terça-feira, 1 de dezembro de 2015

A visita -- Nem todo suspense é ruim e/ou acéfalo

A teoria cinematográfica ensina que gêneros são códigos de compreensão dos filmes. De fato, o resumo comum sobre um filme - bom ou ruim - envolve três questionamentos: elenco, história e gênero. O público em geral não se interessa pelo diretor, pelo estúdio, pelo figurino etc. Um bom elenco já indicaria a probabilidade de uma obra boa. A história é fundamental, pois pode ou não cativar o futuro espectador. O gênero é o aspecto mais pessoal, pois qualquer espectador tem suas preferências.

Portanto, saber o gênero cinematográfico antes do filme tem uma função teleológica clara, pois dirige o espectador, criando, inclusive, expectativas. Porém, a divisão não é tão simples, afinal, não são poucos os filmes em que há dificuldade de se inserir em algum rótulo - a maioria recai no drama, que seria o mais amplo. Além disso, há enorme controvérsia entre os teóricos, pois não existe um rol exato estabelecendo quais seriam os rótulos corretos. Há que se ressaltar, ainda, a hibridização dos gêneros, surgindo cada vez mais subgêneros (filme de ação com heróis, filmes-catástrofes etc.) ou mesmo gêneros mesclados (comédia romântica, ficção científica dramática etc.).

Nesse sentido, a divisão entre terror (ou horror, hoje entendido como sinônimo) e suspense é a que sempre apontou maior controvérsia. É enorme a dificuldade na diferenciação entre terror e suspense. Apenas a título exemplificativo, há quem sustente que ambos são espécies do gênero thriller; para outros, suspense é gênero do qual são espécies thriller e terror. A bem da verdade, em razão da polêmica, são vários os entendimentos possíveis de serem adotados (várias respostas adequadas). Não é equivocado afirmar que, enquanto o suspense envolve angústia em razão do mistério da narrativa (daí o nome), o terror lida com o medo. Ou seja, o suspense repousa na tensão, o terror, com o susto. Todavia, outro critério de classificação, provavelmente o mais acertado - pois o que impede um mistério de gerar medo? -, é o que defende que apenas o terror lida com a fantasia ou o sobrenatural, isto é, são gêneros ontologicamente idênticos, ambos com tensão, medo e susto, mas é somente o terror que invade o terreno que (em tese) seria exclusivo da ficção científica, para criar elementos que vão muito além da realidade. Todo terror tem suspense, mas nem todo suspense tem terror. Logo, quando a revelação é feita apenas no final, trata-se de suspense, pois o terror deve explorar o sobrenatural por período maior que apenas o desfecho do filme. O terror é um suspense que convive com a fantasia.

Ultrapassadas essas premissas teóricas - reitere-se a possibilidade de entendimentos diversos -, pode-se afirmar que "A visita" é um bom filme de suspense. Este seria o código de compreensão mais compatível com o novo filme de M. Night Shyamalan (diretor, produtor e roteirista), diretor responsável pelos clássicos "O sexto sentido" (excelente) e "Sinais" (ótimo), dentre outros que não merecem menção por não terem a mesma qualidade. A direção de Shyamalan é ótima, elevando a qualidade de uma obra que talvez não fosse tão boa se dependesse de outro diretor. Shyamalan usa do recurso de found footage em metalinguagem: como se não bastasse a gravação como se fosse um documentário, o que já foi feito em diversos outros filmes de suspense/terror (found footage), há uma metalinguagem consistente em três câmeras - uma, imparcial e residual, e as outras duas, controladas pelas crianças que visitam os avós. O formato de documentário é adotado tanto quando aparecem as duas crianças e a câmera não é o ponto de vista de nenhuma delas, quanto nas cenas em que as crianças é que filmam (maioria). Aliás, há metalinguagem também em muitas falas da garota, que desenvolve um discurso sobre teoria cinematográfica, inclusive com nomenclaturas técnicas. Dito de outro modo, haveria um documentário que acompanha as crianças fazendo um documentário (daí a metalinguagem), variando a montagem entre as cenas gravadas por um terceiro e as gravadas pelas próprias crianças - além dos ensinamentos teóricos da garota, também metalinguísticos. Aliás, a montagem varia o ponto de vista no decorrer da narrativa, o que dificulta a identificação cinematográfica primária, mas concede maior agilidade, o que é potencializado pelas pontuações repentinas (recurso usual em suspense/terror), com pouca utilização de fade in e fade out. O resultado é que o controle do ritmo da narrativa é feito de forma soberba, pois a variação entre o suspense e o humor, aliada aos recursos técnicos citados, faz com que o filme não padeça de algum dos males referentes ao ritmo (cansaço ou tédio). Há uma repetição demasiada das esquisitices dos idosos, isto é, as crianças demoram para aceitar que há algo além de mera velhice, porém, esse equívoco não é capaz de afetar o controle do ritmo. Ainda no que tange à direção, mesmo sendo clichê, as várias filmagens em primeiro plano (close), ao invés de montar um clima intimista (como ocorre em outros gêneros), potencializa o suspense, porque reduz o olhar do espectador à interpretação do artista e gera expectativa em razão do mistério sobre o que é ocultado. Merece menção um plano longo na cena de perseguição, ainda no início, o que indica a qualidade da direção.

Como se percebe, o trabalho de Shyamalan na direção é de uma riqueza técnica ímpar para o gênero. Por outro lado, também responsável pelo roteiro, o cineasta não é tão perfeccionista - vale dizer, o roteiro deixa a desejar. Essa frustração decorre não apenas da expectativa gerada para uma explicação excessivamente simplória e (portanto) desapontante (ou seja, o final decepciona, apesar de uma pequena surpresa), mas também (principalmente) em razão de um vazio que o filme deixa em termos de legado. Em outras palavras, além da decepção do epílogo, não há no filme uma profundidade apta a gerar uma reflexão mínima: "A visita" acaba sendo um indiferente intelectual porque não instiga a nada, é, no máximo, uma diversão inofensiva. Por exemplo, as duas crianças têm fobias (tornando previsíveis alguns acontecimentos posteriores), mas esses medos são descartáveis, vez que mal utilizados.

O único acerto do roteiro foi inovar ao criar um suspense cômico: são várias as cenas em que a situação per si permite ao espectador dar risadas, não apenas pela montagem, mas o roteiro prevê cenas levemente cômicas, inclusive para aliviar o suspense. É um suspense que, de forma proposital, soa menos amedrontador, o que é bastante raro. A própria fotografia que não abusa da escuridão (sendo esta quase a regra no suspense) já permite distinguir "A visita" dos fracos concorrentes - além de, nas cenas finais, uma edição de som que se destaca ao inserir músicas em tom erudito (pena que isso ocorre apenas no final).

Não apenas os recursos técnicos mecânicos são bons, mas também os orgânicos: o elenco é afinado, com destaque para Deanna Dunagan, ótima no papel de avó louca (além de destreza física e dedicação visível), e para o promissor Ed Oxenbould, que rouba a cena em diversos momentos, apesar dos raps irritantes.

Assim, é notório que "A visita" é dotado de muitas qualidades técnicas que merecem atenção - o que, segundo alguns, indicaria uma retomada da antes promissora carreira de Shyamalan. No entanto, deixa a desejar no essencial, faltando-lhe motivação. Um bom filme, que tem como maior virtude indicar que nem todo suspense é ruim e/ou acéfalo, sendo sim possível fazer um suspense de qualidade.

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