São poucos os filmes de
suspense que conseguem agradar e surpreender positivamente com a facilidade de
“O Homem nas Trevas” (“Don’t breathe” – não respire – no
original). A inteligência começa no nome, que tem duplo sentido: “trevas” pode
indicar tanto a cegueira do homem quanto a sua profunda tristeza; o “não
respire” (no imperativo) pode ter como destinatário o espectador, extasiado na
enérgica tensão do longa, ou as personagens, que não têm descanso quando a
trama se inicia.
Repleto de surpresas, o
roteiro, embora não fuja de algumas convenções tolas – coincidências (como
munição que se encerra quando conveniente), imortalidades incômodas, desfecho
clichê e assim por diante –, é dotado de um enredo singelo e um subtexto riquíssimo.
Três jovens (Rocky, Money e Alex) acostumados a pequenos furtos em lares vazios
decidem cometer um de maior monta na residência de um homem cego e solitário.
Mesmo sabendo que ele é um ex-militar e querendo subtrair a indenização que ele
recebeu em razão da morte da sua filha, o subestimam e acabam descobrindo,
encarcerados no local, que ele é um habilidoso e frio psicopata.
Há um discurso ateísta e de
descrença no ser humano. A direção de arte é sutil ao colocar a marca de um
crucifixo na parede, indicando que o objeto esteve lá por algum tempo, mas que
foi retirado (deixando a marca). Mais adiante, o homem escancara a sua
desilusão mundana ao afirmar que “Deus é uma piada de mau gosto” e que Ele “não
existe”. Seu fundamento é que, se existisse uma divindade, não permitiria um
mundo com tantos males. Há verossimilhança entre o drama sofrido pela
personagem e suas conclusões filosófico-religiosas – o que, evidentemente, não
justifica a atrocidade de seus atos, resultado de uma psicopatologia severa.
Também é nessa área que reside o retrato da falibilidade humana: as quatro
personagens têm seus “defeitos”, não há conduta exemplar, aspecto que lhes
concede realismo e humanidade. O homem cego começa como vítima, mas a situação
brilhantemente se inverte, o que, por outro lado, não consegue torná-lo vilão
(no máximo, antagonista). Isto é, todas estão erradas, ainda que eventualmente
tenham motivações parcialmente nobres. Parecem arquétipos (o psicopata, o
delinquente, o apaixonado e a mulher-objeto), entretanto, existem
idiossincrasias em suas personalidades que apenas as vicissitudes da narrativa
conseguem expor.
Também como subtexto há uma
associação entre marginalização social e criminalidade. Novamente, não é uma
justificativa para os atos criminosos, mas consequência lógica para as
personagens. Rocky vê no furto uma catapulta para o almejado recomeço em sua
vida ante a ausência de oportunidades. O plot
não verticaliza tanto em Money e Alex, deixando de lado seus arcos dramáticos.
Quanto ao primeiro, não fica claro se o crime é resultado de um desvio de
caráter ou se ele é impelido a essa vida por circunstâncias sociais (mais
provável, pois é quem mais domina o “mundo do crime” entre os três). É frágil a
motivação de Alex (ganho fácil e do amor platônico por Rocky), e a subtrama do
seu pai é nebulosa. De todo modo, é visível a ideologia da falta de
oportunidades como força motriz do cometimento de crimes – em última análise, a
falácia da plenitude da meritocracia. Não por outra razão, o homem cego afirma
que “garotas ricas não são presas”. Trata-se, em síntese, de uma incisiva
crítica social de cunho intelectual.
Jane Levy (Rocky), Dylan
Minnette (Alex) e Daniel Zovatto (Money) são competentes nos papéis, mas quem
brilha mesmo é o veterano Stephen Lang na pele de um homem assustador. Com
poucas falas, sua linguagem corporal é gritante para delinear a personagem: um
homem bruto, inescrupuloso, frio, habilidoso e extremamente perigoso. Em sua
segunda aparição (a primeira é muito rápida), ele parece inofensivo, por não
saber o que está ocorrendo na sua residência, porém, em um interregno curto,
fica claro o que ele é capaz de fazer. Calculista, se assegura de trancar as
saídas da casa (conjuntura similar à de “O Quarto do Pânico”) para ninguém
fugir. Sua força e reflexos rápidos (o tiro no celular que vibra é sensacional)
surpreendem, e o trabalho do ator se torna admirável nos momentos extremos – notadamente
recordações do passado melancólico (que o tornou amargo) e irritação em
momentos-chave. É uma das melhores interpretações de Lang.
Fede Alvarez escreveu um
roteiro muito bom, contudo, é na direção do seu segundo longa que o promissor
cineasta encanta. Três sequências maravilhosas merecem menção – para além da
ausência de pudor ao mostrar violência, sangue e golpes. A primeira é o prólogo
chocante (establishing shot em um plongée aéreo com travelling e zoom in
lento até melhorar a nitidez da imagem), que apenas no terceiro ato se encerra,
ao ser retomado. Ainda, poucos diretores novatos têm a ousadia de gravar um
plano-sequência tão fascinante o do primeiro ato, em que o espectador é
conduzido pela casa (para conhecê-la), como se fosse um quarto invasor, bem
como manipulado a enxergar várias pistas do porvir (sapatos deixados na porta,
machado, sino, tudo que futuramente recebe um propósito). Da mesma forma, a
cena de perseguição no porão (provavelmente o ápice da tensão), recebe uma
fotografia acinzentada para indicar a completa ausência de luz (razão pela qual
Rocky e Alex ficam com os olhos esbugalhados), e o ambiente recebe picos de
iluminação apenas quando o homem cego atira. A edição de som ficou aquém do
potencial (barulhos altos incomodando o cego são momentos óbvios) – todavia,
nada imperdoável.
Trata-se de um suspense
refinado e exitoso na atmosfera de tensão. Pode não causar aqueles pulos da
poltrona que muitos gostam, porém, o homem cego é bem mais amedrontador que a
maioria dos filmes de terror imbecil que entram em cartaz semanalmente.
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