e o altíssimo nível da película argentina. Não que não existam adaptações (tecnicamente, remakes) boas, mas o original é extraordinário. O cinema argentino tem um pé em Hollywood e o outro na Europa, razão pela qual, com roteiros que transbordam o cotidiano comum, tem se mostrado quiçá o melhor da América Latina. "El secreto de sus ojos" é sensacional, "Olhos da justiça", porém, é meramente ordinário e muito aquém do primeiro. Não obstante, alguns críticos dão um olhar paternalista à nova obra, analisando-a isoladamente ou comparando especificidades. Em perspectiva global, todavia, é um filme nota 6 comparado com um nota 11 (em escala de 0 a 10).

O roteiro é coerente e verdadeiro consigo mesmo, exceto por um plot twist presente no final que ficou prejudicado pela montagem (vide abaixo). A história se resume à busca e tentativa de punição de um informante da polícia pelo cometimento de um crime (estupro e posterior assassinato) contra a filha de uma policial. Especializados em combate ao terrorismo numa época de preocupação em relação ao tema (pós-2001), os policiais (inclusive o chefe) tentam abafar o caso, pois era mais importante preservar o informante infiltrado num potencial foco terrorista. No entanto, dois policiais discordam dessa decisão e tentam punir o responsável. É dessa sinopse que saem algumas reflexões de relevo. A principal, em teoria, é o conflito justiça versus vingança, bastante clichê e que dificilmente catapulta uma história. Nesse contexto surge também a obsessão humana consistente em Ray, que, durante 13 anos, por uma razão revelada no decorrer da trama (e que não se reduz à amizade com a mãe da vítima e colega de trabalho), procura encontrar o criminoso/informante; além da corrupção policial, pois, embora o argumento fosse um "bem maior" (?), o combate ao terrorismo com o auxílio de um civil, o resultado foi negligenciar um crime em que o civil se envolveu talvez como grande responsável. Em olhar atento, na prática, reflexão central também é o sacrifício de uma investigação em prol do combate ao terrorismo (alongamento da anterior), sem olvidar a outra face da moeda na trama, o sacrifício da burocracia e dos obstáculos oficiais em favor da punição de um possível infrator. A paranoia estadunidense quanto ao terrorismo também é patente, ainda mais por um dos períodos em que o filme se passa ser após o 11 de setembro. Por fim, as interações (de mera amizade ou afetiva) entre colegas de trabalho são também abordadas, em especial (porque a amizade entre Ray e Jess fica explícita em apenas uma cena, em que eles estão juntos conversando com a filha dela sobre a vida afetiva dele) o amor platônico que Ray sente por Claire (que cessa em uma nebulosa cena com o suposto marido desta). Entretanto, as reflexões são repassadas de forma rasa e picotada, sem um grande aprofundamento. O interesse afetivo que Ray nutre por Claire é artificial e fica ainda mais artificial quando ela o critica por ser demasiado lento, como se ela desse brecha, o que não ocorre. Os conflitos e sacrifícios ficam com o espectador, pois não existem diálogos reflexivos. Mesmo quando Ray discute com Morales, este não permite um debate.

A montagem não colabora ao criar duas linhas temporais que avançam concomitantemente, com o tempo presente interrompido por flashbacks de 13 anos atrás. Há uma priorização dos acontecimentos do presente, até porque o passado não permitiu um desfecho, contudo, os flashbacks foram inseridos para explicar o porquê de muito que acontece agora, situando o espectador. O problema é que isso impede o suspense, primeiro por se anunciar que o caso não foi, ainda, encerrado, e segundo porque veda qualquer possível clímax do suspense. O pingue-pongue temporal quebra a tensão das cenas, além de estragar o final do filme. Ademais, de tão confusa, a técnica dificulta o discernimento das duas linhas temporais, pois, apesar de terem envelhecido artificialmente os atores, não é fácil diferenciar o momento em que cada cena se passa, o que exigindo-se atenção a respeito de algo que devia ser mecânico. O ritmo lento do início cede a este vaivém desenfreado, progredindo tanto que o final soa exageradamente artificial, com uma importante decisão de Jess (um leve plot twist) nada coerente. Se a opção é interessante por revelar pistas e explicar os acontecimentos aos poucos, o excesso é prejudicial.

Nessa esteira de pensamento, o suspense policial dramático não gera ansiedade ao espectador, afinal, tudo é tão veloz que não há prazo para criar expectativas. Não que torne o filme desinteressante ou monótono, mas cria uma barreira antes de qualquer clímax possível. Contudo, a direção é até razoável, sem ousadia (a não ser na montagem), mas com bom trabalho de foco. Inferior ao original argentino, é claro, mas razoável, amparada por cenários variados e bem compostos (em especial no pretérito), uma fotografia levemente sombria e uma mixagem de som inteligente (com silêncio nos momentos certos).

A atuação talvez gere alguma controvérsia. Muito embora alguns defendam que Julia Roberts (Jess) esteja em alto nível, na verdade, a atriz não atinge o ápice do seu talento. Há que se reconhecer a sua coragem na caracterização simplória e distante da vaidade comum entre estrelas de Hollywood, o que aponta um amadurecimento artístico profissional notório. É significativo ver o esforço de Roberts em ter reconhecido o seu talento, mas, para uma mãe que perdeu a sua filha, ela não convence no luto e é melhor nos momentos racionais. A raiva de Jess é muito melhor concretizada que pela tristeza em razão da perda, pois Roberts não comove. Muito melhor está Chiwetel Ejiofor, pois Ray representa um luto maior, de sorte que Ejiofor está ótimo no papel e sustenta o filme quase que sozinho. Ainda que pouco plausível, a obsessão de Ray pelo caso é um dos melhores elementos do filme, vez que o ator encarna esse mote com afinco. Dos três principais é Nicole Kidman que tem o menor papel, então a atriz acaba sendo discreta de acordo com a inteligência da personagem, que praticamente se sobressai apenas na cena do interrogatório, em que é ofendida. Dean Norris é de pouca representatividade, ao contrário de Alfred Molina (Morales), interpretando de forma magnífica o policial corrupto, convencendo qualquer um do seu discurso  (em tese) questionável. Ejiofor carrega o filme nas costas, Molina dá uma ajuda substancial quando aparece.

Mas ninguém salva o remake de ser uma sombra discreta e digna de esquecimento de uma obra anterior (esta sim sensacional e memorável).

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